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    ‘Quero acrescentar valor à sociedade angolana’ – Karina Gonçalves

    Na escola tinha pânico de ir ao quadro por causa da timidez, mas hoje é um dos rostos da comunicação nacional. Formada em Direito, a apresentadora da RTP África falou à Caju em Lisboa.
    Tornou-se conhecida como Karina, mas o seu primeiro nome é Tânia. É assim que a família e os amigos a tratam?

    Não. Desde pequenina que sempre me chamaram Karina em casa. Aliás, nem sei porque é que os meus pais não me baptizaram logo de Karina.

    Na escola também era assim?

    Aí já não, sempre fui Tânia. Tanto mais que alguns ex-colegas meus ao verem-me hoje perguntam: ‘Chamas-te Karina?’. Até acaba por ser engraçado. Depois, já na faculdade, isso mudou: disse logo que queria ser tratada por Karina, acho que por causa do hábito e também porque nunca gostei muito de Tânia, embora hoje em dia o nome já me comece a agradar mais. Aliás, não sei se por associar a identidade Karina à televisão, inconscientemente acabei por reservar o nome Tânia para o campo jurídico.

    Então é identificada como Tânia no meio das leis?

    Sim. No Direito sou Tânia.

    Mas já é advogada?

    Ainda não. Formei-me, fiz um estágio de um ano, mas falta-me a inscrição na Ordem [dos advogados], que ficou adiada por causa de uma proposta que recebi do jornal Expansão, mesmo perto da altura em que iam começar as aulas na Ordem. Foi uma das decisões mais difíceis da minha vida porque por um lado percebia que estava a ter uma oportunidade única, mas por outro sentia que estava a abdicar de uma etapa muito importante.

    Que proposta tão tentadora foi essa?

    Fui convidada para assumir uma posição de responsabilidade num projecto de media que acabou por não avançar, mas que implicou sair de Luanda. Vim para Lisboa fazer duas formações: uma em gestão de negócios e outra em ciências da comunicação.

    Agora está na RTP África, com o programa Viva Saúde. Como surgiu essa oportunidade?

    Respondi a um anúncio, dirigido a apresentadores africanos, para um novo programa de televisão. Enviei o meu currículo no final de Outubro, depois fui contactada pela produção e em Dezembro já estava a gravar na Fundação Champalimaud [Lisboa].

    Quando soube que tinha de ficar em Lisboa não hesitou?

    Não, porque sempre quis fazer um programa que acrescentasse valor ao telespectador. Não quer dizer que os outros programas que fiz antes não fossem enriquecedores. Pelo contrário. Sei que da mesma forma que eram divertidos para mim também o eram para quem assistia, porque tive esse feedback. Mas acho que qualquer programa que acrescente informação prática é muito mais interessante do que outro que seja só entretenimento. Além disso, o Viva Saúde tem a particularidade de poder ser gravado em qualquer país e, neste momento, até estamos à espera de um patrocínio para gravar em Luanda. Depois, a ideia é alargar aos vários PALOP, criando uma maior interacção com os países para os quais a RTP África transmite. Acho que isso vai ser interessante.

    Sendo um programa mais informativo, também é mais exigente ao nível da preparação?

    É, porque tenho de ler bastante. E não me cinjo apenas aos dossiês que recebo da produção, com informações e também algumas perguntas que devo fazer. Muitas vezes vou procurar outros dados sobre a matéria, na internet ou em livros que tenho em casa, e acabo por acrescentar informação, modificar partes e até tirar algumas perguntas antes do dia da gravação. Também mudo algumas palavras para o texto se adequar ao meu discurso, à minha maneira de falar, porque acho que o programa tem de ter a minha identidade. De outra forma não faz sentido. Não posso deixar isso totalmente nas mãos da produção, porque se sou eu a dar a imagem também tenho de ter essa preocupação de preparar o que faço. Isso é uma característica muito minha: gosto de dar um cunho pessoal a tudo o que faço. Acho até que ponho o nariz demais, devem achar-me uma chata.

    Já houve reclamações na produção?

