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    À beira da crise, Cunene luta pela sobrevivência

    Angop

    Sem chuva, sem pasto e com risco eminente de crise humanitária. Há oito meses, o Cunene enfrenta a mais severa estiagem da sua história, que já deixou mais de oitocentas mil famílias e mais de um milhão de bovinos à beira da morte.

    A seca nesta província do Sul de Angola, com uma extensão territorial de 75 mil 955, 61 metros quadrados, propaga-se como um “vírus”, sem poupar homens, plantas e animais, que disputam, dia e noite, a mesma fonte de vida: a água.

    São, no total, 857 mil 443 pessoas a viver os efeitos da estiagem e um milhão e 100 bovinos em risco de morte, por fome ou por sede. A falta de chuva prejudica a agricultura de subsistência.

    Os campos agrícolas estão quase sem reservas e a fome já se faz sentir. Desde Outubro de 2018, as sementes não germinam e a colheita está comprometida.

    Como resultado da falta de chuva, problema recorrente no Sul de Angola, 171 mil e 488 famílias encontram-se, actualmente, atribuladas naquela província.

    Isso representa 79,1 porcento da população total do Cunene, estimada em um milhão, 157 mil e 491 habitantes, grande parte dela a viver no meio rural.

    Deste número, 59 mil e 925 famílias pertencem ao município da Cahama, 13 mil e 105 ao da Cuanhama, 10 mil e 735 ao de Curoca, sete mil e 686 ao de Cuvelai, 22 mil e 998 ao de Namacunde e 57 mil e 39 ao de Ombadja, região que mereceu, recentemente (dia 4 deste mês), a visita do Presidente da República, João Lourenço.

    A título ilustrativo, 299 mil e 623 pessoas padecem de fome e sede só na Cahama (municipalidade mais fustigada), 65 mil e 526 no Cuanhama, 53 mil e 677 no Curoca, 38 mil e 432 no Cuvelai, 114 mil e 991 em Namacunde e 285 mil e 194 em Ombadja.

    Em consequência da seca, 276 escolas de diversos níveis de ensino encontram-se afectadas, nove das quais encerradas, prejudicando, globalmente, 54 mil e 500 alunos que acompanham e ou ajudam os pais na pastorícia.

    Segundo as autoridades locais, na Cahama estão afectadas 17 escolas e três mil e 31 alunos, no Cuanhama 186 escolas e 39 mil e 573 alunos, no Curoca 15 escolas e 266 alunos, no Cuvelai quatro escolas e 957 alunos e em Namacunde 54 escolas e 10 mil e 03 alunos.

    Em relação ao gado, principal activo económico da província, a seca afectou, até 05 de Maio, perto de um milhão e 100 bovinos.

    Destes, mais de 54 mil e 152 estão na Cahama, 320 mil em Cuanhama, 52 mil no Curoca, 21 mil e 283 em Cuvelai, 120 mil e 137 em Namacunde e acima de 340 mil em Ombadja.

    Até ao momento, morreram 26 mil e 267 animais (uma média de três mil e 283 cabeças), incluindo caprinos e bovinos, o que levou os governos central e local a adoptarem medidas emergentes e estruturantes para minimizar os efeitos.

    Relativamente à agricultura, a ausência de chuva deixou mais de 205,3 mil hectares de cultivo de cereais, como massango, massambala e milho, sem possibilidades de maturação, comprometendo a campanha agrícola 2018/2019/2020 na totalidade.

    Para piorar as contas da população local, estão perdidas mais de 80 mil toneladas da produção projectada para a referida campanha, cujas sementes foram lançadas à terra em Outubro último, envolvendo 99 mil famílias camponesas.

    Estas aproveitaram apenas 40 porcento, dos 205 mil e três hectares previstos.

    Quatrocentos a 500 mililitros é a quantidade de água que se precisava para o cultivo nesse período, mas, por causa da seca, registaram-se menos de 75 mililitros de água por metro quadrado, insuficientes para sustentar a produção em todo Cunene.

