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    O factor racial e as eleições americanas

    A escassos meses das eleições presidenciais de Novembro, a América continua a viver um clima de protestos massivos clamando por mais justiça racial. Três meses após o assassinato de George Floyd, que provocou um movimento de fúria e contestação que repercutiu globalmente, outro afroamericano foi vítima de um crime cometido por um agente policial: Jacob Blake foi alvejado pelas costas com sete disparos diante dos próprios filhos, na sequência de um incidente familiar.

    O facto espoletou uma nova onda de manifestações anti-racistas em várias cidades americanas. Numa delas, um adolescente branco de 17 anos, simpatizante da extrema direita, disparou contra os manifestantes, tendo causado a morte de dois deles e ferido um terceiro.

    À luz dos acontecimentos recentes – que, na realidade, se enquadram num fio histórico que vem de séculos atrás, mais precisamente, do odioso período da escravatura -, é previsível que o tema da “raça” jogue um papel importante nas próximas eleições, que opõem Donald Trump a Joe Biden.

    Um dos motes da convenção republicana, que confirmou Trump como candidato à reeleição, visou, por exemplo, amedrontar as donas de casa brancas dos subúrbios das cidades, agitando o espantalho da alegada hipótese de verem as suas casas “usurpadas pelos negros”, caso Biden ganhe as próximas eleições. Bizarro, mas aconteceu.

    Aliás, antes da convenção, o actual presidente já tinha feito saber, em diversas ocasiões, que vai utilizar a carta da “law & order” (lei e ordem), tal como fez Richard Nixon no final dos anos 60, na sequência das grandes manifestações pelos direitos cívicos, tendo acabado por ser eleito.

    Esse discurso musculado parece ter um objectivo: intimidar o eleitorado negro, que, como veremos neste texto, continua, desde que conquistou o direito ao voto, em 1965, a enfrentar grandes dificuldades sistémicas para exercê-lo plenamente.

    Na verdade, quando as presentes manifestações anti-racistas eclodiram, vários observadores previram a repetição desse cenário. Outros, porém – entre os quais me incluo -, consideram que o contexto, hoje, é significativamente diferente, pelo que o actual clima pode gerar um decisivo voto a favor de Joe Biden no próximo mês de Novembro.

    A pergunta que todo o mundo faz é a seguinte: irão os negros americanos (e os jovens progressistas, de todas as cores) comparecer às urnas? Se o fizerem, dificilmente a vitória escapará ao candidato democrata.

    A verdade é que os brancos conservadores, principal, para não dizer (quase) exclusiva, base eleitoral de Donald Trump, já não são a maioria da população. Existe hoje uma nova maioria demográfica, composta por brancos democratas, negros, índios, hispânicos e asiáticos, a qual, aliás, elegeu Obama por duas vezes.

    Em 2016, Hillary Clinton só não foi eleita por duas razões: primeiro, a elevada abstenção entre os negros e os jovens progressistas; segundo, o erro fatal que cometeu ao esquecer o tradicional eleitorado branco do Partido Democrata em estados onde este último não perdia desde a década de 80.

    Mesmo assim, na votação popular, teve mais de três milhões de votos do que Trump. Ou seja, se o sistema eleitoral americano fosse o usado em todas as democracias (um homem, um voto), teria ganho.

    A questão, portanto, é essa: o sistema eleitoral americano é um sistema quebrado, que não pode, a rigor, ser considerado totalmente justo. Mais grave ainda, o mesmo parece ter sido desenhado para dificultar ou inviabilizar o voto dos negros. Três factores contribuem para isso, como veremos a seguir.

    Em primeiro lugar, as eleições americanas são realizadas durante a semana, não sendo decretado feriado para o efeito e não existindo nenhuma lei que obrigue as empresas a permitir que os seus trabalhadores vão votar.

    Os negros, que normalmente têm empregos mais precários e salários mais baixos, confrontam-se, portanto, com uma escolha difícil: ir votar ou poder ser despedido, com todas as consequências daí decorrentes. Em segundo lugar, em vários estados, quem for condenado por um crime, qualquer que seja a sua gravidade, perde o direito de voto para sempre.

    Acontece que a população afro-americana constitui a maior percentagem de presos nos EUA, em grande parte por ser alvo de assédio sistemático por parte da polícia, com razão ou sem ela, como os recentes acontecimentos naquele país vieram confirmar mais uma vez.

    Em terceiro e último lugar, em muitos estados, igualmente, os distritos que elegem representantes locais são desenhados (configurados administrativamente) para assegurar que não haja misturas de votos entre as minorias e a população branca, normalmente republicana, modelo que não nos pode deixar de evocar o sistema de apartheid. É o chamado “gerrymandering”.

    O “vote supression” é, estranhamente, uma realidade nos EUA. É a todas essas dificuldades, mantidas, sobretudo, nos estados governados por republicanos (a maioria), que Biden e os democratas terão de contrapor uma estratégia de “ampla coalização”, se quiserem desalojar Trump da Casa Branca. Além de tudo fazerem para manter a lisura da votação.

     

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