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    Patrice Lumumba: A ternura do Herói de África

    NELSON PESTANA  (Bonavena) (Foto: D.R.)
    NELSON PESTANA
    (Bonavena)
    (Foto: D.R.)

    As independências africanas, a partir de 1957, no Ghana de Kwame Nkrumah, mas sobretudo com a grande leva de independências de 1960, suscitaram muitas esperanças para todos os países colonizados de África e representaram também um desafio para os novos dirigentes africanos, confrontados com a necessidade de passarem dos discursos de libertação aos actos de satisfação das imensas aspirações de liberdade e de bem-estar das populações, longamente oprimidas pelas potências coloniais.

    Diante do destino desses novos países, que herdaram o Estado colonial, com suas fronteiras, sua economia, sua descriminação social, os dirigentes africanos tinham que lidar, cada um à sua maneira, com questões fundamentais como a democracia, o desenvolvimento e as relações internacionais (Norte/Sul). É neste contexto que se destaca a figura emblemática do nacionalista revolucionário africano Patrice Emery Lumumba (1925-1961). Este mártir da independência do Congo (RDC) foi brutalmente assassinado por forças nacionais, ao serviço de potências estrangeiras, encabeçadas pelo chefe das récem-formadas Forças Armadas congolesas, Joseph Désiré Mobutu (19??-19??.) que seria o chefe de uma ditadura brutal e predadora.

    O grande poeta congolês, Tchicaya U Tam’si (1928-1998), que deixou Paris, em 1960, para seguir Lumumba e com ele trabalhar em Kinshasa, num dos seus vibrantes poemas, refere-o como o herói do sorriso terno que foi o “pão e o fermento” da aspiração de liberdade dos congoleses e de todos africanos. Seguramente que sim, basta lembrar o seu exemplo inspirador no levantamento da Baixa de Kasanji e o que o seu nome representava, naquela época, para as nossas aspirações colectivas de liberdade.

    A clivagem então era entre Tsombé, líder da secessão territorial do Katanga (actual Shaba), apoiado pelos colonos e Lumumba, acarinhado pelos nacionalistas e o povo escondido que exultava com os seus feitos. Ainda hoje ressoam as palavras do seu discurso de posse como Primeiro-Ministro, do primeiro governo da RDC independente, respondendo ao paternalismo

    colonial belga.

    Holden Roberto, embora fosse amigo de Mobutu, de quem teve todo o apoio, para dar provas do seu engajamento de fidelidade ao panafricanismo, à luta revolucionária dos povos africanos e contradizer as acusações de que era colaborador do imperialismo americano, recitou integralmente esse discurso, de pé, de cor, diante de Georges Nzongola-Ntalaja.

    Não sendo muito dado ao culto de ícones, no meu panteão pessoal há um lugar que pertence a Lumumba, pelo seu exemplo de superação, inteligência, coragem e abnegação.

    E, não é excessivo ressaltar este testemunho de quem fez da dignidade, da liberdade e da independência do seu país valores absolutos e os defendeu, mesmo com o sacrifício da vida.

    Na verdade, a sua morte tem uma dimensão histórica inegável, não foi um simples assassinato; Lumumba representava uma pedra no sapato neocolonial, uma comunhão com as massas populares congolesas que se alargava e se radicalizava, uma solidariedade com os demais povos colonizados que se adivinhava, um movimento predestinado a integrar várias regiões do continente e de o conduzir à exigência da justiça social e da reparação da dignidade. Lumumba é a expressão da África pela positiva.

    Chora, Ó Negro Irmão Bem-Amado

    Ó Negro, gado humano desde há milénios

    As tuas cinzas espalham-se a todos os ventos do céu

    E construíste outrora os templos funerários

    Onde dormem os carrascos num sono eterno

    Perseguido e cercado, expulso das tuas aldeias

    Vencido em batalhas onde a lei do mais forte,

    Nestes séculos bárbaros de rapto e carnificina,

    Significava para ti a escravatura ou a morte,

    Refugiaste-te nestas florestas profundas

    Onde a outra morte espreitava sob a sua máscara febril

    Nos dentes do felino, ou no abraço imundo

    e frio da serpente, esmagando-te pouco a pouco.

    E depois veio o Branco, mais dissimulado, astucioso e rapace

    Que trocava o teu ouro por pacotilha

    Violentando as tuas mulheres, embriagando os teus guerreiros,

    Recolhendo nos seus navios os teus filhos e filhas

    O tantã

    vibrava de aldeia em aldeia

    Levando ao longe o luto, semeando a aflição

    Anunciando a grande partida para margens longínquas

    Onde o algodão é Deus e o dólar Rei

    Condenado ao trabalho forçado, como um animal de carga

    Da alva ao crepúsculo sob um sol de fogo

    Para te fazer esquecer que eras um homem

    Ensinaram-te a cantar os louvores de Deus.

    E esses diversos cânticos, ritmando o teu calvário

    Davam-te esperança num mundo melhor…

    Mas no teu coração de criatura humana, não pedias mais

    Que o teu direito à vida e ao teu quinhão de felicidade.

    Sentado ao pé do fogo, com os olhos cheios de sonho e de angústia

    Cantando melopeias que traduziam a tua tristeza

    Por vezes também alegre, quando a seiva subia

    Dançavas, perdido, no orvalho da noite.

    E foi daí que jorrou, magnífica,

    Sensual e viril como uma voz de bronze

    Nascida da tua dor, a tua poderosa música,

    O jazz, hoje admirado no mundo

    Obrigando o homem branco a respeitar-te

    Dizendo-lhe em voz alta que doravante,

    Este país já não é dele como nos velhos tempos.

    Permitiste assim aos teus irmãos de raça

    Levantar a cabeça e olhar de frente

    O futuro feliz que a libertação promete.

    As margens do grande rio, plenas de promessas

    São doravante tuas.

    Esta terra e todas as suas riquezas

    São doravante tuas.

    E lá no alto, o sol de fogo num céu sem cor,

    Com o seu calor abafará a tua dor

    Os seus raios ardentes secarão para sempre

    A lágrima que os teus antepassados verteram,

    Martirizados pelos seus amos tirânicos,

    Neste solo que tu amarás sempre.

    E farás do Congo uma nação livre e feliz,

    No centro desta gigantesca África Negra.

    Patrice Lumumba

    [poema publicado, pela primeira vez, em Setembro de 1959, no jornal INDEPENDANCE, órgão do Movimento Nacional Congolês (M.N.C.), partido que Lumumba passou a liderar a partir de Outubro de 1958. O poema foi reproduzido em La pensée politique de Patrice LUMUMBA, textes et documents recueillis par Jean VAN LIERDE, Présence Africaine, 1963, pp. 6970 e em Patrice Lumumba, a colectânea de textos apresentada por Georges Nzongola Ntalaja, CETIM, 2013, pp. 3133, de onde foi retirado para esta tradução e publicação.] (CULTURA-Jornal angolano de Artes & Letras)

     

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