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    Com quem contar?

    Ao fim de três décadas e meia do monopólio da governação ter sido concentrada numa só pessoa, foi fácil concluir quão desastroso foi para o país termos apostado neste modelo de liderança.

    Quando, por isso, há três anos, João Lourenço chegou ao poder e disse ao que vinha, aplaudimos logo em uníssono as suas intenções. Porquê?

    Porque estávamos fartos do antigo monopólio. Estávamos cansados de ser coisificados por quem, detendo o monopólio do pensamento comunitário e querendo pensar por todos nós, afinal, há muito que havia deixado de pensar.

    Contra a oposição interna de alguns sectores do MPLA, João Lourenço ergueu a cruzada anti-corrupção e, ao dar uma moratória para os infractores espiarem os seus pecados rumo à tentativa de moralização da sociedade e ao fim do ciclo da impunidade, voltou a ser aplaudido.

    Com o tempo, liderou a abertura política do regime, descomprimiu a sociedade, começou a desinfectá-la com potassa e esfregão e, com isso, ao fazer renascer esperanças perdidas, viu-se envolvido numa merecida áurea de confiança por parte da população. E com isso, vieram novos aplausos.

    Eufóricos e cegos com esses aplausos da maioria da população e até de vastos sectores da oposição, mal sabíamos, porém, que estávamos (novamente) a (re)começar mal.

    E ao congratularmo-nos com a chegada de uma nova era e de um novo pensamento, ignoramos o conteúdo do baralho de cartas que nos estava a ser colocado em cima da mesa.

    Sendo boas as intenções do Presidente, limitamo-nos a esboçar, em voz baixa, um sorriso cínico e amargo como sinal de encubada desconfiança em relação algumas dessas cartas.

    Cá fora, passamos a vociferar contra a nomeação de certas figuras ou a manutenção de outras. Lá dentro, porém, nunca ninguém, até hoje, teve a coragem de as questionar.

    Aos poucos, esse tempo foi destapando, porém, a existência de um saco misturando batatas boas e pobres. Pagos para (não) pensar pela própria cabeça em voz alta, aqueles que pensam que o Presidente deve pensar e decidir sozinho, cometem um erro tremendo.

    Se é para voltar a pensar, como no passado, que o Presidente deve pensar e decidir sozinho, então porquê que precisa de ter o séquito de assessores e colaboradores que o rodeiam?

    Estávamos, afinal, em presença de um baralho cheio de cartas antigas. Mas, sobretudo, de cartas viciadas. Nalguns casos, muito viciadas.

    Porquê?

    Porque formou-se um novo governo, mas, com essas cartas, não se formou um governo novo. Há uma montra nova, mas o armazém é o mesmo. E com isso, ao não se ter assistido a nenhum sobressalto, “entre o prazer do risco e o conforto do conhecido”, preferiu-se o sofá.

    Com o sofá, vieram os resultados que estão à vista. E, agora, começam a deflagrar queimadas por todos os lados, mas, em cena, só se vê um bombeiro a tentar apagar os incêndios.

    Acontece que esse bombeiro não é nenhum super-homem e não tendo capacidades infinitas, quanto mais precisa de apoio, mais este se lhe escapa porque quem na rectaguarda deveria sair em socorro, acha que a chave de todos os problemas reside exclusivamente no Presidente. Erro crasso.

    Mas esse não é a única entropia. Há outras. Uma delas, é que uma parte significativa dos Ministros e outros auxiliares do Presidente aparentando tranquilidade e uma espantosa clarividência sobre diversos dossiers, uma vez postos no Palácio balbucia e não consegue defender com cabeça, tronco e membros as suas teses.

    Diante do Presidente, falta-lhes lucidez e coerência e saem da Cidade Alta como entram: com uma mão cheia de nada.

    Diante do Presidente, não consegue transformar as audiências num diálogo franco e aberto entre políticos que partilhando a mesma causa, pode ter, porém, visões diferentes.

    Diante do Presidente mostra-se comprometida com a mudança dos tempos, mas as vontades ainda são as mesmas.

    Diante do Presidente mostra-se aparentemente temerosa com a mudança dos tempos judiciais, mas à mesa sentam-se antigos e novos comensais.

    Diante do Presidente, muitos dos que o rodeiam, na verdade, não são o que são. Ao agirem como agem, não o fazem, no entanto, por acaso.

