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    Papa Francisco critica “brutalidade e ferocidade” dos russos na Ucrânia e diz que “a Terceira Guerra Mundial já foi declarada”

    O Papa Francisco falou duramente sobre a situação na Ucrânia durante uma conversa com os directores das revistas culturais dos jesuítas — e pede que se tenha atenção à dimensão humana do conflito.

    O Papa Francisco considera que “a Terceira Guerra Mundial já foi declarada” e que a invasão da Ucrânia pela Rússia está a ser marcada pela “brutalidade e a ferocidade com que esta guerra está a ser levada a cabo pelas tropas, geralmente mercenárias, utilizadas pelos russos”.

    Numa conversa no Vaticano com os diretores das revistas culturais da Companhia de Jesus, divulgada esta terça-feira em simultâneo em várias destas publicações (incluindo na portuguesa Brotéria, dirigida pelo padre jesuíta José Frazão Correia, também presente na conversa), o Papa Francisco endureceu o discurso de condenação da Rússia, garantindo que não é “pró-Putin”.

    Depois de nas primeiras semanas da guerra o líder da Igreja Católica ter escolhido cautelosamente as palavras com que abordou o tema, esperando não frustrar as possibilidades de o Vaticano mediar uma negociação de paz através da sua posição privilegiada junto da hierarquia da Igreja Ortodoxa Russa, próxima de Putin, o Papa Francisco tem vindo a endurecer o discurso à medida que essas esperanças se desvanecem — e, na conversa com os responsáveis das revistas jesuítas, o líder da Igreja fez o seu pronunciamento mais duro até agora sobre a guerra, embora não esquecendo que é necessário evitar uma redução do conflito à ideia de “bons e maus em termos metafísicos”.

    “Temos de nos afastar do padrão normal do ‘Capuchinho Vermelho’: o Capuchinho Vermelho era bom e o lobo era o mau da fita. Aqui não há bons e maus em termos metafísicos, de uma forma abstrata. Algo de global está a emergir, com elementos que estão muito interligados”, diz o Papa Francisco, lembrando uma experiência pessoal passada antes da guerra.

    “Alguns meses antes do início da guerra, conheci um chefe de Estado, um homem sábio, que fala muito pouco, muito sábio mesmo. E, depois de falar sobre as coisas de que queria falar, disse-me que estava muito preocupado com a forma como a NATO se estava a mover. Perguntei-lhe porquê, e ele respondeu: ‘Eles estão a ladrar às portas da Rússia. E não compreendem que os russos são imperiais e não permitem que nenhuma potência estrangeira se aproxime deles’. E concluiu: ‘Esta situação poderá levar à guerra’. Esta era a sua opinião. A 24 de fevereiro, a guerra começou. Aquele chefe de Estado foi capaz de ler os sinais do que estava para acontecer.”

    No entender do Papa Francisco, “aquilo a que estamos a assistir são a brutalidade e a ferocidade com que esta guerra está a ser levada a cabo pelas tropas, geralmente mercenárias, utilizadas pelos russos”. O líder da Igreja diz que “os russos preferem, de facto, colocar na linha da frente chechenos, sírios, mercenários”.

    Contudo, o Papa deixa um alerta sobre o modo como o mundo ocidental está a olhar para esta guerra, que já dura há mais de 100 dias e que já causou a morte a mais de 4 mil civis, se olharmos apenas aos números oficiais da ONU: “O perigo é que só vemos isto, o que é monstruoso, e não vemos todo o drama que se está a desenrolar por detrás desta guerra, que talvez tenha sido de alguma forma provocada ou não impedida. E registo ainda o interesse em testar e vender armas. É muito triste, mas, no fundo, é mesmo isto que está em jogo.”

    “Alguém me poderia dizer neste momento: mas o Papa é pró-Putin!”, acrescentou Francisco, antecipando uma reação possível às suas declarações. “Não, não sou. Seria simplista e errado dizer uma coisa desse género. Sou simplesmente contra a redução da complexidade à distinção entre os bons e os maus sem raciocínio sobre as raízes e interesses, que são muito complexos. Enquanto assistimos à ferocidade, à crueldade das tropas russas, não devemos esquecer os problemas, a fim de tentar resolvê-los.”

    “Também é verdade que os russos pensavam que tudo estaria terminado numa semana. Mas calcularam mal. Encontraram um povo corajoso, um povo que luta pela sobrevivência e que tem uma história de luta na sua própria história”, acrescentou o Papa.

    Três guerras mundiais: “O que está a acontecer à humanidade?”
    Mas o Papa Francisco foi mais longe ainda na análise ao momento atual e considerou que já está declarada uma Terceira Guerra Mundial.

    “Devo também acrescentar que o que está a acontecer agora na Ucrânia é visto por nós desta forma, porque está mais próximo de nós e toca mais a nossa sensibilidade. Mas há outros países distantes – pensem em algumas partes de África, norte da Nigéria, norte do Congo – onde a guerra ainda está a decorrer e ninguém se importa. Pensem no Ruanda há 25 anos. Pensem em Mianmar e nos Rohingya. O mundo está em guerra”, diz o Papa.

    “Há alguns anos ocorreu-me dizer que estamos a viver a terceira guerra mundial aos pedaços. Aí está; para mim, hoje em dia, a Terceira Guerra Mundial já foi declarada.”

