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    Porque somos o que somos?

    Na semana passada exprimi aqui a minha inquietação à volta de “uma poderosa metáfora de um poder” condimentado com “uma dupla verdade, uma dupla contabilidade e uma dupla moral”. E não deixei de sinalizar também a minha apreensão sobre a criação de “movimentos inorgânicos” que, atiçados pelo populismo de alguns sectores da oposição, ao desfilarem “perigosas emotividades”, podem “virar a mesa do avesso”.

    Em ambos os casos, a caminho de meio século de Independência, a pergunta que se coloca é esta: afinal, o que é que somos? A resposta é simples e pode ser facilmente encontrada na avaliação feita por Adolfo Maria ao nosso percurso histórico.

    Somos um produto directo do regime que, em Novembro de 1975, se impôs aqui como “filho e continuidade dos métodos autocráticos” protagonizados durante a guerrilha anti-colonial por todos os movimentos de libertação. Somos vítimas da encarnação da cultura política trazida desses tempos e que, promovendo a intolerância e a exclusão, assenta na aversão à discussão, à reflexão e à escolha de consensos em busca das melhores soluções.

    Somos vítimas da fúria devoradora de quem tendo crescido como dono absoluto da verdade, agora não é capaz de parar para pensar e de concluir que não sendo o declínio governativo e a tensão social mera ficção, não pode continuar de costas voltadas para as vozes da diferença.

    Somos vítimas de quem, subestimando a descrença popular em relação a alguns nichos da governação, insiste em fazer prevalecer a ambição pessoal ou de grupo sobre o interesse nacional. Somos vítimas de quem se esquece que “o desespero”, como adverte ainda Adolfo Maria, “pode arrastar populações para o apoio a promessas messiânicas” que “escondem ambições de poder a todo o custo e ajustes de contas”.

    Somos o que somos porque somos governados por uma elite que tendo, rapidamente, virado o bico ao prego, depois de ter assimilado na perfeição a subdesenvolvida mentalidade de colonizado, meteu na cabeça que a sua afirmação social só seria bem vincada se conseguisse ostentar riqueza gratuita na antiga metrópole onde, despida de poder ninguém lhe dá a mínima importância.

    Somos o que somos porque vergados a um maniqueísmo político verdadeiramente patético, continuamos a pensar que quem não alinha com o MPLA, enverga necessariamente a camisola da UNITA e que quem discorda da UNITA assina obrigatoriamente por baixo as teses do MPLA.

    Somos o que somos porque atrofiados por essa pequenez política, na visão estreita, redutora e obtusa de muitos dos nossos políticos de um e do outro lado, por aqui, não deve haver espaço para a afirmação de uma cidadania independente.

    Somos o que somos porque, para esses políticos, os cidadãos deveriam limitar-se a engrossar a carneirada prisioneira da bipolarização partidária instaurada no nosso país e não estarem comprometidos, em primeiro lugar, com Angola.

    Somos o que somos porque quem está no poder incorpora gente que tendo um medo atroz de perder o poder, não esconde a sua tendência para abandonar a racionalidade política e acreditar numa divina vocação para se eternizar no poder de todas as formas e (maus) feitios.

    Somos o que somos porque franjas arrogantes do poder parecem não ter percebido ainda que, constituindo o desemprego juvenil um adversário tonitruante no voto, o recurso a um triunfalismo oco embrulhado em propaganda gratuita e tóxica, hoje já não serve para convencer o eleitorado nem chega para cantar vitória antes do tempo.

    Somos o que somos porque essas franjas do poder continuam a mostrar-se irredutíveis em não querer abandonar o sedentarismo mental, recusando, em simultâneo, acreditar na vitalidade política do pensamento crítico.

    Somos o que somos porque temos um poder que, disparando a torto e à direito balas perdidas que tem contribuido para o crescimento, sem esforço, da oposição, ainda não se apercebeu que a coligação que se presta a fazer-lhe frente é produto dos seus próprios disparates.

    Somos o que somos porque tempos um poder que, ao perder a noção da percepção, ainda não entendeu que não é por ser poder que o reconhecimento da credibilidade da oposição, pode ser substituído e validado pela sua chancela propagandística em vez de ser sufragado pela única via aceitável em democracia: o voto popular.

