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    O Vôo Esquivo: Arlindo Barbeitos e a Questão da Identidade

    Tratarei, aqui, de alguns aspectos da obra de Arlindo Barbeitos, poeta e intelectual angolano. Meu interesse é apresentar sua poesia, mesmo que de maneira introdutória, relacionando-a a aspectos de sua produção acadêmica ou ensaística.

    Tratarei, aqui, de alguns aspectos da obra de Arlindo Barbeitos, poeta e intelectual angolano. Meu interesse é apresentar sua poesia, mesmo que de maneira introdutória, relacionando-a a aspectos de sua produção acadêmica ou ensaística. Nessa direção, pretendo sugerir relações entre suas reflexões sobre a história e a identidade de Angola e sua produção poética.

    Arlindo Barbeitos, nascido em 1940, publica seu primeiro livro de poemas, Angola, Angolê, Angolema, em 1976, logo após a independência de Angola, conquistada em 1975. Depois de um breve período, em l979, publica Nzoji (sonho).

    Apenas com Fiapos de sonho, de l992, retoma sua produção poética, sendo Na leveza do luar crescente, de 1998, seu mais recente conjunto de poemas.

    Desde seu primeiro livro, tornou-se evidente que tinha uma dicção bastante particular, à margem da estética hegemônica da Angola em luta de libertação, e que, se se colocava as mesmas problemáticas dos escritores de sua geração, identitárias e relativas a um engajamento político, as soluções que trazia eram bastante próprias.

    O que o leitor tem em mãos ao ler a obra de Barbeitos é uma poesia exigente, armada com delicadeza. É interessante notar que seus poemas ganham com a leitura conjunta, em constelação, pois assim se compõe um quadro bastante contundente de seu país, da experiência de ser em Angola (e de escrever em Angola). Cada livro é montado de maneira cuidadosa; não reúnem poemas, são algo mais.

    Para além do interesse particular de cada poema (e de terem força própria), no conjunto do livro armam-se cadeias de sentido outras. Seus livros podem ser lidos como um poema de muitas faces. Em realidade, como os poemas, seus livros também ganham com a leitura conjunta. O vínculo entre dois deles se evidencia já nos títulos: seu segundo livro chama-se Nzoji, ou seja, sonho em kimbundo, e, o terceiro, Fiapos de sonhos, num diálogo evidente.

    A produção poética de Arlindo Barbeitos compõe-se, assim, de quatro livros, distribuídos no tempo de maneira a flagrar dois importantes momentos da história de Angola: o da independência, conquistada em 1975; e, na década de 90, a situação de desencanto diante dos imensos estragos e horrores de uma pavorosa guerra civil. O problema da representação da catástrofe das guerras, da guerra de independência e, de maneira mais radical, das guerras civis ou de pós-independência, é decisivo na obra como um todo, mas se torna absolutamente central em Fiapos de Sonhos e Na leveza do luar crescente.

    A razão é evidente, cronológica: na década de 90, o desencanto com relação aos rumos do país e a persistência das guerras civis trazem para primeiro plano o desafio de falar da dor, advinda tanto da brutalidade presente como da frustração – afinal, o engajamento na luta pela independência e na construção da nação independente marcara a maioria dos escritores angolanos da geração de Barbeitos (como Ruy Duarte de Carvalho, Pepetela, Manuel Rui e Luandino Vieira).

    Acredito, porém, que o que deve chamar a atenção é o fato de não haver ruptura no que tange à ênfase no trabalho formal, tanto por não ter havido, nos primeiros livros, pouca atenção à dor experimentada pelos angolanos no período e na guerra coloniais (aos desafios que este sofrimento traz ao discurso poético), como porque a poesia de Barbeitos nunca aderiu aos esquematismos identitários que por vezes alimentaram as ideologias revolucionárias.

    O seguinte poema, do qual retirei verso que dá título a essa comunicação, revela que já em Angola Angolê Angolema, Barbeitos está atento para o caráter necessariamente fugidio das identidades:

    a identidade

    ou

    o voo esquivo

    de pássaros nocturnos

    em torno da lua

    identidade

    é cor

    de burro fugindoi

    Seus estudos relativos à sociedade angolana aproximam-se, nessa direção, de sua poesia. Barbeitos tem produzido inúmeros artigos e ensaios acerca da formulação do conceito de “raça” e sua fortuna entre portugueses e angolanos, como também sobre a ideia de Estado-Nação e suas consequências para a história e as guerras de Angola (ver bibliografia).

