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    Mário Pinto de Andrade e a valorização literária do kimbundu

    Mário Pinto de Andrade. Foto (DR)
    Mário Pinto de Andrade.
    Foto (DR)

    Antes de todo o resto, gostaria de trazer alguns dados bio-bibliográficos do poeta, ensaista e nacionalista Mário Coelho Pinto de Andrade, de seu nome completo.

    Faleceu aos 26 de Agosto de 1990, em Londres, vítima de leucemia e tuberculose, cumprindo-se 23 anos sobre o seu passamento físico.

    Nasceu aos 31 de Agosto de 1928, na região do hinterland do Golungo Alto, sendo com os plumitivos Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, Alda Lara e Mário António, dos pioneiros da afirmação da Literatura Moderna Angolana.

    O pai de MPA foi membro da chamada “lumpen-aristocracia da época”, foi co-fundador da Liga Nacional Africana com Gervásio Viana e António Assis Júnior. “A febre da sociablidade contestatária da minha geração vem dos tempos de nativismo”, recordava em 1984, em entrevista ao extinto jornal de África, então editado em Lisboa.

    Cedo veio para Luanda, com a vergôntea idade dos dois anos. Crescido nas Ingombotas, viria a frequenter o seminário, depois de uma crise “mística”, tendo depois frequentado o Liceu Salvador Correia nos anos 40. Em 1948 parte para Portugal, onde viria a estudar filologia clássica, na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em Outubro de 1951 funda com Francisco José Tenreiro, no âmbito do “Movimento de Reafricanização dos Espíritos”, o Centro de Estudos Africanos, que se propunha resgatar a identidade cultural dos estudantes africanos evoluindo na diáspora, marcados pela alienação do assimilacionismo colonial.

    Em 1953 publica a antologia “Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa”.

    O caderno abria com a sua introdução, enquanto a nota final era do poeta e geógrafo santomense J.Tenreiro.

    Depois dessa antologia, outras se seguiriam, mais abrangentes das cinco literaturas africanas de língua portuguesa, entre as quais destacamos a antologia publicada em Paris em 1958 e a intitulada na “Noite grávida de punhais” (1978). Estudou sociologia na Universidade francesa de Sorbome.

    Em 1960 é 1º presidente do MPLA, liderando o Comité Director do criado em Conakry, sendo secundado por Viriato da Cruz, então secretário- geral.

    Publicou ao longo dos anos 50, 60, 70 e 80 diversos ensaios, bem como proferiu várias conferências sobre a sociologia, a economia, a cultura e a literatura africanas de língua portuguesa.

    Foi professor visitante da Universidade Eduardo Mondlane e ministro da Informação e Cultura da Guiné-Bissau, entre 1975/80. Foi, igualmente, consultor da UNESCO, tendo- lhe sido encomendada por essa instituição da ONU vocacionada ao Ensino e à Cultura, uma antologia sobre a Poesia Africana, que deixou inacabada. Deixou inacabado também um estudo sobre “As origens do Nacionalismo Angolano”, que o trazia ocupado em pesquisas realizadas em Lisboa, Paris, Estados Unidos, Praia, S.Tomé e Princípe, Bissau e Maputo, cuja fixação e publicação “post-mortem” foi adulterada.

    Em 1989, dada a indenfinição em que havia caído a solução do conflito angolano, criou um “Grupo de reflexão para uma mediação interna para paz em Angola”, com Gentil Viana, Adolfo Maria e Joaquim Pinto Andrade. Ironia da história: a guerra angolana foi definida num diálogo entre irmaos, sem abusivas interferêncas estrangeiras.

     

    Na antologia da CEI sobre a poesia angolana, coligida em finais dos anos 50, constam dois poemas em kimbundu de Mário de Andrade, intitulados “Lemba” e “Muimbu ua Sabalu” (Canção para Sabalu). Tais poemas não deixam de ser significativos no contexto sócio-cultural da época, pois foram escritos e publicados entre os anos 40/50, o que indicia uma ruptura do autor com a ordem cultural e política colonial, que dava um tratamento desprezível às nossas línguas maternas africanas.

    Vale dizer que, em Abril de 1952, profere uma palestra subordinada ao tema “Isto é kimbundu”, no marco das actividades culturais do CEA, de que era o principal animador, e um ensaio sobre “O kimbudu nas línguas de Angola”, na revista “Mensagem”, no âmbito da sua pesquisa sobre a linguística africana, disciplina da sua predileção na época da constestação inicial da ordem cultural colonial.