    Como consequência, a má alimentação tomou conta das comunidades rurais, provocando, em nove meses, a morte de 60 crianças, dos zero aos cinco anos de idade, por má nutrição severa e aguda moderada, de um total de três mil e 978 casos.

    Com essa realidade, o Cunene está à beira do caos. Sem comida e sem água, o seu destino depende da chuva. As autoridades temem que, se a mesma insistir em não cair, a província entre num verdadeiro colapso.

    A acontecer esse cenário, de acordo com o governador Virgílio Tyova, a província enfrentará “verdadeira catástrofe” humanitária, “nunca antes vista”.

    Adverte que, se o cenário de seca se prolongar, como indicam as projecções climáticas, “toda vida socio-económica da província estará ameaçada”.

    O político diz estar eminente uma crise de fome e de doenças do foro hídrico, além de haver a possibilidade de empobrecimento extremo das populações.

    Para impedir o mal maior, Vigílio Tyova diz que o Cunene necessita de 343 mil 662, 86 toneladas de bens alimentares diversos e outros para combater a seca.

    Isto resume-se em 61 mil e 735,87 toneladas de massango, milho em grão, fuba de milho e arroz, 15 mil 433,99 de feijão, mil e 543,36 de sal, 30 mil e 867,92 de soja, dez mil 289,29 de óleo alimentar, 30 mil 867,92 de peixe seco e sete mil e 716,95 de sabão.

    Vigílio Tyova acrescenta serem, igualmente, necessários 106 milhões, 770 mil e 500 kwanzas para a mobilização de distintos recursos, tendentes ao asseguramento do Programa de Transumância, no âmbito do Programa de Emergência Contra a Seca.

    O valor destina-se ao aluguer de 13 camiões para a transportação de animais, pagamento de subsídios a 75 técnicos (por contratar), à compra de matéria-prima para a produção de sais minerais, à alimentação do pessoal nas zonas de transumância e à compra de combustíveis.

    Para prevenir ou combater algumas doenças, resultantes desse fenómeno natural, a província precisa de 12 bidões de 40 quilogramas de hipo cloreto de cálcio, dois mil metronidazol (comprimidos), igual número de doxiciclina e 40 embalagens de sais de rehidratação oral (SRO), de acordo com aquele governante.

    São precisas, também, mil caixas de suplementos nutricionais, a mesma quantidade de “Plunpynut” e 60 tendas para escolas e unidades sanitárias itinerantes.

    Dada a dimensão do problema, o governador apela à sensibilidade dos sectores empresariais público e privado, para minimizar o sofrimento da população.

    Em relação ao vestuário, necessitam-se de 37 toneladas de roupa de fardo para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos do Cahama, Curoca, Ombadja, Namacunde, Cuanhama e Cuvelai, para a mitigação dos efeitos da seca.

    Sofrimento no Curoca

    Dos seis municípios do Cunene, a população do Curoca é a que mais sofre com a fome e a sede. Por isso, a população da povoação do Ombwa, comuna de Oncócua solicita ajuda alimentar urgente, para minimizar o sofrimento.

    Esse grito de socorro é representado pelo soba da aldeia de Cambundo, José Mwani “Tira-mão”, de 71 anos de idade, que pede ao Governo atenção urgente à comunidade, com bens alimentares para aliviar a dor da fome que muitas pessoas estão a passar.

    “Os campos estão sem produção, um indicador de que haverá muita fome”, diz, apelando à ajuda do Governo, com produtos como o massango e o milho, fundamentalmente, para atenuar as consequências futuras da seca.

    A autoridade tradicional solicita a abertura de um furo de água na aldeia, para encurtar as grandes distâncias que as populações percorrem na busca do líquido e minimizar o impacto da seca que tende a se prolongar até ao próximo ano.

    Por seu turno, o administrador da povoação de Ombwa, Adriano Samba, diz que a situação alimentar das famílias é crítica, visto que as reservas já acabaram, obrigando muitas delas dormirem à fome, daí clamarem por sal, óleo, fuba e outros alimentos.