    Em 2005, publicou A Sociedade Civil: Estado, Cidadão e Identidade em Angola, em que se empenha em apreender as causas da guerra civil angolana apontando a reedição de formas de pensamento e organização social coloniais na Angola independente.

    Recentemente, em 2007, defendeu sua tese de doutoramento intitulada Portugal e Angola: representações de si e de outrem ou o jogo equívoco das identidades, em que apresenta vasto e profundo estudo da apropriação e reformulação do conceito de raça em âmbito português e posteriormente angolano, sugerindo que participa, o mencionado conceito, das construções identitárias tanto coloniais como pós-coloniais. Assim, a distância que mantém com relação à maneira como se definem as identidades na Angola revolucionária e de pós-independência parece marcar tanto sua produção poética como acadêmica e ensaística.

    De maneira bastante sumária, podemos dizer que Barbeitos entende ser a construção de uma identidade pela negação do outro mecanismo extremamente perverso, que tende à violência na medida em que se faz pela aversão ao diferente. Tanto em suas reflexões e estudos como em sua poesia, temos a defesa de uma identidade em curso, inconclusa, aberta (sendo o conceito de raça atado a uma concepção estanque, a-histórica, das identidades). Tal perspectiva se explicita em suas reflexões sobre a própria poesia: esta deve promover a multiplicidade de olhares, propor novidade na maneira de dizer o mundo, e não a confirmação de formas prévias, prontas, rígidas.

    Sua poesia, tanto nos primeiros livros como nos mais recentes, recorre a pouco, a imagens escolhidas a dedo, a fragmentos de paisagens, de situações (momentos da relação amorosa, uma brincadeira de criança, gestos, voo de libélulas, borboletas, pássaros, mariposas, balanço dos dongos/barcos, estouro de minas, pedaços de histórias, de conversas, etc.).

    Com este material propositadamente reduzido (porque feito de fragmentos apenas), produz-se uma poesia de notável capacidade sugestiva. A influência da poesia japonesa é, neste aspecto, decisiva (como o próprio poeta menciona em prefácio a Angola, Angolê, Angolema). Vale a pena, nesse sentido, conhecer alguns de seus “poemas-imagem”:

    riso húmido

    pendendo enroscado

    em teu dedo

    como cobra verde

    em ramo seco

    catatos

    em haste verde

    baloiçando

    cacos de arco-íris

    em tarde de chuvaii

    Para além desses poemas que propõem imagens, parece-me que a perspectiva distanciada, a economia e a recorrência de elementos da paisagem natural marcam a poesia de Barbeitos de maneira bastante ampla. Nota-se que, no tratamento dos horrores da guerra, a estratégia pode ser ainda a do poema-imagem:

    distraída na verdura

    a garça branca

    < repousa sobre uma pata só apodrecido na morte o soldado preto nem pernas temiii Já em Angola Angolê Angolema, temos: um homem de chuva jaz morto no chão de folhas podres talvez só os pássaros que parecem fazer ninho nas ruínas das casas de nuvem possam dar notícia um homem de chuva jaz morto no chão de folhas podres.iv Este poema, do primeiro livro de Barbeitos, anuncia uma vertente de sua poesia que se desenvolverá especialmente em Fiapos de sonhos. Na abordagem da experiência da guerra, do horror, a construção de um mundo particular, como se as águas dos sonhos, em pesadelo, tocassem o mundo da vigília: oh parca furtiva ao lusco-fusco teus dedos nocturnos vão pelos monturos catando ilusões perdidas cacos de palavras e fiapos de sonho ao lusco-fusco oh parca furtivav As parcas, como o poeta, assumem a tarefa de recolher restos, de lidar com os restos de sonhos (fiapos), ilusões (perdidas) e palavras (em cacos - carcomidas, podres)? Parece que, para falar da regência da morte, ou seja, da guerra civil angolana, o poeta recorre de maneira insistente a alguns motivos: temos a insistente presença de seres alados, cuja delicadeza é traço marcante (como libélulas, borboletas, mariposas, pássaros, ou, simplesmente, voos); o recurso a traços/fragmentos do corpo humano (mãos, dedos, lábios, gestos); uma série de motivos em torno do tema da destruição (abismos, ruínas, restos, lixo/monturo, cacos, podridão, lodo, ferrugem, fiapos, poalha, cinzas); a recorrente presença da escuridão e, talvez ainda mais insistente, de luscofusco; na mesma direção da indefinição, temos névoas e águas; temos ainda algo de luz rompendo o escuro/lusco-fusco (no geral, a luz está associada a bombas, tiros) e as cores vermelha e azul (esta, pintando o corpo morto ou do reino dos mortos) compondo as fugidias "figuras" e "cenas"; e, ainda, a relação amorosa, o mundo da criança e da jovem (amada, púbere e criança sugerem a delicadeza no âmbito humano). Fiapos de sonhos parece produzir-se da costura desse material, tirando intenso efeito dos arranjos e rearranjos de mesmos motivos (aliados a outros, novos, em cada poema, e articulando6 se a temas como o amor, a memória, a palavra, o sonho, a esperança, a saudade, entre outros), transmitindo, com essa estratégia, perplexidade e dor. Estes efeitos importantes decorrem, por vezes, da aproximação do sutil, delicado, ao brutal, à destruição. Encerrando esses breves apontamentos sobre Fiapos de sonho, retomo o tratamento dado por Barbeitos à questão da identidade angolana. O último poema do livro repõe essa problemática de maneira extrema: a sul do sonho a norte da esperança a minha pátria é um órfão baloiçando de muletas ao tambor das bombas a sul do sonho a norte da esperançavi Este poema faz encontrar o balançar, que é atividade infantil, e a mutilação (dado da realidade brutal da guerra); o tambor (das festas, danças) e as bombas. A imagem ainda atribui à criança a condição de um trapo que baloiça, numa redução do humano (e da criança, que é em si esperança, a vida se repondo) a um resto de pano (fiapos). Esse arranjo imagético apresenta-se como o resumo do próprio país em plena guerra civil. Contrapondo-se ao sonhado, a realidade presente é a regência do horror. Este poema encerra o livro resumindo, cruamente, o "assunto" do conjunto de poemas. Em Na leveza do luar crescente, o poeta explora e desenvolve alguns dos sugeridos procedimentos poéticos de Fiapos de sonho, como também retoma gestos de seus primeiros dois livros, conseguindo novos efeitos. À maneira de poemas de Angola, Angolê, Angolema, trata, diretamente, da identidade - o que é ser africano, angolano/mestiço? - abrindo-se, o livro, com três poemas em torno dessa questão (que será retomada ao longo do livro, como no poema a Angola e no poema à mulata). Segue-se o terceiro deles: eu mestiço de luar e de uma rã de tanto desencontro me apaguei entre dois sóis e um pingo d'água O último livro de poemas de Barbeitos retoma explicitamente, e novamente como problema, a identidade. Mais uma vez, à afirmação de traços identitários, o poeta prefere a reflexão. Barbeitos não oferece, em momento algum, a confirmação de representações correntes sobre uma suposta "especificidade africana/angolana", que por vezes repõem equívocos e devaneios coloniais. Parece-me, e então concluo estas considerações, que tanto pela via acadêmica e ensaística como pela poesia, Arlindo Barbeitos, por sua autonomia, avança na apreensão de aspectos da realidade, ampliando nossa capacidade de dizer o real, de lidar com o vivido. Nunca cedendo a discursos prévios, sua obra consiste num convite ao livre-pensar na medida em que desenvolve maneiras próprias, novas e surpreendentemente finas, de tratar da experiência angolana e de, poeticamente, reconstruí-la. Referências bibliográficas:

    BARBEITOS, Arlindo. Angola, Angolê, Angolema. Luanda: UEA, 1976.

    Nzoji (sonho). Luanda: UEA, 1979.

    O rio, estórias de regresso. Luanda: UEA, 1985.

    Fiapos de sonho. Luanda: UEA, 1992.

    Na leveza do luar crescente. Lisboa: Caminho, 1998.

    “Un virage dramatique de la politique coloniale à la fin du XIXe siècle, ou les racines lointaines d’un conflit actuel”. Conferência à École des Houtes Études de Paris, 13-03-2002.

    “Une perspective angolaise sur le lusotropicalisme”. In: Lusotopie 1997, Paris: Karthala, 1997.

    “Oliveira Martins, Eça de Queiroz, a raça e o homem negro”. In Actas da III Reunião Internacional de História de África: A África e a Instalação do Sistema Colonial (c. 1885-c. 1930).

    Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical. Lisboa 2000.

    A Sociedade Civil: Estado, Cidadão e Identidade em Angola. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2005.

    Portugal e Angola: representações de si e de outrem ou o jogo equívoco das identidades. Tese de Doutorado, Universidade da Beira Interior, 2006.

    i BARBEITOS, 1976.

    ii Idem, 1979.

    iii Idem, 1998.

    iv Idem, 1976.

    v Idem, 1992.

    vi Idem, ibidem.

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