    O silêncio e o posicionamento desses governantes e políticos permanentemente em cima do muro, permite-lhes endossar o cheque de todas as responsabilidades para cima de quem os nomeou.

    Nessa lógica, para esses governantes e políticos, o Presidente deve pensar pelo Ministros, pelos Secretários de Estados, pelos Governadores Provinciais e até pelos administradores municipais e das grandes empresas.

    Não pode ser!!! E não pode ser porque, no fundo o que se conclui é que esses governantes e políticos o que pretendem apenas é protegerem-se com medo de serem despedidos. Fazem-nos preferindo o silêncio a terem uma intervenção crítica que coloque o Presidente a salvo de certos percalços governativos. Pois é, émais cômodo…

    Quarenta e cinco anos depois, é preocupante, por isso, ver como continuam também a carregar um olhar desconfiado sobre o direito de falar, como falar e com quem falar. Parece que falar, como falar, quando falar e com quem falar, transformou-se já num dos seus grandes dilemas.

    Um dilema que dá que pensar. Porque, pela forma como esse dilema tem sido gerido, dá para pensar que, afinal, há muita gente que não consegue sobreviver sem essa gaguez.

    Mas, essa mesma gente não deixa de se enviesar ao rodopiar, de forma sombria, à volta dos seus próprios interesses. E aqui chegados, não devemos ter ilusões. Porquê?

    Porque a experiência comprova que muitos daqueles que rodeiam o Presidente – vindos do antigo reinado ou nascendo sob a nova ordem política – fazem-no ancorados em agendas paralelas.

    Por isso, com medo de se comprometerem, não é por acaso que, como acontecia com o antecessor, preferem endossar para o Presidente o cheque até da mais insignificante das decisões.

    Deixando o Presidente pensar e decidir sozinho, o séquito que o rodeia está a criar intencionalmente um novo e pernicioso monopólio no pensamento colectivo da sociedade.

    Deixando o Presidente pensar e decidir sozinho, esse séquito está a ser intencionalmente cúmplice do mesmo monopólio que estamos a condenar como modelo de governação adoptado no passado.

    Deixando o Presidente pensar e decidir sozinho, esse séquito está a fazer intencionalmente a água do rio percorrer o mesmo caminho que nos conduziu ao destino que pretendemos agora evitar…

    Nestes casos, corremos sempre o risco de deixarmos de ser um país com um pensamento democrático, plural e multifacetado para nos voltarmos a transformar numa espécie de Coreia do Norte da Africa Austral.

    Nestes casos, o Presidente, em vez de contar com colaboradores capazes de pôr a sua massa crítica ao serviço da boa governação, passa a dispor de um séquito de soldados de chumbo, que tendo preguiça em pensar, sente-se felizes por desempenhar com afinco o papel de meros mordomos.

    E sente-se feliz porquê? Porque volta a ter a mercê um sistema que, sem existência de contrapoderes, lhe permite olear a máquina e manobrar e controlar todos os seus cordelinhos.

    Só que este sistema está agora confrontado com a emergência de uma nova corrente de governados a exigirem cada vez mais liberdade, que não parecem dispostos a fazer mais cedências à políticas governamentais que defendem cada vez mais o aperto do cinto. Perante este braço de ferro, para quem governa, só há uma saída.

    Seguir o passo dado pelo Presidente há duas semanas. Abrir e alargar o espaço para o diálogo democrático, assumir o confronto com ideias contrárias e encontrar consensos que sejam capazes de balizar uma nova ordem política, económica e social no país.

    O que não é sustentável aceitar, é a prevalência de uma profunda crise de paralisia cerebral entre as nossas elites. Aceitando-a, passamos a ter elites que, por força de interesses corporativos e de falsa preguiça mental, assumem a liberdade de pensar como uma grande chatice.

    E pensar livremente, pior ainda. Ao aceitar essa chatice, acabamos assim por transformar a liberdade de pensar e de falar num dos nossos maiores pesadelos a nível nacional.

    Que, desgraçadamente, andamos a querer cultivar com muita devoção, carinho e amor. Com tanta devoção, carinho e amor, para quê que um Presidente aberto num país democrático, precisa de elites desse género?

    Se ainda não percebeu, o Presidente, no seu próprio interesse, deve ver quem, entre os que o servem, consegue esboçar em voz alta uma ideia com cabeça, tronco e membros.

    Há, por lá muita gente capaz de garantir isso. Mas, há também muita gente, que deixa muito a desejar. Muita gente mesmo…. ■

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