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    JAZZ com sabor a poesia (II)

    JERONIM~1A História do Jazz contém várias injustiças em que a presença feminina mergulha muitas vezes – silenciosamente – nas trevas.

    Neste segundo trabalho, destacarei uma Mulher frequentemente ignorada. “Ama-se ou não a voz de Billie Holiday (1915- 1959). Mas quando se ama é como se fosse um veneno.”

    Boris Vian falava assim da mais fiel e mítica das vozes de toda a história do Jazz. E se a paixão pela cantora dispensaria qualquer pretexto, as edições integrais das suas gravações para a Verve Records (The Complete Billie Holiday on Verve, 10 CD, com mais de 12 horas de Jazz vocal,

    1945-1959), as reedições históricas do seu canto que outras editoras renomadas lançam no mercado em datas especiais e este modesto trabalho acerca da presença feminine no Jazz, que culminará com mais um texto e com os concertos em Luanda, no Trópico, da contrabaixista da Malásia Linda Oh, que terão lugar nos dias 22 e 23 deste mês, não poderiam passar em claro neste mês especialmente dedicado às Divas e instrumentistas desta arte adulta, de grande beleza e encantamento, que é o Jazz. Porque, como dizia o baterista Jo Jones (1911-1985), um dos seus companheiros musicais “nunca houve ninguém como Billie Holiday, não há ninguém como Billie Holiday.

    Há quem diga que a última coisa que um cantor de Jazz precisa é da voz. Mas que não pode dispensar tudo o resto. Nos anos 50 (século XX) a voz era outra, doente e cansada.

    Mas nem por isso o Jazz perdeu a “mais fiel e mítica” das suas cantoras. A voz do Jazz da voz.

    De diferente, Billie, também conhecida por Lady Day, – sobretudo nos últimos anos- trazia consigo e carregava toda a dor do mundo. A rapariga dos anos 30 era agora uma mulher que guardava dentro de si a mais amarga solidão. E que por isso cantava o amor e o desejo, a dor e a ternura, com a sabedoria sofrida de quem sabe que nem a morte é maior do que a vida.

    As gravações que dela ficaram continuam a ser – ainda hoje- unanimemente consideradas como dos melhores exemplos que possuímos em matéria de Jazz cantado.

    Teve uma vida curta, atormentada, movimentada e trágica, marcada pela droga, pela música que era o seu habitat permanente, pela solidão, pela angústia do desejo de ser mãe, que nunca se realiza, pelo racismodemasiado clara para uns e muito escura para outros! – e por uma continuada peregrinação por hospitais, reformatórios, prisões.

    Viveu com o calor da vida, com ternura, ironia, espontaneidade, sempre, de qualquer modo, com uma sede imensa de viver e amar, mesmo nos momentos mais sombrios.

    Billie HolidayBillie Holiday é no Jazz o que Rebecca, Gilda ou Laura são no cinema: “o nome do mistério, o romance da surpresa, a sedução do desconhecido, a sensualidade do abismo”, como exemplarmente escreveu o crítico e reputado especialista António Curvelo (Público, 8 de Janeiro, 1993). O veneno que dá a vida.

    A história pessoal da cantora termina de forma absolutamente trágica. No final dos anos 50 a degradação é notória, embora ela continue a gravar, agora para a etiqueta Verve, depois de um período na Decca.

    Em Março de 1959 morreu o genial saxofonista Lester Young, o seu músico/companheiro favorito, com quem sempre gostou de beber e deambular.

    Semanas depois decide festejar os seus 44 anos com um grupo de amigos chegados, os quais, logo a seguir à festa, a tentaram internar num hospital.

    A 25 de Maio só conseguiu cantar dois temas numa actuação num teatro da Greenwich Village, em Manhattan, Nova Iorque.

    Na semana seguinte, devido a complicados problemas hepáticos, entra em coma e foi internada no Metropolitan Hospital de Harlemum dos poucos hospitais de Manhattan que aceitam pessoas com marcas visíveis de uso de estupefacientes, como picadas nos braços. Quarto 6A 12. Experimentou algumas melhora.

    A 12 de Junho uma enfermeira descobre um suspeito pó branco num lenço à cabeceira. A Polícia acusou-a de posse de droga num novo processo judicial. Como estava muito fraca e não podia sair, a Polícia manteve o quarto do hospital sob vigilância, com um bófia à porta, não fosse a moribunda fugir…

    Para além de graves problemas cardíacos e uma cirrose hepática, declarou-se, por fim, uma infecção renal. A 11 de Julho a muxima começou a desafinar, falhou, e foi-lhe aplicada uma tenda de oxigénio. Morreu a 17, às 3 e 10 da manhã.

