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    A velhice

    Minha querida Mãe, referindo–se à sua avançada idade, depois dos 80 anos, dizia que a “velhice não presta, é um pecado”. Isso era a tradução dela para nós da forte expressão na sua língua que dizia “ okuka kudia tuji”(a ortografia?). Será? Talvez e, mesmo para alguns, será as duas coisas.
    Mas, chegar àquela idade, nem tudo a todos é dado. Para alguns é pela graça dos seus deuses a quem se dirigem regularmennte ou apenas esporadicamente com os seus “ai, meu deus”, ou “graças a deus”, ou ainda “deus seja louvado”, ou “que deus me perdoe”,enfim um sem número de recursos e pedidos ao criador omnipotente e omnisciente que tudo vê, tudo sabe, ama, perdoa e castiga.
    Ora no caso de minha Mãe, da “dona Chica doutor” como era conhecida e nominada na nossa Gabela natal por ser a companheira de um médico, seria por razão das mazelas de que se queixava e sofria, em particular as dores nas “juntas e nos ossos” e que lhe apareceram e atormentavam apenas na velhice que esta lhe merecia aquela definição? Castigo do seu
    Deus não, porque ela era “católica, apostólica e romana”. Mas, apesar das tais mazelas, ela suportava-as bem e, até ao seu passamento, aos 92 anos de idade, manteve-se lúcida, vacando
    às suas ocupações e tratando de si com o mínimo de assistência familiar ou doméstica. Quem me dera chegar também assim, daqui a 10 ou 15 anos…,velho mas não envelhecido.
    Mas afinal o que é a velhice? Segundo o dicionário de português, velhice pode ser o “estado ou condição de velho”, o “último quartel da vida” ou “o conjunto dos velhos”. No entanto, algures, não me lembro onde, encontrei que se considera alguém de velho após a “segunda idade” ou seja, depois dos 59 anos; assim: – está-se na terceira idade”, dos 60 aos 80 anos; – entra-se na “quarta idade” ou “velhice”, dos 80 aos 90 anos; – atinge-se a “longevidade”, dos 90 aos 100;
    – É-se “matusalém”, dos 100 para diante ( os patriarcas da Bíblia e mesmo alguns, raríssimos, dos nossos compatriotas).
    Ora bem. Se repararmos nas idades dos nossos dirigentes, governantes (melhor dizendo executantes/auxiliares), deputados, juízes e politicos em geral, constatamos que alguns,
    e não poucos, estão na faixa dos da terceira idade e são, como diriam os actuais jovens, anciãos, alguns já caducos, que estariam melhor cuidando dos netos e bisnetos…para os deixar ocupar tão desejados e ambicionados lugares. É, pela ordem natural do viver, justo e compreensível mas e quando se tem os conhecimentos e outras capacidades exigidas para o exercício das grandes e outras responsabilidades que alguns dos tais “velhos caducos” veem exercendo com competência e eficiência.
    Mas quem, mesmo entre os anciãos, quererá deixar tais lugares que conferem aos titulares chorudos salários, bastantes benesses, algum prestígio e muitas outras vantagens, entre as quais as da possibilidade de se apossarem de empresas e outros negócios e ainda de se locupletarem com bens e dinheiros do Estado? Infelizmente, verdade seja dita, poucos os há.
    Voltando à “velhice”: ninguém gosta de ser chamado de “velho” porque lembra outros termos mais aflitivos como “decrepitude” , “senescência”, “caduquice”, “senilidade”, “rabugice” e outros quejandos. Mas tudo muda quando carinhosa e respeitosamente se é tratado de “meu Velho”, “meu Kota”, “meu Papucho”, “mais Velho”, “Sekulo”, “O Soma yetu”, “Patriarca”.
    O que mais se lamenta, entristece e aflige, quando se é velho, é a diminuição ou a perda das capacidades físicas e fisiológicas e das faculdades mentais. Dores de toda a ordem, em particular as articulares; o não poder acompanhar as brincadeiras dos netos e bisnetos porque os músculos e os pulmões já não estão aí; a apetência sexual no mais baixo quando não nula; os resultados dos testes medicos com os açúcares e os colesteróis e as transaminases muito acima do aceitável,
    que obrigam a reduzir ou mesmo suspender alguns dos prazeres culinários e as patuscadas com muita libação à mistura; a flacidez e o enrugar das peles, a hipotrofia muscular; a fugaz ou até persistente perda da memória dos acontecimentos recentes e até as do passado, fazendo temer o
    descambar para o Alzheimer, a tal “do alemão”; a dificuldade em entrar nas tecnologias modernas da informação (Internet, telefones “andróides”, “tablets”…); enfim, a rabugice, o recontar das mesmas estórias e anedotas, a tendência para usar “palavrões” e contar estórias escabrosas e o fácil adormecer frente à televisão ou no cinema. A minha querida Mãe tinha talvez mesmo razão…
    Mas, felizmente, quando se viveu uma vida plena, com (ou sem) moderação, que tenha permitido realizar os sonhos, seus e de outros, quer tenha ou não plantado uma árvore ou escrito um livro ou até se tenha reproduzido numa prole, reduzida ou alargada, e a tenha criado, educado, instruido e habilitado para a caminhada ao longo da vida, a velhice é uma bênção, um manancial de saber, de conhecimento e de experiência. Ela, a caduquice, poderá não ser um fardo imprestável, uma chatice.
    Neles, nos velhos, podem os que lhes reconhecem essas qualidades encontrar conselhos alicerçados na sabedoria acumulada ao longo dos anos em que tiveram a felicidade de sobreviver num mundo cheio de obstáculos, de perigos, de desavenças entre os homens, até mesmo de
    desumanidades.
    Não é sem razão que se diz que ”quando morre um velho é uma biblioteca que desaparece”. Mas nem sempre os jovens e os da “segunda idade” se dão conta disso querendo, de toda a forma e por todos os meios, ocupar os lugares dos velhos, quantas vezes sem o saber e a experiência para tal necessários.
    Quanto a mim, a cavalo nos meus 8 decénios, estou na “velhice” e sintome feliz por ter atingido a provecta idade que é a minha com as capacidades e faculdades, infelizmente nem todas, que me vão permitindo ainda, com razoável saúde, apreciar a boa comida com uma boa garapa como minha querida Mãe sabia tão bem fazer, olhar para uma bela mulher com saudades da juventude,
    enfim, usufruir da reforma, junto da minha larga e alargada família.
    Além disso, também plantei uma árvore no Huambo, e até na longínqua Índia; escrevi umas coisas (uma tese, uma brochura de divulgação médica, artigos científicos, entre outras) e fiz 7 filhos, além das muitas guerras, andanças e outos tantos mambos, ao longo de uma caminhada
    de oito décadas.
    Sou pois um ancião reformado ainda activo e, mais ou menos, realizado.
    Na minha qualidade de “ diplomata emprestado” tenho conhecido e vivido em outros países o que levou o meu colega, camarada e amigo Bavil (João Baptista V. L.) dizer: “oh Mário,
    estás numa boa!”. Pois é, meu caro João, “na aparência”, como diria minha Mãe, estou mesmo..
    P.S. Este texto foi escrito antes do passamento do Bavil, ocorrido no dia 10 de Maio de 2012.
    Mário Afonso D’ Almeida –Kasesa
    (Novo Jornal)

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