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    José Eduardo dos Santos fez o necessário

    Ao chegar à Presidência da República, em 1979, José Eduardo dos Santos encontra a economia angolana a encaminhar-se, a passo firme, para a degradação e sem uma orientação programática para reverter esse estado de coisas, depois da interrupção das reformas de carácter socialista adoptadas com a independência nacional, em 1975.

    Ao descrever esse período, o economista angolano Mário Nelson afirmou, mais tarde, num colóquio consagrado à história do MPLA que, “a agravar a já difícil situação resultante do incremento da guerra, em 1981 registou-se, também, o início da queda da produção e do preço do petróleo, produto que, nesse ano, gerou mais de 95 por cento das receitas de exportação e acima de 80 por cento das receitas do OGE: a tendência de queda continuou nos anos seguintes”.

    O professor e pesquisador da Universidade de Cambridge Mário de Carvalho, refere-se a essa mesma época, meados da década de 80, como o período em que Angola começou a registar graves desequilíbrios macroeconómicos directamente relacionados com o choque externo resultante da queda acentuada do preço do petróleo nos mercados internacionais, em 1985, a partir de quando a balança de pagamentos global, até então excedentária devido ao crescimento das exportações petrolíferas e às receitas líquidas de capitais, passou a ser deficitária.

    Ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos
    (Foto: D.R.)

    Na liderança do MPLA, o partido-Estado, José Eduardo dos Santos deu os primeiros sinais do pragmatismo pelo que se vai conduzir ao longo de toda a sua era de 38 anos de governação, quando, ao reagir à precariedade da economia nacional, subscreve, de acordo com Mário Nelson, a necessidade da alteração do quadro estrutural da economia, com a adopção de um novo modelo que não era aquele decalcado da antiga União Soviética, baseado na propriedade estatal sobre os meios de produção e na cooperativização da agricultura, com planos de desenvolvimento dirigidos centralmente e sem respeito pelas leis económicas.

    Decorria o ano de 1983 quando se dá esse reconhecimento, no desfecho de um relatório produzido por uma equipa de economistas portugueses convidada a vir a Angola pelo Ministério das Finanças e o BNA expressamente para estudar a situação e propor medidas.

    O ministro das Finanças de 1982 a 1990, Augusto de Matos, aponta, em escritos recentes, “a prestimosa colaboração da equipa técnica chefiada pelo consultor do Banco Mundial Professor-Doutor Silva Lopes e composta pela dra. Manuela Morgado e pelo engenheiro António Guterres, actual Secretário-Geral das Nações Unidas, que produziu um relatório sobre a situação económica do país”.

    Com os trabalhos da equipa portuguesa ainda a decorrerem, o Ministério das Finanças e o BNA propuseram a vinda de uma outra equipa de economistas da Hungria que apoiou as conclusões e recomendações dos economistas portugueses.

    Augusto de Matos (sentado) e outros representantes institucionais angolanos na assinatura da adesão de Angola às instituições de Bretton Woods.
    (© Fotografia por: DR)

    Decisões pragmáticas

    Nisso, o pragmatismo de José Eduardo dos Santos reside em que, ao decidir em prol do interesse nacional, o ex-Presidente percebeu, de forma clara, a necessidade de uma abordagem diferente para a grave situação económica e social vivida, tendo recorrido a especialistas não oriundos dos países que, até aí, eram os conselheiros em matéria económica.

    É essa característica do líder de um poder que lidou com o Leste e se virou para o Ocidente, virtualmente a arte de “dormir com Deus e acordar com o diabo”, que vai determinar, mais tarde, quando se sublimam os ventos da mudança trazidos pelo fim da guerra fria, que José Eduardo dos Santos e o MPLA sejam dos únicos partidos-Estado ao redor do mundo que sobrevivem à viragem e asseguram a manutenção do poder.

    O Governo liderado por José Eduardo dos Santos virou-se para o Ocidente quando percebeu a inviabilidade da adaptação do modelo económico soviético, o que tem como marco mais significativo as negociações com o Clube de Paris e a adesão às instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI).