    Billie não chega a comparecer em mais um julgamento. Estava farta, desgastada fisicamente.

    Uma grotesca caricatura de si própria. Os excessos de tudo e a tristeza mataram-na. Quando removeram o corpo, o pessoal do hospital e a brigada dos narcóticos descobriram um rolo de quinze notas de 50 dólares presas com adesivo a uma das pernas. A sua conta bancária acusava um crédito de 70 cêntimos.

    Talvez seja importante sublinhar que por trás do comportamento suicidário da cantora- e de muitos músicos dessa época- estava a vida real, a vida das ruas e dos clubes, marcada 24 horas por dia por cenas de racismo e exclusão. Não foi por acaso que o mundo do Jazz se identificou, durante décadas (os jovens hoje são vegetarianos, fazem yoga e jogging e bebem sumos de fruta…) com a marginalidade social, obrigando os seus actores- principais, geniais e anónimos- a uma permanente e violenta luta pela sobrevivência, económica e humana. Vejamos as mortes prematuras de génios associadas ao uso de droga: Booker Little (aos 23 anos), Jimmy Blanton (24), Charlie Christian (26), Fats Navarro (27), Bix Beiderbecke (28), Wardell Gray e Albert Ayler (34), Charlie Parker (35), John Coltrane e Bud Powell (42). Apesar de tudo, Lester Young, que faleceu aos 50 anos e Billie aos 44, resistiram um pouco mais, também não lograram fugir a um destino comum trágico e excessivamente cruel.

    Hoje, que a situação melhorou de forma significativa, o passado poderá causar nas pessoas menos avisadas /informadas alguma estranheza.

    Mas se é um erro alimentar qualquer espécie de mitificação dessa aura de marginalidade, não menos grave seria esquecer ou tentar apagar da História as condições sociais em que o Jazz nasceu e cresceu, empurrando sucessivas gerações de homens e mulheres para a absurda situação de criadores de primeira, geniais e, ao mesmo tempo, cidadãos de terceira.

    Talvez não saibam, ou eventualmente não tenham valorizado, que Billie depois de cantar tinha de ir para a cozinha, que era o “lugar dos negros” e que Roy Eldridge, solista principal da orquestra de Artie Shaw, era enxotado para a “porta de serviço” nos hotéis onde tocava.

    Na sua autobiografia, a cantora conta-nos: “fiquei tão cansada de cenas em esquálidos restaurants de beira da estrada que costumava simplesmente permanecer no autocarro sentada…esperando que trouxessem alguma coisa num saco de papel. Em alguns lugares, nem mesmo me deixavam entrar na cozinha.

    Noutros lugares, permitiam. Às vezes, a questão resumia-se numa opção entre eu comer e a banda inteira passar fome. Cansei-me dos casos de invocação de leis federais sobre o pequeno-almoço, o almoço e o jantar…mas o pior de tudo era uma simplicíssima coisa de encontra um lugar onde ir à casa de banho.”

    P.S. Um dos temas que cantou é “Strange Fruit” uma canção contra o racismo, sobre pessoas enforcadas em árvores, especialmente no Sul dos Estados Unidos, cuja letra é de Lewis Allan.

    Aqui fica a tradução: “…Árvores do Sul dão uma fruta estranha/ Folha ou raiz em sangue se banha/ Corpo negro balançando, lento/ Fruta pendendo de um

    galho ao vento/ Cena pastoril do Sul celebrado/ A boca torta e o olho inchado/ Cheiro de magnólia chega e passa/De repente o odor de carne em brasa/ Eis uma fruta para que o vento sugue,/ Pra que um corpo puxe,/ Pra que a chuva enrugue,/ Pra que o sol resseque,/ pra que o chão degluta,/Eis uma estranha e amarga fruta…”.

    Termino este trabalho com um poema para Billie Holiday, “roubado” ao crítico e poeta espanhol Gustavo Domingez:

    “Um dia, há vinte e dois anos/ A pupila de Lester Young mostrou-te o infinito/ e não paraste./Um dia, há onze anos/ Frank O’Hara comprou um hamburger/ e o espanto./ Esta noite, Lady Day, /Estou só no mundo, irremediavelmente/ E cantas para mim. JERÓNIMO BELO (Novo Jornal)

     

     

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