Livro polémico garante que Pio XII, o “Papa dos silêncios” acusado de conluio com os nazis, foi contra os alemães e esteve na mira de Hitler
Agosto de 1942. O Papa Pio XII está no terceiro piso do Palácio Apostólico, no Vaticano, de frente para a enorme fornalha da caldeira de aquecimento. Tem na mão duas folhas, escritas em letra miudinha. As três freiras que lhe cuidam dos aposentos estão preocupadas: o sumo pontífice costuma ser pontual e rigoroso com os horários e está atrasado para o almoço, mas não parece com pressa.
Em silêncio, decide queimar as folhas, uma a uma. Era um texto que deveria ter sido publicado no jornal oficial do Vaticano, “L’Osservatore Romano”. Um protesto oficial contra a perseguição dos judeus na Alemanha. Uma das freiras pergunta-lhe se não será pecado queimar o discurso. “É verdade, mas se os nazis o encontrarem, o que acontecerá aos católicos e aos judeus nas mãos dos alemães?”A seguir, Pio XII almoça sozinho e em silêncio. Está a par dos rumores que correm em Roma de que Hitler tem um plano para invadir o Vaticano, prender o pontífice e deportá-lo.
A conspiração nazi contra o Papa italiano, durante a Segunda Guerra Mundial, é uma história obscura e desconhecida. Mario dal Bello, jornalista e professor de história italiana, mergulhou nos arquivos secretos do Vaticano e investigou como Pio XII lidou com os planos nazis num dos períodos mais negros da história da Europa. O resultado está no livro “Quando Hitler quis raptar o Papa”, que revela que afinal o Papa italiano, que morreu em 1958, tentou opor-se às investidas nazis. A conclusão é polémica: Pio XII chegou a ser apelidado de “Papa dos silêncios” por nada ter feito em relação ao holocausto. E há até quem o acuse de conluio anti-semita com Hitler.
Adolf e Pacelli Manhã de 30 de Abril de 1919. A nunciatura católica em Munique está cercada por uma multidão de militares armados com metralhadoras e espingardas. Os “vermelhos” decidiram atacar de surpresa Eugenio Pacelli, nomeado núncio da Baviera pelo Papa Bento XV. A ordem partiu de Rudolf Egelhofer e Karl Radek, enviado de Lenine: padres, freiras e crucifixos deveriam voar pelas janelas. Pacelli desce para falar com um dos soldados, Fritz Seidl. Aterrorizadas, as freiras telefonam para a missão militar italiana em Munique. Francesco de Luca, capitão, corre para a nunciatura e salva o núncio. Nessa tarde, Pacelli sai à rua de carro com o secretário. “Excelência, olhe bem para aquele homem que está a caminhar acolá, no passeio, em direcção a nós. É Adolf Hitler”. O núncio nunca se esqueceu do dia em que se cruzou, pela primeira vez, com o jovem cabo e pintor austríaco, à data já famoso pelos discursos torrenciais e por frequentar os encontros do Partido dos Trabalhadores Alemães.
uma encíclica e um cartoon Quando Hitler se tornou chanceler do Reich, a 30 de Janeiro de 1933, impondo uma longa lista de leis raciais, Pacelli era secretário de Estado do Vaticano. Em Janeiro de 1937, reúne com o Papa Pio XI e os bispos alemães – chamados de urgência a Roma. Os prelados reportam à Santa Sé que os ataques à liberdade religiosa na Alemanha estão a aumentar. Pio XI decide então publicar uma encíclica, “Mit brennender sorge”, condenando a repressão da liberdade religiosa e o culto idolátrico da raça. O documento é enviado por correio diplomático ao arcebispo de Berlim. Chega às paróquias alemãs das mais variadas formas, mas não por correio para não ser interceptado pela Gestapo. No domingo seguinte, é lida em todas as igrejas da Alemanha e Hitler fica furioso: “Não suportamos que qualquer autoridade ataque o povo germânico”. Dois dias depois, é publicado no semanário alemão “Das Schwarze Korps” uma caricatura em que o secretário de Estado do Vaticano aparece em “confidências exageradas” com “uma gorda comunista”. A legenda dizia: “Não é bonita, mas cozinha bem”.
A tempestade de Viena Mas as relações entre Hitler e a Santa Sé deterioram-se verdadeiramente dois dias depois de Adolf ter proclamado a Anschluss – anexação da Áustria ao Reich alemão em Março de 1938. Hitler é recebido com exaltação em Viena por todas as personalidades de relevo, dos políticos à burguesia. E o cardeal-arcebispo de Viena apresenta-se também ao Führer. Três dias depois, Teodoro Innitzer e os bispos austríacos assinam de cruz a declaração da Anschluss. Pio XI sabe e fica furioso. O “L’Osservatore Romano” apressa-se a marcar uma posição, afastando-se de Innitzer – que é chamado ao Vaticano e obrigado a assinar uma nota de retratação. Hitler lê o texto e fica furioso e, a 7 de Outubro, o arcebispado de Viena e as escolas católicas são saqueadas.