    “Este povo é solidário, consegue partilhar o que tem com os mais necessitados, inclusive com os animais. Mas nesta altura ninguém tem e acabam por alimentar-se mal e até contrair algumas doenças, como diarreias aguda e má nutrição”, desabafa.

    Adriano Samba sublinha que a seca já provocou a morte de 22 bovinos, dos três mil e 500 controlados em Ombwa, tendo os demais sido transferidos para as áreas que oferecem boas condições de pasto para sobreviverem desta calamidade.

    O criador de gado Miguel Katutyi, de 37 anos de idade, afirma que a seca tem sido o maior problema que enfrentam na actividade da pastorícia, sendo este um dos piores anos, à semelhança de 2011 e 2012, em que muitas pessoas e animais foram afectados.

    Faz saber que durante este período de seca perdeu 27 cabeças de gado e o pouco que restou tem sabido gerir, vendendo alguns para comprar alimentos essenciais para sustentar a família. Para variar a dieta, troca também a carne por outros produtos.

    Já o administrador comunal de Ombala Yo Mungo (município de Ombadja), Portásio Muatilimuno África, lamenta a falta de furos ou de um só chafariz na localidade, o que tem obrigado a população a escavar para encontrar água 30 a 40 metros abaixo do solo.

    “Por causa dessa prática, recentemente morreu cá uma jovem que ajudava o marido a puxar o balde de água, tendo escorregado e caído no buraco. Essa é a vida que temos levado, até porque os camiões cisternas dificilmente chegam às povoações profundas”.

    Na comuna do Nehone (Cuanhama) o quadro é mais grave, o que leva o ancião Ernesto Shilikomwenjo (67 anos de idades) a perder diariamente litros de calor a perfurar 50 metros da terra com picaretas, enxadas e pás, em busca de água no leito rochoso.

    O mesmo diz ser a única alternativa para a sobrevivência e que a escavação de dez metros, por duas pessoas, dentro de uma chimpaca, pode levar um mês devido à solidez/dureza da terra, servindo a água encontrada para ajudar toda a comunidade.

    “A situação aqui está difícil. O sofrimento é muito e não podemos morrer de sede. Por isso decidimos fazer esses furos para procurar água debaixo da terra”, lamenta o idoso.

    Sobreviver à seca

    Para sobreviver nesse ambiente, criadores de gado andam dia e noite até encontrar cacimbas ou chimpacas (reservatórios de água) e chanas com capim para o gado.

    Nesse processo de transumância (procura de pasto), há quem, por amor ao gado, percorra mata adentro, por mais de 100 quilómetros, sob sol ardeste ou escuridão.

    Embora se trate de dois seres vivos diferentes, os habitantes e o gado das 436 localidades afectadas, desde Outubro de 2018, partilham o sofrimento e a angústia, percorrendo diariamente longas distâncias à procura de comida e água.

    Pelo caminho, os animais mais fragilizados chegam a morrer e alguns são sacrificados para a alimentação dos próprios pastores.

    Para evitarem prejuízos maiores, muitas cabeças chegam a ser vendidas a menos de 50 mil kwanzas, enquanto outras são trocadas com bens alimentares diversos.

    Nessa altura em que as reservas de massambala, milho e massango acabaram e os apoios “tardam” a chegar, as 171 mil e 488 famílias afligidas vêm-se forçadas a remediar-se com carne mal confeccionada, geralmente sem sal e sem óleo.

    Consomem, também, água colorada a verde, turva ou salobra.

    O sofrimento é grande e há exposição a graves doenças, nas 765 aldeias rurais visadas. Por lá, só se vêem crianças desnutridas, sujas e mal amanhadas, e adultos empoeirados, descalços e com roupas cansadas.

    Ainda assim, a máxima de que a salvação é individual não se aplica no Cunene, porque o gado ajuda as populações e vice-versa, de tal sorte que transmitem um elevado sentimento de cumplicidade e solidariedade comum.

    Bebem do mesmo “vale”, comem da mesma lavra, percorrem as mesmas distâncias, transportam cargas semelhantes, arriscam-se às mesmas doenças, pernoitam nas mesmas matas, recebem doações iguais, fecundam nos mesmos locais e morrem um pelo outro.