    A musicalidade dos referidos poemas poderá ser captada na eventual carga tributária da oralidade que encerram, para lá do ritmo e de harmonia que lhes são característicos. Não sendo iguais em termos de conseguimento estético, o “Muimbu ua Sabalu” revelase magistral, indiciando, também, por via disso, não só a consciência cultural e o grau de intervenção cívica do autor (que aprendera o kimbundu com o criado e a madrasta no quintal da sua casa), como da sua geração, até pela sua interxualidade. O poema mais conhecido de MPA trava um diálogo intertextual com outros poemas da mesma temática de autores coetâneos seus, como Agostinho Neto, nos poemas nostálgcos “Partida para o contrato” e “Adeus à hora da largada” ou com os mais interventivos de António Jacinto, “Carta de um contratado” e “Monangambé”.

    Os poemas em apreço constituem autênticos libelos acusatórios contra a engrenagem infra-humana do contrato, ou, no dizer de MPA, a “sub-humanidade do contrato”.

    Importa sublinhar que a economia da época era particularmente dominada pelo mercado do café, cuja produção era assegurada basicamente pelos contratados, tema que atravessava o ambiente da criação literária desses poetas. Dito de outro modo: tal núcleo temático marca o seu imaginário poético, embreenhando um discurso contestatário na ruptura cultural e mesmo política com o sistema (pre)dominante na época, ultrapassagem histórica do discurso laudatório das gerações precedentes que se fantasiavam, grosso modo, a cantar os encantos da beleza negra, como o célèbre proto-nacionalista Cordeiro da Mata, no poema “Kicôola” ou Eduardo Neves, que tambem tenta intercalar o kimbundu e o português, demarche emocional interessante de reter.

    A interpenetração idiomática kimbundu/ português (e vice-versa), traduzido também na linguagem colloquial dos poemas da “Geração da Mensagem”, bem como nos contistas da “Geração da Cultura”, sem prejuízo das gerações literárias subsequentes, constitui ganhos estético-literários existenciais, circunstância que afasta quaisquer puritanismos serôdios de indisfarçáveis conservadores da última carruagem dos nossos tempos.

    Vejamos o poema “Muimbu ua sabalu” e o diólogo que estabelece com o poema “Partida para o contrato”, de Neto, bem como a interxualidade temática com os dois poemas já referenciados de Antóno Jacinto.

    O núcleo temático, como já ficou visto, é o mesmo: a crítica desassombrada à despersonalização do nativo angolano que, no caso em estudo, é tratado como mercadoria e vendido para outra partidas do mundo. Na ocorrência, o personagem Sabalu, de Mário de Andrade, tal como a de Agostinho Neto, é degredado para S.Tomé, como outros milhares e milhares terão sido enviados compulsivamente, não só para a costa do Golfo da Guiné, como para paragens mais logínquas do Novo Mundo, nos engenhos do açúcar e nos cafézais no Brasil e nas plantações no sul dos Estados Unidos, ou o Caribe, Cuba, Guianas Francesas, Haiti, Costa Rica, etc, etc. …

    Profundamente indignado com o drama da deportação do homem negro para a outra margem do Atlântico, o reputado escritor e cineasta senegalês Sembene Osmane interrogava-se em Maio de 1978, em Maputo, ao meditar sobre “Homem é cultura”, questionando o rumo que o africano teria tomado no plano existencial se não tivesse havido o tráfico de escravos que esvaziou o continente de milhões dos seus filhos.

    A resposta, em nosso modesto entender, não será facil de imaginar: foi uma profunda hemorragia demográfica que pesa até hoje na sua estrutura económica, social, cultural e populacional, sendo um dos vectores do seu subdesenvolvimento, pois para o “novo mundo” nao terão só ido parar almas vivas, como um conjunto de técnicas tradicionais, conhecimentos e experiências que teriam sido indespensáveis ao desenvolvimento endógeno do continente.

    Mas, como se costuma dizer, “não se deve chorar sobre o leite derramado”. É o que fazem poetas, mas mais do que grito de resignação, manifestam um grito de revolta, lançam o discurso de ruptura com establishment reinante na época, apelando ao discurso libertário das amarras que tocam no seu ego, enquanto seres investidos do nobre sentimento humano como o amor:

    “Meu amor lhe levaram /Manuel o

    seu amor partiu para S.Tome/p’ra lá do mar”(Agostinho Neto).

    O que é comparável ao lamento da amada de AN, ou mesmo ao angustiado contratado, incapaz de continuar a confidenciar, à distancia, com a amada, igualmente analfabeta. O drama é pungente: ambos não sabem ler, nem escrever. O evasionismo é notório perante o aperto da atmosfera social e política então reinante. Vale ressaltar o contraste que se colhe da fustração individual do amado(a) que, neste último caso, não sabe escrever para o(a) parceiro(a), como ocorre na “Carta de um contratado”, de António Jacinto.

    De resto, estamos em presença da linguagem comum que marca a geração pioneira da emergência, afirmação e, quiçá, consolidação da modernidade literária angolana, resumida numa manifesta linguagem intertextual e geracional, que os versos citados confimaram o fio condutor que os suporta. NORBERTO COSTA (CULTURA-jornal angolano de artes & letras)

     

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