    Somos o que somos porque, em sentido contrário, temos uma oposição que também ainda não percebeu que não é por estar em crescendo que, de forma igualmente arrogante, se acha investida de autoridade para retirar legitimidade a quem foi democraticamente eleito para governar e a quem apenas as urnas podem voltar a confirmar ou a pôr fim ao seu actual estatuto de força política maioritária.

    Somos o que somos porque temos uma oposição que, sem conseguir esconder o secreto desejo de se sentar também à mesa do banquete, aos poucos vai-se revelando igualmente contaminada pelo mesmo slogan de quem está no poder: “agora é a nossa vez”!

    Somos o que somos porque pedaços esfrangalhados da oposição com inexpressiva representatividade parlamentar se assemelham cada vez mais a amontoados de cacos incoláveis predestinados a fazerem parte da população dos cemitérios de carcaças irrecuperáveis.

    Somos o que somos porque, tanto quem detém o poder como quem comanda a oposição, acha que cada um à sua maneira, deve ter direito à sua vez, mas nem um nem outro parecem preocupados em ceder a vez aos verdadeiros proprietários do país: os cidadãos.

    Somos o que somos porque, na disputa democrática, o radicalismo da nossa tribo partidária, de um e do outro lado, tende a fulanizar cada vez mais o debate político e, em vez de discutir ideias, discute pessoas e promove o insulto e a ofensa.

    Somos o que somos porque sectores preponderantes de um outro e do outro lado pretendem chamar a si o exclusivo das virtudes como se fossem as únicas “fábricas de ideias” no nosso país.

    Somos o que somos porque as nossas elites políticas ainda não perceberam que “sujo não é o poder, mas o seu uso”. Somos o que somos porque representantes dessas elites não parecem dispostos a interiorizar que “um banho nem sempre é uma limpeza” e se, como dizia Hitchcock, para alcançar a completa regeneração dos valores democráticos muitas vezes esse banho não chega a ser “uma limpeza a seco”, o melhor então é enveredarem por uma lavagem com potassa e esfregão.

    Somos o que somos porque não queremos perceber que uma lavagem com potassa e esfregão é sempre mais confiável porque confere garantias absolutas de uma limpeza a sério. Somos o que somos porque vivemos à volta de ziguezagues ideológicos numa sociedade demasiado partidarizada, mas muito pouco politizada.

    Somos o que somos porque vivemos numa sociedade em que, sem coluna vertebral, as nossas elites, em vez de darem primazia ao país, preferem continuar a arrear as calças e viver de cócoras debaixo das saias dos partidos políticos.

    Somos o que somos porque vivemos numa sociedade dominada por um discurso político recheado de lugares comuns, que, ultrapassado no tempo e no espaço, se está a revelar descompassado da nossa nova realidade sociológica.

    Somos o que somos porque vivemos numa sociedade matraqueada pelo rendilhado gongórico de um pensamento político de qualidade medíocre. Somos o que somos porque é essa mediocridade não assumida que faz com que políticos e dirigentes com estatutos especial no partido que nos governa se escondam por detrás do biombo, deixando para o Presidente a responsabilidade de puxar sozinho a carroça.

    Somos o que somos porque muito dos que nos governam estão capturados pela corrupção, pelo nepotismo e pelo tribalismo sob uma administração pública pesada e ineficiente, que continua a ser sequestrada por gente sem qualificações e sem habilidades críticas.Para deixarmos de ser o que somos precisamos, pois, de fazer um amplo e profundo refrescamento estrutural e funcional do nosso sistema democrático.

    Sem prejuízo da disputa partidária, precisamos de celebrar um pacto de regime que salvaguarde em primeiro lugar os superiores interesses de Angola.

    Precisamos de deixar de estar subordinados à qualidade de um pensamento político tão pobre e tão básico, que, sem darmos conta, nos está a embalsamar num tempo sem valores. E, sobretudo, temos de saber enfrentar e vencer um risco pendente: “fingir que nada se passa, mesmo quando todos sabem que todos estão a fingir que nada se passa”. ■

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