    Para melhor entendimento, socorrem-se da água de chimpacas, lagos, lagoas e rios, procuram zonas para cultivo e pasto, e carregam juntos bidões, instrumentos de caça e produtos alimentares durante a transumância (caminhadas ao encontro de capim).

    Animais e pessoas enfrentam os mesmos problemas intestinais, juntos dormem ao relento – expostos a animais ferozes, são ajudados com vacinas, sal, feno e bens de primeira necessidade, e quer o gado quer as “pastoras” dão à luz no campo.

    Ao longo do caminho, os homens carregam (nas costas ou no colo) os vitelos (crias de bovinos), ao passo que os bois e burros rebocam carroçarias artesanais com kibacas e bebés recém-nascidos, das senhoras que acompanham os maridos na transumância.

    Governo procura soluções

    O fenónemo da seca está a mexer com várias sensibilidades, quer no Cunene, quer no resto do país. O Governo, as autoridades tradicionais, as igrejas e as comunidades locais lutam, unidos, em busca de soluções adequadas para mitigar os efeitos.

    Entre as medidas em curso constam acções de abastecimento de água às comunidades, assistência humanitária com bens de primeira necessidade (alimentares e não alimentares) e apoio aos criadores de gado, com feno.

    Foram também disponibilizados 25 camiões cisternas para as 20 comunas.

    A propósito, o Presidente da República, João Lourenço, aprovou, a 1 de Abril de 2019, um pacote de USD 200 milhões destinados à construção de grandes obras de engenharia hidráulica (duas barragens hídricas, respectivos canais adutores de água, 89 chimpacas, transvaze e furos).

    O objectivo é construir um sistema de transferência de água do Rio Cunene, a partir da localidade de Cafu (no município de Ombadja, até Shana, nas áreas de Cuamato (na mesma municipalidade) e Namacunde, para contrapor os efeitos da seca na província.

    A construção de uma barragem na localidade de Calucuve (Cuvelai) e outra na região de Ndue, comuna do Oshimolo, município do Cuanhama, com canais adutores (ambas orçadas em USD 60 milhões) são os projectos concretos definidos pelo Presidente.

    Preocupado com o assunto, João Lourenço deslocou-se ao Cunene, concretamente à povoação de Oshiwanda, e no final da visita anunciou o reforço do Programa de Emergência de Combate à Seca nesta província.

    “A minha presença aqui é sinal de que o Executivo está atento ao que se está a passar em todo o Sul de Angola, incluindo o Namibe, Cuando Cubango e a Huíla, cada uma à sua medida. Saímos com a impressão de que estamos perante uma situação bastante crítica”, declarou, na altura.

    Na sequência, o Executivo elevou para USD 600 milhões o valor para combater a seca nestas quatro províncias, com particular atenção ao Cunene, que conta com um extra de quatro mil milhões de kwanzas, para implementar o programa de emergência.

    Enquanto se espera pela execução dos projectos, outras medidas concretas estão em curso.

    Devido à falta de pasto, centenas de animais, sobretudo boi e o cabrito, estão a ser transferidos para o Lubango, província da Huíla.

    Por outro lado, além da ajuda com vacinas e distribuição de feno (capim para o pasto do gado), o Ministério da Agricultura e Florestas propôs-se a comprar (em criadores) mil cabeças de bovino para recuperação, sendo que os mais fragilizados irão para o matadouro.

    É com essas medidas que o Governo angolano se propõe responder ao grito de socorro do povo do Cunene, ávido por soluções emergentes para manter o fôlego da vida.

    No “campo de acção”, a realidade é dura e a hora é de trabalho intenso. Com chuva ou sem chuva, o Cunene busca forças para resistir à seca.

    Enquanto dos Céus não cai a “chuva da salvação”, o povo clama pelo apoio incondicional da Nação, ciente de que todos são poucos para vencer esse combate.

    Crianças, adolescentes, adultos, velhos e idosos choram, dia e noite, em busca de pão e água, para sobreviverem. Afinal, o que será do Cunene, se a chuva continuar “foragida”?

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