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    Contra hegemonias nos estudos literários: O “Sul Global” na literatura-mundo

    A Literatura-Mundo é uma disciplina que desde 1990 vem conhecendo larga difusão. Mas, as interrogações acerca da sua rigorosa definição têm dado lugar ao surgimento de um alternativo campo do conhecimento, os Estudos Literários Globais.

    A natureza controversa da denominação reside no facto de não possuir suficiente alcance, em virtude de as línguas europeias serem os únicos critérios de definição do seu campo e de selecção dos materiais de estudo, delas dependendo exclusivamente.

    Mas as variedades nacionais dessas línguas que se tornaram transnacionais revelam a existência de outras culturas, já que a diversidade linguística e cultural é, na verdade, a realidade dominante nos países africanos cujas línguas oficiais são europeias.

    Nos Países de Língua Portuguesa, foi em Portugal que, há cerca de três anos, se registou uma das iniciativas que assinala os efeitos da crescente vaga do campo de estudos, visando legitimar uma “Literatura-Mundo Comparada”.

    O Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa publicou uma antologia, “LiteraturaMundo Comparada: Perspectivas em Português”,de que fui um dos colaboradores convidados, partindo do postulado segundo o qual o objectivo é “contribuir para a construção da LiteraturaMundo (Weltliteratur, World Literature) em português e em Portugal”.

    Como já referi, nos espaços académicos do chamado “Norte Global”o uso dessa denominação disciplinar não é unânime. A norte-americana Emily Apter escreveu um livro intitulado “Against World Literature”, (Contra a Literatura-Mundo), fundamentando a sua perspectiva na intradutibilidade das obras não-ocidentais, contrariamente ao que pretendem os seus defensores.

    O estudo da posição que as literaturas africanas ocupam na Literatura-Mundo, enquanto domínio da literatura comparada, definida como investigação de qualquer literatura nacional do ponto de vista internacional, permite verificar a existência de uma tensão entre a lógica da diversidade e a lógica da hegemonia linguística.

    A manifestação concreta disso verifica-se através da penetração geopolítica de critérios estéticos e editoriais típicos dos sistemas literários nacionais ocidentais no espaço de outras literaturas consideradas “periféricas”, de acordo a ferramentas analíticas eurocêntricas desse domínio dos estudos literários.

    O “Sul Global” literário

    Em finais do século XX, essa geopolítica linguística e literária toma forma com a consagração do “Sul Global”, enquanto categoria, por oposição ao “Norte Global”. A

    Notabilizou-se com uma abordagem daquilo a que designou por “república mundial das letras”.Foi professora visitante no Departamento de Estudos Românicos da Universidade de Duke, Estados Unidos da América.

    Gayatri Chakravorty Spivak (1942), e Shu-Mei Shih (1961), representantes do “Sul Global”,são asiáticas cujas ideias têm impacto no mercado académico global, quando se trata de problematizar o poder de definição no domínio das Humanidades. Curiosamente, estas duas interlocutoras são oriundas de dois países emergentes que integram os chamados BRICS. Uma é indiana e outra chinesa.

    Spivak, professora de Humanidades na Universidade de Columbia, Estados Unidos da América, e fundadora do Instituto de Literatura Comparada e Sociedades, é uma proeminente autoridade dos estudos feministas, estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais como pode ser comprovado pelo seu livro “Crítica da Razão Pós-Colonial”.

    Shu-Mei Shih, presidente da Associação Americana de Literatura Comparada, professora de Literatura Comparada, Línguas e Culturas Asiáticas e Estudos Asiáticos Americanos na Universidade da Califórnia, Los Angeles, é responsável pela criação de um novo campo científico interdisciplinar, os “Estudos Sinófonos”.

    Por sua vez, no seu interessante artigo “Global Literature and the Technologies of Recognition”, (Literatura Global e Tecnologia de Reconhecimento), Shu-Mei Shih problematiza o discurso académico e o mercado literário como tecnologias de reconhecimento a que são submetidas as literaturas não-ocidentais, consideradas minoritárias, de acordo com as chamadas teorias “universalistas” eurocêntricas. Ela entende que no discurso académico ocidental o “reconhecimento” de outras literaturas assenta na pura negligência ou ignorância fingida, características da produção neocolonial de conhecimento e da divisão global do trabalho intelectual. Observa que o silêncio e a ignorância exacerbam as estratégias de hierarquização do que designa como sendo a “política de representação e reconhecimento centrada no Ocidente”.Para Shu-Mei Shih a generosidade dos académicos ocidentais é sinónimo de uma atenção desigual e menos rigorosa, em matéria de avaliação das literaturas não- ocidentais, consideradas minoritários e ausentes do cânone literário ocidental.

