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    Sobreviventes relatam violência sexual generalizada e sistemática na Síria

    DW África

    Entrevistas revelam supostos casos de tortura sexual, violação e nudez forçada em residências, postos de controlo governamentais e em penitenciárias. Entre as vítimas, estão homens, mulheres e crianças.

    Uma análise de entrevistas realizadas desde 2012 com sobreviventes da guerra civil síria detalha novas acusações do que os autores classificam de violência sistemática sexual e de género em centros de detenção controlados pelo Estado, postos de controlo do governo e batidas domiciliares realizadas pelo Exército sírio.

    O relatório é intitulado “Do you know what happens here?” (você sabe o que acontece aqui?), em referência a uma frase dita por uma testemunha que, durante um interrogatório, teria ouvido a questão antes de ser levada a uma sala onde uma detida estava a ser abusada sexualmente por um guarda.

    O Syrian Justice and Accountability Centre (SJAC), com sede em Washington, redigiu o relatório como parte dos esforços para implementar justiça transicional – inclusive reduzindo a vergonha e o estigma –, e também possíveis comissões da verdade e possíveis processos judiciais.

    Das 315 entrevistas, feitas de forma aleatória, em áreas nas quais os pesquisadores tiveram acesso na Síria e em países vizinhos, 91 foram identificadas como possivelmente contendo evidências de violência sexual ou baseadas em género. Cinquenta e seis delas indicaram crimes como estupro, ameaças de violência sexual, tortura de órgãos genitais e acesso restrito a cuidados reprodutivos – tanto contra homens como contra mulheres.

    Casos de violação colectiva nos postos de controlo do governo foram documentados, assim como frequentes ataques sexuais cometidos por vários perpetradores durante batidas domiciliares. O SJAC disse que nessas batidas, as forças de segurança do Estado parecem ter sistematicamente estuprado mulheres e meninas, às vezes diante de membros da família suspeitos de oposição política ou de terem evitado recrutamento.

    A maioria dos relatos apresentou acusações de tortura sexual, estupro e nudez forçada em 30 diferentes centros de detenção do Exército e da polícia, ordenados e perpetrados tanto por oficiais de baixo quanto de alto escalão, sugerindo “um padrão coordenado, generalizado e sistemático de violência”, de acordo com os autores do relatório.

    O SJAC disse à DW que evidências de uma gama tão ampla de centros de detenção controlados pelo governo sugerem uma estratégia deliberada que foi ordenada. Mesmo que os actos violentos tenham se tratado mais de uma prática tolerada, os comandantes ainda são responsáveis, ​​porque “deveriam ter tido conhecimento”, afirma a organização.

    Relatório reforça descobertas da ONU

    Uma das autoras do relatório, Hannah Grigg, disse que o que é mais surpreendente nos testemunhos é que eles “se alinharam quase exactamente” com o que se descobriu durante 454 entrevistas feitas pela Comissão de Inquérito da ONU (UNCOI), detalhando crimes sexuais e baseados em género alegadamente perpetrados pelo governo sírio e grupos armados “como uma ferramenta para incutir medo, humilhar e punir”.

    “A primeira vez que você lê uma dessas histórias é horrível. Mas quando você lê uma após a outra, você percebe que muitas dessas situações estão a ser repetidas mais e mais vezes, através de algum tipo de sistema que está a ser perpetuado”, disse Grigg à DW.

    Devido ao escopo limitado das actividades do SJAC, ele não poderia corroborar alegações de violência sexual perpetradas por outros grupos armados documentadas pela UNCOI.

    No entanto, a organização já havia relatado violações cometidas por grupos de oposição, pelo “Estado Islâmico” e outras partes envolvidas no conflito sírio. Grigg diz que o relatório cobre uma “parte muito pequena” do fenómeno da violência sexual que ocorre mais amplamente na guerra, iniciada em 2011 e que também foi marcada por um aumento no casamento infantil e na violência entre civis em campos de refugiados.

    Violência de género

    Elisabeth Wood, especialista da Universidade de Yale, afirma que o relatório é “muito confiável” devido a sua variedade de entrevistas, métodos e priorização da saúde e da confidencialidade das vítimas.

