As independências africanas, a partir de 1957, no Ghana de Kwame Nkrumah, mas sobretudo com a grande leva de independências de 1960, suscitaram muitas esperanças para todos os países colonizados de África e representaram também um desafio para os novos dirigentes africanos, confrontados com a necessidade de passarem dos discursos de libertação aos actos de satisfação das imensas aspirações de liberdade e de bem-estar das populações, longamente oprimidas pelas potências coloniais.
Diante do destino desses novos países, que herdaram o Estado colonial, com suas fronteiras, sua economia, sua descriminação social, os dirigentes africanos tinham que lidar, cada um à sua maneira, com questões fundamentais como a democracia, o desenvolvimento e as relações internacionais (Norte/Sul). É neste contexto que se destaca a figura emblemática do nacionalista revolucionário africano Patrice Emery Lumumba (1925-1961). Este mártir da independência do Congo (RDC) foi brutalmente assassinado por forças nacionais, ao serviço de potências estrangeiras, encabeçadas pelo chefe das récem-formadas Forças Armadas congolesas, Joseph Désiré Mobutu (19??-19??.) que seria o chefe de uma ditadura brutal e predadora.
O grande poeta congolês, Tchicaya U Tam’si (1928-1998), que deixou Paris, em 1960, para seguir Lumumba e com ele trabalhar em Kinshasa, num dos seus vibrantes poemas, refere-o como o herói do sorriso terno que foi o “pão e o fermento” da aspiração de liberdade dos congoleses e de todos africanos. Seguramente que sim, basta lembrar o seu exemplo inspirador no levantamento da Baixa de Kasanji e o que o seu nome representava, naquela época, para as nossas aspirações colectivas de liberdade.
A clivagem então era entre Tsombé, líder da secessão territorial do Katanga (actual Shaba), apoiado pelos colonos e Lumumba, acarinhado pelos nacionalistas e o povo escondido que exultava com os seus feitos. Ainda hoje ressoam as palavras do seu discurso de posse como Primeiro-Ministro, do primeiro governo da RDC independente, respondendo ao paternalismo
colonial belga.
Holden Roberto, embora fosse amigo de Mobutu, de quem teve todo o apoio, para dar provas do seu engajamento de fidelidade ao panafricanismo, à luta revolucionária dos povos africanos e contradizer as acusações de que era colaborador do imperialismo americano, recitou integralmente esse discurso, de pé, de cor, diante de Georges Nzongola-Ntalaja.
Não sendo muito dado ao culto de ícones, no meu panteão pessoal há um lugar que pertence a Lumumba, pelo seu exemplo de superação, inteligência, coragem e abnegação.
E, não é excessivo ressaltar este testemunho de quem fez da dignidade, da liberdade e da independência do seu país valores absolutos e os defendeu, mesmo com o sacrifício da vida.
Na verdade, a sua morte tem uma dimensão histórica inegável, não foi um simples assassinato; Lumumba representava uma pedra no sapato neocolonial, uma comunhão com as massas populares congolesas que se alargava e se radicalizava, uma solidariedade com os demais povos colonizados que se adivinhava, um movimento predestinado a integrar várias regiões do continente e de o conduzir à exigência da justiça social e da reparação da dignidade. Lumumba é a expressão da África pela positiva.
Chora, Ó Negro Irmão Bem-Amado
Ó Negro, gado humano desde há milénios
As tuas cinzas espalham-se a todos os ventos do céu
E construíste outrora os templos funerários
Onde dormem os carrascos num sono eterno
Perseguido e cercado, expulso das tuas aldeias
Vencido em batalhas onde a lei do mais forte,
Nestes séculos bárbaros de rapto e carnificina,
Significava para ti a escravatura ou a morte,
Refugiaste-te nestas florestas profundas
Onde a outra morte espreitava sob a sua máscara febril
Nos dentes do felino, ou no abraço imundo
e frio da serpente, esmagando-te pouco a pouco.
E depois veio o Branco, mais dissimulado, astucioso e rapace
Que trocava o teu ouro por pacotilha
Violentando as tuas mulheres, embriagando os teus guerreiros,
Recolhendo nos seus navios os teus filhos e filhas
O tantã
vibrava de aldeia em aldeia
Levando ao longe o luto, semeando a aflição
Anunciando a grande partida para margens longínquas
Onde o algodão é Deus e o dólar Rei
Condenado ao trabalho forçado, como um animal de carga
Da alva ao crepúsculo sob um sol de fogo
Para te fazer esquecer que eras um homem
Ensinaram-te a cantar os louvores de Deus.
E esses diversos cânticos, ritmando o teu calvário
Davam-te esperança num mundo melhor…
Mas no teu coração de criatura humana, não pedias mais
Que o teu direito à vida e ao teu quinhão de felicidade.
Sentado ao pé do fogo, com os olhos cheios de sonho e de angústia
Cantando melopeias que traduziam a tua tristeza
Por vezes também alegre, quando a seiva subia
Dançavas, perdido, no orvalho da noite.
E foi daí que jorrou, magnífica,
Sensual e viril como uma voz de bronze
Nascida da tua dor, a tua poderosa música,
O jazz, hoje admirado no mundo
Obrigando o homem branco a respeitar-te
Dizendo-lhe em voz alta que doravante,
Este país já não é dele como nos velhos tempos.
Permitiste assim aos teus irmãos de raça
Levantar a cabeça e olhar de frente
O futuro feliz que a libertação promete.
As margens do grande rio, plenas de promessas
São doravante tuas.
Esta terra e todas as suas riquezas
São doravante tuas.
E lá no alto, o sol de fogo num céu sem cor,
Com o seu calor abafará a tua dor
Os seus raios ardentes secarão para sempre
A lágrima que os teus antepassados verteram,
Martirizados pelos seus amos tirânicos,
Neste solo que tu amarás sempre.
E farás do Congo uma nação livre e feliz,
No centro desta gigantesca África Negra.
Patrice Lumumba
[poema publicado, pela primeira vez, em Setembro de 1959, no jornal INDEPENDANCE, órgão do Movimento Nacional Congolês (M.N.C.), partido que Lumumba passou a liderar a partir de Outubro de 1958. O poema foi reproduzido em La pensée politique de Patrice LUMUMBA, textes et documents recueillis par Jean VAN LIERDE, Présence Africaine, 1963, pp. 6970 e em Patrice Lumumba, a colectânea de textos apresentada por Georges Nzongola Ntalaja, CETIM, 2013, pp. 3133, de onde foi retirado para esta tradução e publicação.] (CULTURA-Jornal angolano de Artes & Letras)