    “Este é um aspeto que nos deveria fazer refletir. O que está a acontecer à humanidade que, apenas num século, já teve três guerras mundiais? Vivo a Primeira Guerra através da memória do meu avô junto ao Piave. Depois a segunda e, agora, a terceira. E isto é um mal para a humanidade, uma calamidade. É preciso pensar que num século houve três guerras mundiais sucessivas, com todo o comércio de armas por detrás delas!”, acrescentou Francisco, pedindo que se olhe para o lado humano da guerra.

    “Há alguns anos, comemorou-se o desembarque na Normandia. Muitos chefes de Estado e de governo celebraram a vitória. Nenhum deles se recordou das dezenas de milhares de jovens que morreram na praia naquela ocasião. Quando fui a Redipuglia, em 2014, para o centenário da Primeira Guerra – vou fazer uma confissão pessoal –, chorei quando vi a idade dos soldados caídos. Quando, alguns anos depois, a 2 de Novembro – todos os anos, no dia 2 de Novembro, visito um cemitério –, fui a Anzio, também ali chorei quando vi a idade destes soldados caídos. No ano passado fui ao cemitério francês e os túmulos dos jovens – cristãos ou islâmicos, porque os franceses também chamavam homens do Norte de África para combater – eram também de jovens de 20, 22, 24 anos de idade”, disse.

    Dirigindo-se aos diretores das revistas culturais dos jesuítas na Europa, o Papa pediu que as revistas “abordassem o lado humano da guerra”.

    “Gostaria que as vossas revistas fizessem as pessoas compreender o drama humano da guerra. É muito bom fazer um cálculo geopolítico, estudar as coisas em profundidade. Têm de o fazer porque é a vossa missão. Mas procurem também transmitir o drama humano da guerra”, disse o Papa, especificando: “O drama humano daqueles cemitérios, o drama humano das praias da Normandia ou de Anzio, o drama humano de uma mulher a cuja porta bate o carteiro para lhe entregar uma carta com um agradecimento por ter dado um filho à pátria, por ser um herói da pátria… E assim fica sozinha. Refletir sobre estas coisas ajudaria muito a humanidade e a Igreja. Façam as vossas reflexões sociopolíticas, mas não descurem a reflexão humana sobre a guerra.”

    O Papa Francisco lembrou ainda a visita que recebeu, há dias, no Vaticano, de duas mulheres ucranianas, cujos maridos combatentes se encontravam retidos na fábrica da Azovstal, em Mariupol, um complexo industrial que se tornou num símbolo da resistência ucraniana numa cidade cercada pelos russos.

    “Vieram pedir-me que intercedesse para que eles fossem salvos. Todos somos verdadeiramente sensíveis a estas situações dramáticas. São mulheres com filhos, cujos maridos estão ali a lutar. Mulheres jovens e bonitas. Mas pergunto-me: o que acontecerá quando o entusiasmo para ajudar abrandar? Porque as coisas já estão a arrefecer… Quem cuidará destas mulheres? Devemos olhar para além da ação concreta do momento e ver como podemos apoiá-las para que não caiam no tráfico, não sejam usadas, porque os abutres já andam em círculos.”

    Lembrando a história da Ucrânia, o Papa Francisco classificou-a como “um país rico que foi sempre retalhado, cortado aos pedaços pela vontade daqueles que queriam apoderar-se dele para o explorar”.

    “É como se a história tivesse predisposto a Ucrânia para ser um país heroico. Ver este heroísmo toca os nossos corações. Um heroísmo que anda de mãos dadas com a ternura! De facto, quando os primeiros jovens soldados russos chegaram – mais tarde é que enviaram os mercenários –, com o intuito de realizar uma ‘operação militar’, como diziam, sem saberem que iam para a guerra, foram as próprias mulheres ucranianas que tomaram conta deles quando se renderam. Grande humanidade, grande ternura. Mulheres corajosas. Pessoas corajosas. Um povo sem medo de lutar. Um povo trabalhador e, ao mesmo tempo, orgulhoso da sua terra. Tenhamos em mente a identidade ucraniana, neste momento. É isto que nos comove: ver o seu heroísmo. Gostaria verdadeiramente de salientar este ponto: o heroísmo do povo ucraniano”, disse o Papa. “O que está perante os nossos olhos é uma situação de guerra mundial, de interesses globais, de venda de armas e de apropriação geopolítica, que está a martirizar um povo heroico.”

    Francisco quer reunir-se com patriarca ortodoxo em Setembro
    O encontro chegou a estar marcado — deveria acontecer justamente esta terça-feira, 14 de Junho, em Jerusalém — mas a guerra e a tensão crescente entre Roma e Moscovo levou ao adiamento. Ainda assim, o Papa Francisco continua a querer encontrar-se com o Patriarca Cirilo I, o líder da Igreja Ortodoxa Russa e um dos principais aliados de Vladimir Putin numa guerra em que a Igreja e a identidade religiosa do povo russo têm sido instrumentais para que Putin justifique a ofensiva contra a Ucrânia.

    O Papa recordou a conversa que teve com Cirilo I à distância. “Tive uma conversa de quarenta minutos com o Patriarca Cirilo. Na primeira parte, ele leu-me uma declaração na qual apresentava razões para justificar a guerra. Quando terminou, intervim e disse-lhe: ‘Irmão, nós não somos clérigos de Estado, somos pastores do povo’. Deveria encontrar-me com ele a 14 de Junho em Jerusalém, para falar sobre os nossos assuntos. Mas, com a guerra, por acordo mútuo, decidimos adiar a reunião para uma data posterior, para que o nosso diálogo não fosse mal-entendido. Espero encontrá-lo por ocasião de um congresso no Cazaquistão, em setembro. Espero poder cumprimentá-lo e falar um pouco com ele como pastor.”

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