Entretanto, Hitler visita Itália e pede uma reunião a Pio XI. O Papa impõe uma condição: só o recebe se o ditador renunciar à política anticatólica. Hitler recusa e o Papa vai para Castel Gandolfo, depois de mandar fechar os museus do Vaticano. A 1 de Outubro, quando os nazis entram na Checoslováquia, Pio XI está já gravemente doente. Nove dias depois, morre durante a noite. Pacelli passa de secretário de Estado a camerlengo. Cabe–lhe organizar o conclave que, a 1 de Março de 1939, na véspera do seu 63.o aniversário, o tornará no Papa Pio XII. A Alemanha reage à eleição de forma hostil. “Pacelli é completamente judeu”, noticia o jornal nazi “Das Reich”. Em Setembro, Hitler invade a Polónia e Pio XII escreve e publica a primeira encíclica do pontificado, “Summi pontificatus”, em que defende que todos os povos são iguais, independentemente da sua raça. Hitler promete destruir o Vaticano.
Bombas nos céus de Roma A 19 de Julho de 1943, o Papa acorda ao nascer do dia com um barulho longínquo. Corre à janela com um pequeno binóculo e vê chamas na direcção de Santa Maria Maior: Roma está a ser bombardeada. Pacelli não entende: Roosevelt, o presidente americano, tinha-lhe garantido que as igrejas de Roma não seriam atacadas e que o Vaticano seria um Estado aberto. A promessa falhou e a cidade romana foi bombardeada durante quatro horas. À noite, Pio XII escreve uma carta de protesto ao presidente americano. Dias depois, os jornais anunciam que, por insistência da Santa Sé, do governo italiano e da Suíça, Roma fora declarada “cidade aberta”. Chegou a paz, apesar de Itália estar um caos: o governo de Badgolio teve de assinar um armistício com os aliados, o que provocou Hitler. Mussolini está no Norte do país, a reconstituir um governo fascista, a República de Salò. Os nazis entram em Roma com força e Hitler precisa de garantir que o Vaticano não segue o caminho de Itália e cede aos aliados. O Führer manda chamar Karl Wolf, nazi de ferro desde 1931. “Precisamos urgentemente de contramedidas contra os italianos traidores. Deveis levar as vossas tropas e ocupar o Vaticano. Deveis salvar as obras de arte, os arquivos e transportar o Papa para Norte. Mandarei alojar Pacelli na Alemanha. Depois pensaremos em toda a Cúria”, ordena-lhe. O Papa não deveria morrer durante a operação para não incendiar os ânimos dos católicos espalhados pelo mundo. Hitler fez ainda um último pedido: “Lembrai- -vos de trazer dos Museus do Vaticano as antigas inscrições rúnicas”.
o Cerco ao Vaticano Em Setembro de 1943, o sumo pontífice está já avisado de que há um plano para o raptar e recomenda a todos os cardeais que façam as malas: a qualquer momento, o Vaticano poderia ser invadido. Pio XII recusa-se a fugir e toma uma outra medida: entrega a um cardeal de confiança uma carta com a sua resignação: “Se os nazis vierem aqui, terão nas mãos não um Papa, mas o cardeal Pacelli e assim salvaremos a liberdade da Igreja”.
A intenção de raptar o Papa torna-se entretanto pública. A rádio da República de Salò anuncia-o claramente a 7 de Outubro de 1943. “Na Alemanha estão a preparar os alojamentos para o Papa”. Os aliados temem que Pio XII se tenham passado para o lado germânico.
O Inverno chega a Itália, com frio e fome em todo o país. Pio XII janta sozinho quando um avião sobrevoa o céu do Vaticano e lança quatro bombas. Uma cai a poucos metros do Palácio Apostólico. Foram os aliados, que queriam que o Papa denunciasse publicamente os nazis e, assim, fazer crer ao mundo que Pio XII estava do lado americano. Mas o Papa cala-se e torna-se persona non grata para os dois lados da guerra. Depois de Roosevelt morrer, o seu sucessor, Henry Truman, escreve ao sumo pontífice e chama-o, depreciativamente, de “senhor Pacelli”.
Pouco a pouco, Hitler vai perdendo espaço e na noite de lua cheia de 3 para 4 de Junho de 1944, Roma em ruínas é libertada pelas forças aliadas. O Führer está recolhido na Toca do Lobo, longe do mundo. A 30 de Abril de 1945, as 20 pessoas que o acompanham fielmente são convocadas para uma última despedida. Adolf aperta a mão a todos e retira-se com Eva Braun. Suicidam-se poucos minutos depois. Pio XII morreu em 1958, dia em que, recorda Mario dal Bello, chegaram ao Vaticano mensagens de condolências do mundo judaico – da ministra do Negócios Estrangeiros de Israel ao próprio presidente, do grão-rabino de Jerusalém ao presidente da Central Conference of American Rabbis. (ionline.pt)
por Rosa Ramos