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    Mendicidade, ponta de um dramático iceberg – Apusindo Nhari

    A mendicidade é um sinal de falência do Estado! O Estado não pode deixar de assumir a sua responsabilidade de evitar situações catastróficas, que destruam famílias e o tecido social, levando ao fenómeno extremo da exposição pública das misérias humanas e chegando à utilização abusiva das crianças como chamariz central para a eficácia dessa prática degradante, que é a mendicidade.

    Até ao início dos anos 1990 não se fazia sentir de forma tão flagrante no país – até então, os pobres e desconsiderados que mais “manchavam” a vitrina pública eram os mutilados, consequência da situação de guerra que o país vivia– e a situação económica não era melhor do que a que hoje temos.

    Por que é que a pobreza passou a traduzir-se em tanta quantidade de mendigos expostos nas esquinas das cidades, à saída das lojas e restaurantes, nas estradas que se estendem pelo país inteiro? O que faz o pobre, levado aos limites da sua resistência, tornar-se mendigo? Diante de tal situação, que atitude deve ter o resto da sociedade? E, por fim, o que esta situação nos revela sobre a forma como o Governo (e os cidadãos) encaram o papel do Estado?

    A falência do Estado (na economia, nas políticas sociais e de inclusão) tem muitas outras consequências, que resultam em pobreza. A mendicidade é particularmente chocante por ser tão visível e porque “vem ter connosco”…, os que não somos pobres.
    A nossa Constituição– Lei-mãe de todas as leis e que, como tal, devia ser respeitada escrupulosamente, sobretudo por quem tem o dever de garantir um Estado de Direito– tem três artigos que deveriam estar na base de um esforço primário para que não se permitissem as situações degradantes que assistimos diariamente: o Artº 30 (“Direito à vida”), o Artº 31.2 (que estabelece o direito à dignidade humana) e o Artº 90 (que fala das políticas de redistribuição de riqueza, priorizando aqueles que mais precisam).
    Não podia ser maior o contraste entre o que decreta o Artº 31.2 (“O Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade humanas”)  e a realidade que nos envolve.

    Podemos vislumbrar a dimensão do “iceberg” pelas imagens que nos vêm do Sul: um estado de calamidade cíclica (previsível, mas nunca antecipada) que roça a ignomínia, com gente literalmente a morrer de fome! E também pelo quotidiano assalto aos contentores de lixo das urbes por crianças, jovens e adultos, em muitos casos com disputas provocadas pelo desespero… e onde começa a ser comum verem-se contentores que passam a ter cidadãos, ou grupos de cidadãos, com “direitos estabelecidos” sobre o seu conteúdo.
    O que nos faz sentir ter-se chegado a um estágio de ausência completa da garantia constitucional e moral de dignidade humana, que só se restabelecerá com  um mínimo de condições materiais que permitam ao cidadão, pelo menos, fugir da fome. E esse mínimo é função do Estado manter.

    A criação e o funcionamento adequado de um sistema de segurança social para todos é uma tarefa difícil, mas indispensável: para prevenir o despenhamento das pessoas carentes em situações que as levam, quando não ao suicídio, à utilização de qualquer recurso para sobreviver. O triste espectáculo que nos é dado a observar nas ruas das cidades– onde aumenta dia após dia a quantidade de pessoas que encontram na mendicidade uma forma de procurar solução para as suas carências– deve-nos fazer reflectir e agir.

    A utilização frequente de crianças como elemento para provocar a comoção do transeunte é preocupante. Pois as crianças que começam tão cedo nessa prática não têm apenas o seu presente comprometido. Terão, certamente, o seu futuro. Não só pelas questões ligadas à sua sobrevivência física (e às sequelas que, muitas vezes, acabam por afectar as suas capacidades quando crescerem, nomeadamente na aprendizagem). Mas também no que respeita às marcas que inevitavelmente se irão gravar na sua personalidade e que irão determinar, em grande medida, o tipo de cidadão que poderá ser. Se sobreviver.

    As experiências de períodos que se seguiram a guerras, ou conflitos de diversa natureza, assim como de catástrofes naturais que afectaram populações inteiras, viram – nos Estados que se preocupam de facto com os seus cidadãos (e com o seu futuro) – ser levadas a cabo um conjunto de acções de emergência que permitiram diminuir os efeitos perniciosos de tal situação. A epopeia descrita por Anton Makarenko no seu “Poema Pedagógico e As Bandeiras nas Torres”– descrevendo o que se fez na URSS para retirar das ruas os milhões de crianças e jovens que tinham visto as suas famílias destruídas na Segunda Guerra Mundial– é um exemplo edificador.

    Precisamos que o nosso Estado encare este problema como algo absolutamente prioritário. Outras iniciativas, privadas ou de organizações com preocupações sociais como igrejas ou ONG, apesar de bem vindas (mas, como bem diz o Artº 77 nº 3 da nossa Constituição, sempre fiscalizadas pelo Estado), não devem em momento algum diminuir a sua responsabilidade perante estas situações de catástrofe social.

    É responsabilidade do Estado garantir a cada cidadão o mínimo de proventos que lhe permita viver de tal forma que não esteja comprometida a sua dignidade… independentemente de como e quando se resolva o “problema maior” de que a mendicidade é uma mera consequência.

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