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    Hospitais deixam fugir idosos e doentes psiquiátricos das Urgências

    Diário de Notícias | Paula Freitas Ferreira

    São pacientes considerados “especialmente vulneráveis” mas parecem invisíveis. Entidade Reguladora da Saúde aponta o dedo às unidades hospitalares e exige mudanças concretas.

    Demora no atendimento, enganos nos procedimentos, desabafos, queixas e lamentos. A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) é o porto onde chegam todas as reclamações dos utentes, mas nos últimos meses o organismo tem deliberado sobre vários casos com uma tónica comum: a fuga de utentes. A gíria médica chama-lhe “abandono hospitalar”, quando o doente desiste de esperar pela sua vez e não chega a ser atendido nas Urgências. No caso de doentes psiquiátricos, idosos e outros pacientes “especialmente vulneráveis” o caso não pode ser chamado de abandono, mas sim de fuga. São doentes que podem pôr em risco a sua própria vida e a de outros.

    Muitas vezes são os familiares os primeiros a saber que o doente fugiu, como uma mãe que abriu a porta ao filho às três da manhã. Estava vestido com a roupa hospitalar e não tinha tomado a medicação para a esquizofrenia. Há também o caso do homem que foi encontrado ainda com o cateter no braço e a pulseira amarela no pulso. Tinha 87 anos e deambulava por um hipermercado.

    Esquizofrénico foge do Hospital de S. José e aparece, de pijama, à porta da mãe
    Eram três horas da madrugada do dia 20 de setembro de 2016 quando a mãe de M.L abriu a porta de casa e encontrou do outro lado o filho, um doente psiquiátrico, ainda com a roupa do hospital. O homem, que sofre de esquizofrenia paranoide, tinha fugido do Hospital de S. José, para onde fora transportado devido a problemas cardíacos. Segundo o irmão de M.L., que apresentou uma queixa à Entidade Reguladora da Saúde, o doente “acabou a ter alguns episódios de maior violência (por negação da sua doença e consequente ausência de medicação) que o conduziu a alguns internamentos compulsivos no Hospital Júlio de Matos”.

    M.L. tinha deixado de ir às consultas médicas de psiquiatria programadas, recusava-se a tomar a medicação para a doença e apenas cumpria a medicação relacionada com os problemas cardíacos. “No dia 17 de setembro [de 2016} e após alguns dias de atitudes sem nexo e de alguma agressividade para com a minha mãe (querendo expulsá-la de casa, tendo-lhe inclusive retirado as chaves de casa), solicitei a intervenção da PSP com o intuito de o conduzir ao hospital”, conta o irmão na queixa dirigida à ERS.

    Após uma passagem pelo Hospital de S. José – para onde foi levado com a ajuda das autoridades – M.L. acabaria por ser internado compulsivamente no hospital psiquiátrico Júlio de Matos. Era domingo, e no dia seguinte, 19 de setembro de 2016, a mãe de M.L. contactou a unidade hospital para saber do filho. Confirmaram que sim, ali permanecia internado desde o dia anterior. “Qual não foi o espanto, quando de dia 19 para dia 20 pelas três da manhã, o meu irmão apareceu sozinho e com roupa hospitalar à porta de casa de minha mãe”.

    A 7 de março de 2019, quase três anos após a queixa, a ERS publicou a deliberação referente ao caso onde consta uma instrução ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (Hospital Júlio de Matos) e ao Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (Hospital de S. José), no sentido de, entre outras medidas, “implementar um procedimento interno para avaliação do risco de abandono do serviço de urgência por parte dos utentes e para prevenção do mesmo, sempre que esse abandono possa representar perigo para o próprio e/ou para terceiros”.

    Familiares pensavam que o doente estava internado no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Tinha fugido das Urgências do S. José, para onde fora levado devido a problemas cardíacos.© D.R.
    Primeiro fugiu a sogra. Depois, fugiu o pai
    A.M viveu o mesmo desespero duas vezes. Com o pai, de 83 anos, doente de Alzheimer, e com a sogra, também de idade avançada e doente oncológica. Ambos desapareceram do serviço de Urgências de dois hospitais diferentes, em 2018. A ERS decidiu juntar as duas reclamações e deliberou tendo em conta a falha detetada nos serviços das duas unidades hospitalares: o Hospital S. Francisco Xavier e o Hospital Egas Moniz, ambos integrados no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental.

    As queixas de A.M. chegaram em novembro e dezembro do ano passado ao conhecimento da ERS e davam conta de duas situações que a mulher assim resume: “Não é aceitável que se deixem idosos fragilizados sem vigilância e que ninguém tenha dado pela sua saída”. Mas foi mesmo isto que aconteceu.