    “É importante ressaltar que as vítimas não foram entrevistadas por pesquisadores de outras organizações, então, essas são novas alegações”, ressaltou Wood à DW. “Além disso, o relatório documenta violência sexual, particularmente tortura sexual, contra meninos e homens, um padrão muitas vezes negligenciado nas investigações sobre violência sexual e de género.”

    Grigg acredita que foi importante registar o aspecto de género dos supostos crimes, porque o estigma que as vítimas sofreram quando retornaram às suas comunidades muitas vezes resultou em anos de negação e silêncio. Tal cultura dificulta os esforços de reabilitação e de justiça restaurativa.

    Esforços de justiça transicional no futuro

    O SJAC espera que os testemunhos que recolheu sejam usados ​​em futuros esforços para identificar os autores e processá-los, como parte da sua missão de justiça transicional, mas os caminhos legais se mostraram difíceis.

    Pelo facto de a Síria não fazer parte do Tribunal Penal Internacional e porque tentativas anteriores de levar casos ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas foram bloqueadas no Conselho de Segurança, alguns países europeus tentaram nos últimos anos processar supostos criminosos em solo europeu. Mas as perspectivas de levar altos funcionários sírios à Justiça são limitadas.

    Em 2017, um grupo de refugiados sírios entrou com um processo na Alemanha nomeando vários oficiais sírios de alto escalão, e em 2018 promotores alemães emitiram um mandado contra o o chefe da inteligência síria Jamil Hassan por crimes contra a humanidade.

    Em Fevereiro deste ano, França e Alemanha prenderam três suspeitos num caso que tem noções complicadas de justiça. Anwar R. foi acusado de realizar tortura em larga escala durante o período em que actuou como oficial sénior num centro de detenção, antes de desertar em 2012 e participar de negociações da oposição e em 2014 ter reivindicado o status de refugiado na Alemanha. Conforme relatado pelo SJAC, os sírios se dividiram sobre a questão de prendê-lo, com alguns citando experiências com o seu tratamento amável e outros alegando que a prisão iria desencorajar futuros desertores.

    Mas muitos foram encorajados pelas notícias e argumentaram que nada poderia mitigar os seus supostos crimes. O advogado sírio dos direitos humanos Anwar al-Bunni teria dito que “uma mudança na posição de atitude de uma pessoa não a isenta de processo pelos crimes que cometeu, especialmente crimes contra a humanidade.”

    Reabilitação

    Onde faltam possibilidades legais de justiça de transição, o SJAC ainda espera dar às vítimas uma voz e caminhos para a reabilitação, documentando suas histórias.

    Enquanto aqueles que ainda dentro da Síria são silenciosamente encaminhados para profissionais de saúde pelo SJAC e outras organizações, os milhões que vivem em acampamentos em países vizinhos, como a Turquia, têm poucas opções, de acordo com um relatório de 2018 de uma rede europeia de vítimas de tortura.

    Na Alemanha, onde um grande número de sírios conseguiu encontrar refúgio, o sistema de saúde pública não está muito bem adaptado às necessidades dos refugiados, apesar de um aumento recente no financiamento, segundo Elise Bittenbinder, da rede alemã de refugiados e vítimas de tortura (BAfF).

    “Definitivamente, nem todo mundo que precisa de ajuda vai consegui-la, porque há muitas barreiras em todos os sistemas na Europa”, lamenta Bittenbinder. Ela lista entre factores que dificultam o acesso à assistência a identificação, a distância dos centros de tratamento, os longos períodos de espera e as dificuldades de as vítimas até mesmo aceitarem ajuda.

    Mas para Bittenbinder, cuja organização opera 41 centros psicossociais em toda a Alemanha e realiza sessões de divulgação e informação nos centros de acolhimento, “a justiça é muito crucial”.

    “Muitas vezes você vai descobrir que as pessoas dizem ‘não quero cura’. Elas vêm e dizem querer justiça, quererem que o sofrimento que passaram seja reconhecido, que isso seja tornado público para que as outras pessoas não tenham que passar pela mesma experiência”, afirma.

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