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    Reconciliação e Perdão, a Sério?

    Quando, em novembro do ano passado, me encontrei, em Lisboa, com Francisco Queiroz, Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola, interroguei-me se eram sérios os propósitos do governo angolano de promover a reconciliação e o perdão no que respeita ao delicado tema “vítimas de conflitos políticos”.

    Em benefício do interlocutor, e do governo que representa, estava o facto, inegável, de pela primeira vez ter sido assumido que o regime tinha cometido crimes, com violação dos direitos humanos, designadamente a repressão que se seguiu ao 27 de maio e que ceifou a vida de cerca de 30 000 angolanos. Até então, os governos de Agostinho Neto e de Eduardo dos Santos recusavam assumir o que era uma questão tabu, não respondendo sequer aos pedidos de informação formulados pelos familiares das vítimas.

    Recordo-me, em particular, das cartas que meus Pais escreveram a Agostinho Neto, o “Pai da Nação”, cuja receção nem sequer era acusada. Em tais cartas, eram pedidas informações sobre o paradeiro dos meus irmãos Sita e Ademar, bem como autorização para visitas. O poeta e “humanista” esquecera-se, porém, dos tempos em que tinha ele próprio sido vítima da PIDE, a polícia política portuguesa, que não lhe negou o direito a advogado e o direito a ser visitado pela sua mulher Maria Eugénia.

    Por isso, manifestei a Francisco Queiroz, que curiosamente fora meu aluno em Luanda, no ano de 1976, o apreço por esta atitude do novo governo de Angola, liderado por João Lourenço. Dias depois, o oficioso “Jornal de Angola”, que tanto louvou a repressão em 1977, pela pena do seu diretor Costa Andrade, inseria uma notícia com o título “Irmão de Sita Valles elogia o Governo de Angola”, transformando a emissão de um sinal positivo em elogio.

    Em desfavor do interlocutor, ou mais exatamente do governo de Angola, estava o facto de a iniciativa de Reconciliação, anunciada pelos responsáveis, omitir a busca da verdade, a identificação dos responsáveis pelos crimes, o efetivo pedido de perdão, indispensável para que haja a concessão do perdão e a efetiva reconciliação.

    De facto, para que haja perdão, temos de saber a quem se perdoa. Tem de se saber previamente quem incorreu em crimes e de que forma, quem teve a autoria material e moral. Só assim poderá haver reconciliação. Quem o diz não sou apenas eu, não somos apenas nós; a União Africana, de que Angola é membro, aprovou um documento, denominado “Política de Justiça Transicional”, no qual refere que “os mecanismos da justiça tradicional africana podem assumir as seguintes caraterísticas:

    – Reconhecimento da responsabilidade e o sofrimento das vítimas;
    – Demonstração de arrependimento;
    – Pedidos de perdão;
    – Pagamento de reparação ou compensação;
    – Reconciliação”.

    O Plano de Reconciliação, anunciado pelo governo de Angola e aprovado pela comissão entretanto criada, apenas contém o último ponto dos cinco transcritos: reconciliação. Omite, completamente, o reconhecimento da responsabilidade, que pressupõe a identificação dos responsáveis, a demonstração de arrependimento por estes, os pedidos de perdão às vítimas e seus familiares e compensações (que, aliás, não foram formuladas).

    Na carta por mim escrita ao Ministro Francisco Queiroz, em 28 de outubro, que motivara o nosso encontro em Lisboa, escrevi:

    “Reconciliação e perdão pressupõem a admissão de que foram cometidos crimes, a identificação dos seus responsáveis.

    Reconciliação e perdão implicam a busca da verdade, por mais dolorosa que ela possa ser, sem receios de que os ainda idolatrados fiquem com a ignomínia da repressão
    mais sangrenta do continente africano”.

    Francisco Queiroz, em resposta, disse-me que seria difícil fazer como na África do Sul, em que o processo de reconciliação envolveu o encontro entre os repressores e as vítimas, pois receava que em Angola houvesse depois vinganças e represálias contra os responsáveis que fossem identificados. Disse-lhe, em resposta, que tal não iria seguramente suceder.

    As vítimas não se podiam vingar, pois tinham sido assassinadas, e os familiares não tinham qualquer desejo de retaliação, sendo certo que não tinham sequer meios para o fazer, pois sabe-se que os responsáveis continuam na órbita do regime.

    O meu interlocutor convidou-me, então, a participar nos trabalhos da comissão, tendo eu declarado que iria indicar um representante da família para o efeito.

    A indicação foi feita, mas o representante não chegou sequer a ser convocado para comparecer e intervir na comissão. Aliás, não obtive sequer resposta à minha comunicação.

    Os desenvolvimentos posteriores são conhecidos. O programa da dita “reconciliação”, aprovado com fanfarra, tem muito folclore, mas falta-lhe, sobretudo, seriedade. Falta-lhe, sobretudo, cumprir as regras definidas pela Unidade Africana, aqui enunciadas.

    João Lourenço enfrenta grandes desafios. Entre eles conta-se o de ser capaz de levar até ao fim aquilo que foi apenas iniciado, fazendo prevalecer, mais tarde ou mais cedo, a Verdade, indispensável para a almejada Reconciliação, uma Reconciliação a sério.

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