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    “O ataque em Palma não pode ser visto como algo isolado”

    O ataque jihadista à vila de Palma, no norte de Moçambique, “vem mudar algo de substancial na maneira como a insurgência tem estado a evoluir no terreno”, alerta o investigador moçambicano Salvador Forquilha, avisando que “o ataque em Palma não pode ser visto como algo isolado”. Além disso, a ofensiva é directamente “uma ameaça aos investimentos na zona” e dá visibilidade internacional aos grupos insurgentes que actuam na região.

    Além de ser directamente “uma ameaça aos investimentos na zona” e de dar visibilidade internacional aos grupos insurgentes, “o ataque em Palma não pode ser visto como algo isolado”, alerta o investigador moçambicano Salvador Forquilha. É que, para o especialista, este ataque “vem mudar algo de substancial na maneira como a insurgência tem estado a evoluir no terreno e na maneira como se olha para o próprio fenómeno”.

    Foi só neste domingo – vários dias depois do início do ataque à vila de Palma na quarta-feira – que o ministério da Defesa de Moçambique admitiu a morte de dezenas de civis, incluindo sete pessoas que tentavam fugir do hotel onde estavam refugiadas cerca de 200 outras. Porém, os relatos do terreno são escassos, muito mais alarmistas e há um número incalculável de desaparecidos. Esta segunda-feira, o autointitulado Estado Islâmico reivindicou o ataque.

    O investigador moçambicano Salvador Forquilha não ficou surpreendido com a comunicação tardia do governo, sublinha que “desde o início o governo procurou recusar a ideia de que se estava perante uma insurreição de carácter jihadista”. Além disso, o especialista alerta que este ataque tem impacto ao nível da visibilidade internacional dos insurgentes e avisa que Moçambique tem estado “a correr atrás do prejuízo”.

    Salvador Forquilha é investigador no Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) em Maputo, coordenador do programa de pesquisa “Estado, violência, desafios e desenvolvimento no norte de Moçambique” e co-autor das publicações “Radicalização Islâmica no norte de Moçambique: O Caso de Mocímboa da Praia” e “Afinal não é só Cabo Delgado! Dinâmicas da Insurgência em Nampula e Niassa”.

    Dezenas de pessoas aguardam pela chegada de navios oriundos do distrito de Palma, com a população que foge aos ataques de grupos rebeldes desde quarta-feira, em Pemba. 29 de Março de 2021.
    (© LUSA – MIGUEL FONSECA)

    RFI: “O ministério da Defesa só admitiu a existência de dezenas de mortes este domingo. Porquê tão tarde já que o ataque começou na quarta-feira?”

    Salvador Forquilha, Investigador IESE: “Desde o início, o governo praticamente procurou recusar, procurou afastar a ideia de que se estava perante uma insurreição de carácter jihadista. Só que à medida que o tempo foi passando e o fenómeno se foi complicando, foi aí que o governo acabou por reconhecer. Relativamente a Palma, o governo quer dar uma determinada imagem sobre a situação, é perfeitamente compreensível, e muitas vezes a imagem que o governo pretende dar está muito distante do que realmente está a acontecer no terreno.”

    RFI: “O que significa esta tomada de Palma pelos jihadistas?”

    Salvador Forquilha: “O primeiro significado é de ameaça aos investimentos na zona porque sem uma segurança aceitável não é possível prosseguir com os investimentos. Agora, prefiro olhar para o fenómeno num contexto um pouco mais alargado da evolução da própria insurgência nos últimos três, quatro anos. Há aqui uma evolução significativa e, se calhar, o ataque a Palma vem mudar algo de substancial na maneira como a insurgência tem estado a evoluir no terreno e, por outro lado, na maneira como se olha para o próprio fenómeno.”

    RFI: “Este ataque pode abrir portas para a propagação do Estado Islâmico em Moçambique?”

    Salvador Forquilha: “Não só o ataque em si, por isso eu estava a insistir em que é importante procurar enquadrar num contexto um pouco mais alargado da evolução do próprio fenómeno no terreno. O ataque em Palma não pode ser visto como algo isolado. É evidente que o impacto é muito grande, sobretudo do ponto de vista da visibilidade do grupo a nível internacional, mas francamente falando não pode ser tido como um acontecimento isolado nem surpresa.

    É verdade que ao longo dos últimos três meses, fundamentalmente de Janeiro a esta parte, houve uma relativa acalmia, mas sabemos, em outros contextos – na Somália, Sahel – sabe-se que estes grupos muitas vezes têm estes momentos de uma relativa acalmia e, muitas vezes, são momentos também de reorganização do próprio grupo, de reforço do próprio grupo e depois vem à carga. Foi um pouco o que aconteceu.