    O pai da queixosa deu entrada no Hospital São Francisco Xavier pouco depois das 14h do dia 17 de janeiro de 2018. Estava acompanhado pela mulher. “O meu pai tem Alzheimer e tem de estar acompanhado pela minha mãe, a única pessoa que conhece”, justifica a filha na reclamação. Mas a mulher acabaria por ser convidada a aguardar na sala de espera – e não junto do marido – devido à sobrecarga do serviço, como consta na resposta do hospital e também no regulamento da unidade. Desde essa hora que mais ninguém viu o pai de A.M.

    “A chefe de equipa (…) não sabe explicar e diz que não foi a sua equipa, típico “sacudir a água do capote”. (…) São neste momento meia-noite e ainda ninguém sabe do meu pai. Farei queixa na PSP, na Direção Geral da Saúde e no Ministério Público, por esta situação inacreditável”, lamentava a mulher.

    O hospital explicou o que acontecera: depois de se ter sentido mal no Centro de Dia que frequenta, “o doente estaria a aguardar […] em sala de inalatórios mas não respondeu à chamada. O doente não se encontra apesar de várias buscas nas instalações de urgência, não se encontrado nomeadamente nas salas de espera. Situação entregue à Polícia Judiciária (…) comunicada à chefe de equipa de Medicina. Foi visto nomeadamente pela família a última vez pelas 19:40, quando foi ativada a lei 33 pela equipa fixa. (…)”, relata o hospital.

    O idoso acabaria por ser encontrado horas depois, durante a madrugada do dia seguinte, em Caselas, tendo regressado ao serviço de urgência acompanhado pelo INEM, que descreveu o seu estado clínico: “Doente em estado geral desorientado.”

    Na resposta à reclamação da filha de A.M, e reagindo ao pedido da ERS, o Hospital São Francisco Xavier lamentou o sucedido e assumiu “inteira responsabilidade” pelo desaparecimento do utente. “Pedimos as nossas humildes desculpas, sabendo que tudo acabou em bem, o que muito nos conforta”, acrescentava a resposta.

    Idoso de 84 anos foi encontrado desorientado, depois de ter fugido das Urgências. Hospital São Francisco Xavier lamentou o sucedido e assumiu “inteira responsabilidade” pelo desaparecimento do utente.© D.R.
    No entanto, o hospital não fez aquilo que consta no seu próprio regulamento: “Habitualmente, e sempre que o enfermeiro tem conhecimento da vulnerabilidade mental de um utente, é-lhe colocada uma bata azul descartável. Os seguranças que se encontram nas duas entradas do Serviço de Urgência Geral são informados da situação, para que caso verifiquem a saída do utente alertem de imediato os enfermeiros do setor respetivo, que o irão buscar e conduzir ao local adequado”, esclarece, na resposta, o S. Francisco Xavier, que prometeu: “Esta situação irá ser reforçada junto dos profissionais do serviço”.

    Estava imobilizada e medicada, mas conseguiu fugir
    Um mês antes, I.C. vivera uma situação semelhante com a sogra, P.M., relativamente ao funcionamento do internamento no Hospital Egas Moniz. A 8 de novembro de 2018, P.M., diagnosticada com cancro, “em estado grave psicologicamente e fisicamente”, e vítima de alucinações, abandonou o hospital.

    P. M. já tinha ameaçado fugir, “por diversas vezes”. Na véspera, a equipa de segurança tinha intercetado a mulher na fuga, encaminhando-a de regresso ao serviço de internamento. Mas nem o reforço na vigilância nem a “contenção química e física” aplicadas impediram P.M. de abandonar o edifício.

    Foi a própria enfermeira que estava de serviço quem explicou as circunstâncias da fuga da idosa: “Quando recebi o turno a doente encontrava-se no leito imobilizada com contenção física e com medicação (administrada às 7:40). Por volta das 8:45 a doente estava no leito calma, pelas 9:00 foi dado o alarme do desaparecimento (…)”, resume.

    Foi contactada a equipa médica que ligou aos familiares, que não sabiam do paradeiro da mulher. Pelas 11:30 a sogra de A.M. acabaria por regressar ao serviço acompanhada pela família. Estava “calma e hemodinamicamente estável”, esclarece o hospital.

    A ERS deu a instrução, entre outras, para implementar um procedimento interno com vista à atuação em caso de desaparecimento de doente em serviço de urgência e em internamento hospitalar.