    Ainda não. Pelo menos não à minha frente. [risos]

    Com tantas informações sobre saúde, sente-se quase uma médica?

    Não [risos]. Mas já me dizem coisas do género: ‘Vê lá se o não sei quantos tem aquela doença, ele está com aquele sintoma manda só o dossiê por email’. Isso está a ser muito engraçado.

    Não pensa retomar o percurso no Direito?

    Mais tarde, nesta fase ainda não. Até porque quero fazer isso em Angola e neste momento estou em Portugal. Sei que também o poderia fazer cá porque tenho dupla nacionalidade, mas quero trabalhar em Luanda e partilhar o que aprendi com a minha comunidade. Quero acrescentar valor à sociedade angolana.

    Nem sequer se sente dividida, entre o regresso para Angola e a continuidade em Portugal?

    A nível de televisão, um bocado, porque gostava de continuar a fazer coisas para a RTP África, mas a nível jurídico não. Até porque em Portugal o mercado está inundado de juristas, advogados e juízes.

    Além do lado profissional, imagino que o emocional também pese nessa decisão. Sobretudo porque diz que os seus pais são os dois grandes pilares na vida.

    Sim. O meu pai é o meu ídolo e a minha mãe é a minha melhor amiga, uma pessoa que tentou sempre ouvir-me e compreender-me.

    Falam de tudo, sem tabus?

    Com a minha mãe, sim. Falo de tudo. Com o meu pai é um bocado diferente. Pai é pai, né? Tem aquela postura de que tem de ser muito severo e sério.

    É rédea curta?

    Sempre foi. Em todos os sentidos, tanto por causa de festas como em relação à proximidade com amigos. Sempre impôs horários para sair e para voltar.

    Já não é assim hoje em dia.

    Quer dizer…

    Ainda é?

    É mais ou menos o mesmo género, eu é que lido com isso como uma brincadeira e rio-me. Por exemplo, às vezes estamos a falar no Skype e se estou de saída para algum lugar ele começa logo: ‘Vais aonde?’. Explico que vou sair um bocado com uns amigos para me divertir, e ele: ‘Mas para quê? A esta hora? Esta é hora de voltar para casa’. Aí eu digo que é a essa hora que se sai para uma festa ou para beber um chope, mas o meu pai continua: ‘Está muito tarde, cuidado. Vê lá, tu vives longe’. Mas sei que é tudo preocupação.

    Os seus pais são muito protectores?

    O meu pai sim, a minha mãe, não. Acho que somos muito próximas também por causa disso. A minha mãe foi sempre um meio-termo lá em casa, lembro-me de a ouvir dizer ao meu pai: ‘Zé, então? A miúda também tem de viver, cair, bater com a cabeça, saber quais são as coisas más da vida para perceber que não deve ir por aí. Não a deves prender tanto, ela precisa de crescer e de ultrapassar as coisas por si mesma’. Mas por outro lado, em relação à minha viagem para Portugal, o meu pai queria que eu viesse para ter a experiência de viver sozinha enquanto que a minha mãe preferia que continuasse debaixo da asa dela.

    Mas numa coisa coincidiram, os dois não viram com bons olhos a sua entrada na televisão.

    Acho que eles e a maior parte dos pais vêem esse mundo como um bocado fútil e complicado, onde às vezes se abdica da personalidade e dos valores familiares.

    É um mundo com muitas tentações.

    Exactamente. Então acredito que foi por aí: eles tiveram um bocado de medo que eu cedesse. Depois, com o tempo, foram respeitando cada vez mais o meu trabalho.

    Nunca chegaram a proibir essa opção?

    Isso não. Talvez fizessem isso se tivesse abdicado da faculdade para fazer televisão, mas nunca foi necessário.

    A sua mãe recorda episódios seus, na infância, em que se divertia a imitar a cantora Sabrina ou a entreter os convívios familiares. O que mudou para mais tarde sentir necessidade de fazer um curso contra a timidez?