    Não me parece que seja um acto isolado. A mim o que me parece é que deve ter sido um ataque preparado no mínimo detalhe há muito mais tempo e não foi uma coisa de uma semana. Os poucos relatos que nos chegam do terreno dão conta de muitos jihadistas dissimulados em cidadãos simples, em deslocados, etc, e contendo consigo armas desmontadas nas suas mochilas. Houve aqui uma preparação no detalhe que, de facto, nos remete para uma ideia de um grupo muito mais estruturado, organizado e com intenções muito mais claras do ponto de vista do avanço no terreno.”

    RFI: “Como se explica que, há poucos dias, as autoridades tenham dito que em breve a população poderia voltar a Mocímboa da Praia e agora temos este novo ataque no norte do país?”

    Salvador Forquilha: “O governo procura dar uma certa imagem do que se está a passar. Há uma gestão política dos acontecimentos por parte do governo e é compreensível. Mas entre o discurso e a realidade que se vive no terreno há uma grande distância. Francamente falando, ainda que não tivesse havido o ataque de Palma, não penso que houvesse condições reunidas para que as populações regressassem às suas zonas de origem.”

    RFI: “Cerca de 1800 pessoas chegaram a Pemba por barco, este domingo. Não há receios de infiltrados jihadistas no grupo que tentem atacar Pemba?”

    Salvador Forquilha: “É evidente que receios existem. Aliás, há relatos que as pessoas que chegam a Pemba, de barco, são revistadas pelas unidades das forças de defesa e segurança. Faz todo o sentido e vale a pena tomar essas precauções todas porque o perigo está à vista, é evidente. Agora, se isso efetivamente vai-se traduzir numa ameaça real para Pemba e outros locais onde se encontram deslocados, não sei. Mas sim, tem que haver medidas e precaução em relação a este fenómeno.”

    RFI: “Esta é uma guerra por acesso a recursos, a gás, é uma guerra religiosa ou sócio-económica (até porque estamos a falar de jovens desfavorecidos numa zona muito pobre)?”

    Salvador Forquilha: “Nós, no IESE, temos estado a trabalhar no assunto há mais de três anos, praticamente desde o início. Nas nossas discussões internas, temos sempre procurado sublinhar que é importante evitar explicações monocausais, ou seja, dizer unicamente que é por causa de recursos, é por causa das desigualdades, é por causa da dimensão religiosa, etc. Muito provavelmente é por causa de tudo isso.

    No terreno encontramos diferentes dimensões. Há uma dimensão religiosa que é bem presente. Há relatos que nos chegam de Palma que dizem que eles estavam a gritar Allahu Akbar. Não se pode minimizar isto. Há uma dimensão religiosa importante, há um processo de radicalização mesmo que o termo seja complicado. Existe sobretudo em algumas regiões de Cabo Delgado – e também Niassa e Nampula. É um fenómenos que tem vindo a crescer nos últimos anos, bem antes dos primeiros ataques.

    Por outro lado, é evidente que o “boom” dos recursos naturais joga um papel muito importante no imaginário das pessoas, sobretudo quando as pessoas ouvem todos os dias que há milhões e biliões de dólares em causa. Tudo isso joga um papel muito importante na maneira como as pessoas imaginam a situação, a sua própria condição de exclusão, de pobreza, etc.”

    RFI: “Como é que a comunidade internacional deve reagir, tendo em conta que esta ameaça pode continuar a propagar-se e não se limitar a Moçambique?”

    Salvador Forquilha: “A comunidade internacional tem um papel importante a desempenhar, sem dúvida, mas em primeiro lugar é o próprio Estado moçambicano e não me parece que a comunidade internacional possa fazer qualquer coisa que seja sem que o próprio Estado moçambicano dê indicações nesse sentido e, sobretudo, tenha vontade para que a comunidade internacional intervenha.

    Agora, o que é um facto é que nós estamos – passo a expressão – a correr atrás do prejuízo. A acção enérgica deveria ter sido há muito mais tempo relativamente a este fenómeno e o Estado moçambicano levou muito tempo, primeiro para reconhecer que se estava perante uma ameaça de grande dimensão e, em segundo lugar, para ser consequente com este reconhecimento.

    Hoje a situação complicou-se, toda a acção parece mais paliativa que concretamente uma acção que possa trazer resultados a médio e longo prazo.

    Por outro lado, tem havido muito pouco investimento relativamente à pesquisa e investigação. Para mim, isso é preocupante porque não se pode lutar contra um fenómeno desta natureza quando não se conhecem as dinâmicas e o desenvolvimento do próprio fenómeno a nível local.”

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    FonteRFI

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