    O medo de um novo processo contra o Estado. Doente psiquiátrico foge do internamento
    Foi através de uma notícia na comunicação social, a 31 de outubro do ano passado, que a ERS soube que um doente diagnosticado com esquizofrenia tinha fugido do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Tondela-Viseu.

    A notícia foi como um alerta vermelho para a Entidade Reguladora da Saúde, depois do caso Fernandes de Oliveira/Estado. Em março de 2017, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou Portugal a pagar 26.112,8 euros a uma mãe que apresentou queixa por considerar que, em 2000, o seu filho se suicidou devido à negligência de um hospital de Coimbra. O filho de Maria da Glória de Oliveira sofria de distúrbios mentais e deu entrada várias vezes no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra, na unidade Sobral Cid.Em abril de 2000, foi admitido naquela unidade depois de ter tentado o suicídio e, a 27 daquele mês, deixou os serviços sem avisar as autoridades hospitalares e saltou para a frente de um comboio, descreve o Tribunal Europeu.

    Quanto ao caso do hospital de Viseu (de outubro de 2018), o hospital de Abraveses não tinha elaborado nenhum relatório relativo à fuga do jovem doente psiquiátrico, mas acabaria por fazê-lo por imposição da ERS. “Venho por este meio informar que o doente acima citado encontra-se internado no serviço de Psiquiatria Setor Masculino desde o dia 28-09-2018. No dia 30-10-2018 pelas 10:45 os enfermeiros aperceberam-se que o doente não se encontrava no serviço, tendo-se ausentado sem dar conhecimento a ninguém”, lê-se no documento, citado na deliberação da ERS.

    O doente psiquiátrico acabaria por ser encontrado a deambular pela cidade de Viseu e regressou ao hospital no dia seguinte – 31 de outubro – acompanhado pela PSP e pelo pai.

    A ERS detetou, no entanto, um problema de base e referente aos procedimentos de monitorização de utentes especialmente vulneráveis, além de “indícios de falhas quer a nível da segurança das instalações, quer a nível procedimental, com repercussões negativas no direito de acesso à prestação de cuidados de saúde adequados, de qualidade e com segurança”.

    Entre outras, o hospital foi instruído a “adotar as medidas e/ ou procedimentos que se revelem aptos para assegurar que, durante a permanência no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do CHTV, os utentes sejam devidamente monitorizados e acompanhados”.

    Fugiu das Urgências ainda com o cateter no braço. Foi encontrado num hipermercado
    A história de F.F., de 87 anos, que sofre de surdez e dificuldades na fala, é contada pela filha, que apresentou a reclamação em novembro de 2017. É ela quem conta como o pai foi encontrado, ainda com a pulseira amarela (Urgente – significa que o doente tem de ser atendido no prazo de uma hora, segundo o Sistema de Manchester) e o cateter no braço, desorientado e no hipermercado Continente, em Santarém, onde tentava a chamar um táxi para poder ir para casa.

    E.F. tinha regressado ao Hospital Distrital de Santarém depois de uma passagem pelo Hospital de São José, em Lisboa – os procedimentos médicos receitados seriam realizados no hospital da sua área de residência. Quando os familiares chegaram ao hospital F.F. já tinha desaparecido.

    Santarém tentou explicar-se: “Foi atribuída a prioridade urgente e encaminhado para a sala de espera de doentes urgentes, sala contígua à sala de triagem. O doente apresentava-se consciente e orientado”, justifica o relatório da unidade hospitalar, que ainda sublinha o facto de o idoso “ter vindo de outro hospital” e ter vestida “a sua própria roupa”. Ao homem de 87 anos, sozinho, foi dito para aguardar na sala de espera.

    O doente acabaria por voltar às Urgências horas depois, acompanhado pela filha, e ficou internado no dia seguinte. O Hospital de Santarém reconheceu que “houve efetivamente o não cumprimento de uma orientação existente no serviço, a qual pressupõe que qualquer doente transferido de outro Hospital, independentemente da prioridade atribuída, não aguarda em sala de espera, devendo ser encaminhado de imediato para uma das salas de tratamento consoante a área a que pertença e ficando sob vigilância dos profissionais dessa área”.

    Pediu desculpa e lamentou o sucedido, mas a ERS deliberou, entre outras medidas, que o hospital adeque os seus procedimentos “às características dos utentes ou outros circunstancialismos que elevem, acrescidamente, as exigências de qualidade, celeridade, prontidão e humanidade referidas, nomeadamente, em razão da patologia, idade e especial vulnerabilidade dos utentes, não os sujeitando a longos períodos de espera para atendimento e respeitando os tempos-alvo previstos no Sistema de Manchester”.

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