    hegemonia do poder de definir do “Norte Global” e os seus fundamentos linguísticos conferiram dignidade institucional ao espaço ou objecto em que se confinam as outras sociedades, civilizações, culturas, línguas e literaturas, não-ocidentais, quando, em 2007, foi criada a revista “The Global South”, “O Sul Global”, e a constituição de grupos de trabalho nos congressos da Associação de Línguas Modernas, em painéis dedicados aos Estudos Culturais e Literários Comparados, a organização académica legitimadora dos Estados Unidos da América.

    No fundo, trata-se de um eufemismo através do qual se substitui a expressão “Terceiro Mundo”, outra categoria, já esvaziada de sentido com o fim da Guerra Fria. Este é o sentido que inspira o artigo inaugural da referida revista especializada, assinado por Arif Dirlik. Mas, contra-argumentos também não faltam. A sul-africana Isabel Hofmeyr, dá o tom com o seu “Against the Global South”, (Contra o Sul Global), ao considerar que o termo pode ter esgotado a sua utilidade praticamente antes de começar.

    Contradiscursos

    A este propósito, vou destacar o essencial das ideias de três reputadas especialistas acerca dos problemas que se levantam.

    Pascale Casanova (19592018) é francesa, distinta crítica literária da sua geração, infelizmente, já falecida.

    Na sua argumentação, Pascale Casanova admite a existência de uma geopolítica das relações literárias internacionais. Diz ela que a “república mundial das letras” é caracterizada por uma dominação política através das línguas. Não sendo a língua um instrumento neutro, mantém dependências políticas.

    Assim, a dominação política é exercida sob a forma linguística, implicando por isso uma dependência literária. Para Pascale Casanova as línguas europeias como factor de potência suscitam uma categorização dos fenómenos com um forte acento etnocêntrico num exercício eufemístico que legitima a marginalização ou periferização das “pequenas literaturas” como as Literaturas Africanas escritas em línguas europeias. Desvenda assim o carácter maligno das teorias dominantes no mercado literário ocidental.

    Por Gayatri Chakravorty Spivak e Shu-Mei Shih nutro uma simpatia que se funda nas suas preocupações com a situacionalidade das teorias e a posicionalidade dos seus autores, no âmbito da geopolítica dos estudos globais onde se inscreve o sul do continente asiático.

    Tematizando a problemática, tal como o demonstra no seu livro “The Death of Discipline”, (A Morte de uma Disciplina), Spivak vem propor o abandono da sofisticada tradição linguística da Literatura Comparada ocidental que se estrutura em torno do que designa por anglo-hierarquização do que designa como sendo a “política de representação e reconhecimento centrada no Ocidente”.Para Shu-Mei Shih a generosidade dos académicos ocidentais é sinónimo de uma atenção desigual e menos rigorosa, em matéria de avaliação das literaturas não- ocidentais, consideradas minoritários e ausentes do cânone literário ocidental.

    Ética da equidistância literária

    Os imperativos éticos da literatura conduzem certos sectores do mundo académico para a advocacia do “fim da teoria pós-colonial”, pois já não existe um único centro, tudo se fragmenta em legados de outros sujeitos da alteridade num mundo policêntrico e de partes equidistantes cujo movimento conduz àquilo a que escritor queniano Ngugi wa Thiong’ o designa por “globaléctica”, no seu livro de ensaios “Globalectics. Theory and the Politics of Knowing”, (Globaléctica.Teoria e Política do Conhecimento), publicado em 2012.

    Trata-se de um neologismo. É uma palavra que deriva dos termos “globo” e “dialéctica”. Exprime a contenção recíproca da heresia e a harmonia no tempo e no espaço, onde o tempo e o espaço são aliados um do outro. Remete para a necessidade da leitura global.

    É uma maneira de abordar qualquer texto literário, a qualquer hora e lugar, de tal modo que os seus conteúdos e temas originem uma conversa livre tecida com outros textos literários do seu tempo e lugar, proporcionando da melhor maneira possível o máximo das suas potencialidades a qualquer ser humano.

     

     

     

     

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