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    Reportagem: como a crise grega está a afectar as crianças

    A sala de espera do centro de cuidados primários para crianças de Kaisariani é simples: uma secretária com uma telefonista risonha que parece estar lá colada, sofás-pretos-paredes-brancas, dois tons pontuados pelas cores de dois ou três jogos e livros infantis. Lá fora, na grande janela de vidro de onde se vê a rua, um homem pinta umas grades: foram colocadas após dois assaltos. Efeito da crise.

    Mas os assaltos estão longe de ser uma preocupação grande neste centro em Kaisariani, um subúrbio de Atenas conhecido por aí se terem concentrado refugiados expulsos da Turquia em 1922. Cada vez cá vêm mais pessoas e cada vez os seus problemas são maiores. Há crianças que não comem antes de ir para a escola – e desmaiam durante as aulas.

    Há um ano escolar, entre a primária e o ciclo, em que os alunos devem levar almoço de casa. Mas algumas crianças não estão a frequentar este nível porque os pais não têm nada para lhes pôr na lancheira. Há mães a dizer “o meu bebé chora e eu dou-lhe água”. Quem conta tudo isto é a assistente social Katerina Zolota: “O que é que fazemos? Temos de lhes encontrar leite – agora”, diz, o olhar penetrante por cima dos óculos, avermelhados tal como o cabelo, para sublinhar o efeito do que diz. E aqui o trabalho profissional no centro mistura-se com trabalho voluntário. Katerina já estava envolvida num grupo de acção social, que se dedicava mais aos imigrantes. Agora, dedica-se a todos, imigrantes e gregos. Tenta responder às necessidades que apareceram com a crise, e que são muitas.

    Os voluntários vão às populares “tavernas”, ao mercado, às lojas locais, e todos têm contribuído. O que vem dali é distribuído por cabazes conforme as necessidades das famílias. Os cabazes estão no centro, território neutro. “Não queremos dar ajuda na escola para não estigmatizar as pessoas”, diz Katerina. Embora com a crise isto aconteça cada vez menos – agora é Electra Batha, a antropóloga social do centro, a comentar – “porque ninguém sabe se vai ter trabalho amanhã”, diz enquanto põe o cabelo liso para trás da orelha.

    A associação sabe quais são as famílias que precisam, porque um voluntário já foi perguntar nas escolas quais os pais que pedem ajuda. Outra equipa angaria dinheiro para pessoas que não conseguem pagar as contas (tudo apontado num livro de contabilidade e contra um recibo, do qual a associação se orgulha, pois a prática de ter registos e passar comprovativos ainda é uma raridade). “Os pais que ajudamos depois ajudam-nos a ajudar”, diz Katerina. “Vão limpar a casa de uma idosa, ou pintam a casa de outra família, por exemplo. As pessoas querem muito ajudar.”

    Teste do pezinho em risco

    Mas o centro de Kaisariani arrisca-se, como outras instituições de saúde na Grécia, a ficar sem financiamento. A redução do orçamento do Instituto de Saúde Infantil, de que dependem (recebem metade do instituto, metade das autoridades municipais), atrasou em quatro meses o pagamento dos ordenados que tinham já sido cortados em pelo menos 20%. Os salários andam agora na ordem dos 1000 euros, alguns um pouco mais, para pessoas com décadas de experiência, ou com doutoramentos.

    Os cortes no Instituto de Saúde Infantil estão também a pôr em causa que todos os recém-nascidos façam gratuitamente o teste do pezinho, uma análise simples em que se tira uma gota de sangue do calcanhar do bebé e que permite verificar se o bebé tem doenças congénitas. O teste é importante porque algumas das doenças são tratáveis, se identificadas.

    Não foi, claro, só a saúde infantil a levar uma machadada. A saúde sofreu um corte de 13% em dois anos na Grécia. Nos hospitais, há médicos a relatar falta de tudo: de papel higiénico a seringas. Os mesmos médicos que, diz-se, levavam para casa partes do stock hospitalar de fraldas ou de pensos. E que, ouve-se uma e outra vez, esperam um pagamento extra dos pacientes. Mas já ninguém se queixa disto. Queixam-se de estar a ficar sem coisas básicas.

    Um exemplo: várias farmácias de hospitais fecharam, e as que resistiram deixaram de ter alguns medicamentos ou exigem dinheiro mesmo a quem tem seguro ou segurança social, por medo de não serem reembolsadas. Medicamentos para o cancro de repente não existem (ou os médicos não os receitam, por serem demasiado caros). O cancro parece o exemplo mais chocante mas não é o único. “Tínhamos aqui uma mãe com um problema psiquiátrico que correu sete farmácias de hospitais – sete! – e não encontrou o medicamento de que precisava”, conta Katerina. “E toda a gente sabe como é perigoso parar a medicação nestes casos.”Além de tudo isto, como as contribuições para a saúde são feitas pelo empregador, quem fica desempregado pode usar os serviços mais um ano… “e depois não tem direito a nada”, diz Electra. Mesmo quem tem segurança social deve pagar cinco euros de taxa e uma parte do tratamento no sistema público. Há relatos de mulheres que não têm dinheiro para pagar o parto – ficam sem certificado de nascimento do bebé.

    As crianças que não nascem

    Os cortes no Instituto de Saúde Infantil também significam que, nos últimos quatro meses, o centro pagou apenas meio mês de salário. A assistente social tem, agora, de ser ajudada: Katerina tem dois filhos, um no liceu e outro na universidade, que sustenta sozinha. “Tenho outro emprego, de aconselhamento de pais, três vezes por semana. Esse paga-me a renda. O resto, a minha mãe ajuda-me. Vejam lá, com esta idade”, dispara. Mas não diz a idade, nem perde o ar bem-disposto. Aliás, é desconcertante como conversam sobre tudo isto. Há indignação, claro, não há sinais de desespero ou depressão – não se percebe se será por optimismo ou orgulho.

    “O que havemos de fazer?”, suspira Katerina, e encolhe os ombros. “Este não é um trabalho em que possamos dizer “vão embora e venham quando houver dinheiro”.” Ainda falamos das eleições do próximo domingo, mas elas preferem não dizer as suas posições políticas num artigo sobre a sua vida profissional.

    As crianças estão a ser muito afectadas pela crise. Não são só os desmaios, a falta de comida e de cuidados de saúde. É também a depressão e desespero dos pais, sublinha Giota Mavrika, responsável pelas visitas domiciliárias do centro de saúde, até aqui mais calada do que as faladoras Katerina e Electra. “Perguntámos a uma criança da 4.ª classe o que é que ela queria. Normalmente dizem “um campo de férias”, “o meu prato preferido”, ou “um jogo de vídeo”. Esta disse: “Quero que a crise económica passe”.”

    E há ainda as crianças que ficam por nascer, nota Electra. “As pessoas hesitam em ter filhos. Uma amiga minha de 38 anos abortou. Ela já mal consegue sobreviver com o que ganha… como ia sustentar uma criança?”

    FONTE: Público

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