    Há um livro que me ajuda a explicar isso. Chama-se A Arte de Arruinar a Sua Própria Vida e é de uma psicóloga espanhola. Uma das coisas que a autora defende é que todos nascemos com o dom de comunicar, mas vamos desaprendendo à medida que aprendemos a linguagem verbal. Acho que foi muito o que aconteceu comigo. Quando era criança era muito comunicativa, alegre e divertida e na adolescência tornei-me muito reservada. Os meus colegas sabiam pouco de mim porque era calada e não socializava muito.

    Essa forma de estar foi influenciada pelo ambiente da escola portuguesa, onde estudou?

    Talvez, porque ao contrário da maioria dos meus colegas, nunca fui de ter tudo, de vestir grandes marcas, de ter um grande carro. Nem sequer procurava ser assim porque os meus pais nunca me passaram essas ideias. Essa diferença não me afectava mas o grupo dos mais populares era o dos que tinham tudo e mais alguma coisa, que faziam e aconteciam e eu sempre gostei mais de estar no meu canto. Então tinha uma grande timidez, e quando tinha de ir ao quadro ou apresentar algum trabalho falava baixo, cheia de medo do que as pessoas iam pensar e de estarem todos ali a olhar para mim. Ai! Era o pânico.

    Quando é que esse sofrimento se transformou no prazer de comunicar?

    Já na faculdade. Embora estivesse bem mais confiante, mais segura e principalmente mais sociável, quando chegava a hora de falar em público ficava presa, não me sentia eu própria. Então soube que um grupo de brasileiros estava em Luanda para iniciar um curso de televisão, cinema e teatro e inscrevi-me. Durou seis meses.

    Como foi esse período?

    No princípio foi muito difícil porque não conhecia ninguém numa turma de 30 pessoas. Mas como tento ultrapassar tudo o me perturba, e bater de frente com aquilo que me dá medo, continuei firme. Aí fui gostando cada vez mais de teatro e ao mesmo tempo interessando-me por televisão. Quando terminaram os seis meses, senti-me realmente mais confiante e segura para falar em público e abordar as pessoas e quis pôr isso à prova. Então o que começou por ser um curso para me tirar a timidez motivou-me a fazer castings para novelas e publicidade.

    E acabou mesmo por fazer duas novelas, Vidas a Preto e Branco e Entre o Crime e a Paixão.

    Sim, mas no início foi muito complicado porque não tinha nenhuma agência que me representasse e também por ter um tom de pele claro e feições que não são propriamente as típicas da mulher angolana. Isso fez com que algumas pessoas dissessem que não tinha as características indicadas._Por causa disso fecharam-me algumas portas, para não dizer muitas.

    Sentiu-se revoltada com isso?

    Revoltou-me, claro. Lembro-me até de uma pessoa que disse : ‘Nunca vais fazer publicidade para a Movicel porque não têm campanhas com pessoas tão claras’. Acontece que meses depois fui seleccionada para ser imagem da marca. Tudo bem que fiz o anúncio ao lado de um actor negro, mas o importante é que fiz, e com isso dei uma chapada sem mão a algumas pessoas.

    De repente a sua imagem tornou-se mediática. Não ficou deslumbrada com a exposição?

    Não. Apenas achava engraçado ver a minha imagem espalhada por todo o país, nas ruas, nos jornais, nas revistas, nas rádios e na televisão. Isto durante praticamente um ano [2005]. Era de tal maneira que tinha amigos a ligarem-me para dizer: ‘Karina já estou farto de te ouvir. Já não te consigo ver’.

    Essa visibilidade facilitou a entrada na televisão?

    Ainda demorou um pouco. Primeiro fui apresentar o meu currículo à Semba Comunicação, que é a produtora que faz os conteúdos para a TPA2, mas na altura só precisavam de produtores. Então pedi para me contactarem quando tivessem vagas para apresentadores, só que passaram uns meses e nada. Pensei que se tivessem esquecido de mim ou que não estivessem interessados porque não tinha experiência. Enquanto isso a publicidade da Movicel ia passando e ainda fiz uma campanha institucional para a Polícia Económica. Às vezes acabava uma e começava a outra. Um dia comentei com o meu melhor amigo, o José Armindo, que se ainda não me tinham chamado da Semba já não me iriam chamar. Aí ele disse: ‘Por que não tentas lá ir novamente?’. Fui lá uns dias depois, por acaso estavam com vagas e disseram-me logo: ‘Como és uma cara conhecida, achamos que vais ser uma mais-valia porque estamos a expandir o canal’.

    Começou logo a gravar?

    Comecei com um estágio não remunerado de sete meses, em Luanda, no programa Flash. Depois vim de férias para Portugal numa altura que coincidiu com a abertura da TPA Internacional. Acabei por fazer a cobertura da gala nos bastidores enquanto a Helka [Guimarães] a fez no auditório. Correu muito bem e quando regressei a Angola passei a efectiva e a ganhar o meu salário.

    Quanto tempo durou essa colaboração?

    Estive a trabalhar na TPA quatro anos e nesse tempo nunca deixei de fazer o Flash._Mas a determinada altura surgiu outra proposta: ‘Olha Karina vamos ter um novo programa sobre kuduro com um músico muito conhecido, o Sebem. Queres fazer?’. No início fiquei meio assim: hum, o Sebem é muito polémico, mas depois pensei que seria um desafio. Estava habituada ao Flash que é um programa de exterior e tinha a oportunidade de experimentar um programa de estúdio. Daí fui apresentada ao Sebem e à esposa dele, a Débora – que se tornou muito minha amiga – e comecei a fazer o programa.

    Funcionaram logo bem em equipa, ou tiveram momentos mais tensos?

    Houve uma grande interacção porque antes da primeira gravação o Sebem convidou-me para apresentar com ele o Miss Maianga no Cine Karl Marx. Acontece que nessa gala houve tantos problemas de organização que tivemos de começar a funcionar como equipa. Lembro-me até que o Sebem queria desistir e que acabei por motivá-lo a continuar mesmo depois de os nossos microfones ficarem sem som. Tivemos de falar muito e ultrapassar tanta coisa que quando começámos a gravar já éramos amigos. Por isso as coisas fluíram, e diverti-me sempre imenso durante quase dois anos de programa.

    A visão que tinha do kuduro alterou-se depois de fazer o Sempre a Subir?

    Sem dúvida. Continua a ser um género que não ouço muito mas acho graça a uma ou outra música e respeito bastante os artistas. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, não são marginais nem ignorantes.

    Considera que o programa ajudou a derrubar alguns preconceitos?

    Acho que sim, até porque foi o primeiro programa sobre kuduro a nível mundial. O kuduro é nosso e devemos respeitá-lo e expandi-lo, mostrando ao mundo uma marca que é de Angola e de mais ninguém. Sinto-me muito orgulhosa por ter contribuído para isso.

    Por que deixou de fazer o programa?

    Porque chegou um momento em que tive de investir mais na minha carreira jurídica e não estava a conseguir conciliar as duas coisas, até porque já me estavam a pedir exclusividade [na TV]. Aí optei por deixar a Semba, e com isso os dois programas que fazia – Sempre a Subir e Flash. Mas continuei nos media através do jornal Expansão.

    Não se sentiu nem um pouco tentada a ficar mais tempo com a TV?

    Não, porque nunca deixei de ter os pés assentes na terra. Sempre tive a ideia de que o campo jurídico é aquilo que realmente me vai dar a segurança laboral para continuar a minha vida, crescer e formar um dia a minha família. O mundo da televisão é um bocado efémero porque vive da imagem, que acaba por se deteriorar com o tempo. Claro que se pode fazer muita coisa em televisão além da apresentação, mas é isso que gosto de fazer, e sei que a determinada altura posso não estar tão bem para mostrar a minha imagem, embora o meu intuito final não seja a exposição. O que me motiva mesmo é comunicar.

    Nisso tudo onde fica o jornalismo?

    O jornalismo é algo que sempre me fascinou, fascina e vai continuar a fascinar. Enquanto puder fazer, tudo bem, mas se interferir com o ramo jurídico terei de abdicar. Como costumo dizer, o Direito é o meu amor e a televisão – que acaba por estar um bocado interligada com o jornalismo – é a minha paixão. ?

    Fonte: Revista Caju

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