    Ao referir-se a essa proeza, Augusto de Matos, um dos principais negociadores angolanos desse processo, escreveu que “tamanho desafio tornou-se possível graças à firme determinação e coragem manifestada pelo engenheiro José Eduardo dos Santos, na altura Presidente da República, que, ultrapassando o impasse criado pelas estruturas partidárias do mais alto escalão e num gesto revelador de grande maturidade e sentido de Estado, com base nas competências atribuídas pela constituição vigente naquela época, usou a prerrogativa de Chefe de Estado e de Governo para ordenar a assinatura do acordo de adesão às instituições de Bretton Woods”.

    Acordo de Lusaka: José Eduardo dos Santos, então Presidente de Angola, ao lado do seu homólogo zambiano Frederick Chiluba e do antigo líder da UNITA Jonas Savimbi, em 1994
    (DR)

    Visão estratégica

    A aproximação ao Ocidente não era, nessa altura, em 1989, um facto novo, caso também se considere que José Eduardo dos Santos foi coerente com a decisão política adoptada, ainda, sob Agostinho Neto, de manter companhias ocidentais como operadoras e provedoras da opção tecnológica da indústria petrolífera angolana, algo a que o Presidente-Fundador tinha sido aconselhado pelas lideranças da Argélia e a Nigéria, dois dos maiores produtores continentais de hidrocarbonetos.

    Sob a liderança de José Eduardo dos Santos, a produção petrolífera angolana que, em 1975, era de 165 mil barris por dia (bpd), ascendeu a 500 mil bpd, em 1991, a 1,054 milhão, em 2004, e a 1,909 milhão, em 2010, um mérito que se afirma ser indissociável da figura do ex-Presidente.

    Em 1996, quando não conseguiu apoio do Ocidente para a reconstrução e viu fracassar uma conferência de doadores para Angola, José Eduardo dos Santos virou-se para a China, onde obteve os mais expressivos financiamentos enviados por Pequim a um país africano, assim como o estofo para importantes obras públicas, reveladoras, também elas, da faceta visionária que se pode juntar à do pragmatismo do antigo Presidente.

    José Eduardo dos Santos teve a visão de ordenar um colossal investimento em infra-estruturas, iniciando a reconstrução do país com a edificação de dezenas de centralidades, projectos ferroviários e rodoviários, perímetros irrigados para a produção agro-pecuária, bem como a construção de barragens como a de Capanda (iniciada ainda nos anos 80) e Laúca, assim como o arranque das obras de Caculo Cabaça, no quadro de um projecto mais amplo de electrificação do país.

    Teve visão bem-sucedida quanto à manutenção de Angola como país uno e indivisível, bem como a sua permanência e do seu partido no poder, tal como a teve no projecto de imposição do país como potência regional a nível das comunidades de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e Económica dos Estados da África Central (CEEAC) e nas relações internacionais, trocando o Leste pelo Ocidente e este pela China sem provocar ondas de choque.

    Também foi visionário ao projectar a implantação de uma burguesia nacional, dessa vez, uma empreitada controversa e que está no centro das promessas de combate à corrupção do Governo em funções, com as dúvidas desse debate a incidirem sobre se, nesse processo, o falecido Presidente conseguiu olhar além do partido, uma discussão que, aliás, também se aplica a todo o processo de reformas de mercado.

    José Eduardo dos Santos foi Presidente de Angola durante 30 anos.
    (HUGO CORREIA)

    A aplicação do programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF), iniciada em 1987, para “a criação de condições para o processo de estabilização e recuperação económica através da aplicação de uma correcta política de alianças, da revisão do Sistema de Direcção da Economia e do saneamento das contas do país”, foi abandonada três anos depois, mas marcou uma viragem do quadro estrutural da economia, com a introdução das noções de que ainda hoje foi fundamental para a viragem .

    Segundo Mário Nelson, em meados de 1990 deu-se o abandono do SEF e foi aprovado um programa diferente, o PAG, que tinha uma tónica de emergência centrada no combate à inflação através do congelamento de 95 por cento da massa monetária fora dos bancos e que durou escassos meses, tendo sido aprovados, no curto período de 1991 a 1997, mais oito programas de política económica, todos com uma duração muito curta, tendo a taxa de inflação, em 1995, atingido a cifra recorde de 3.784 por cento.

    Mário de Carvalho afirma que, ao longo de toda a permanência de José Eduardo dos Santos à frente do Estado e do Governo, foram adoptados 22 programas e reformas económicas, 12 só na década de 90, com a elevada taxa de mortalidade dessas tentativas a poder explicar-se pelos limites impostos pelo apego do Presidente ao aparelho político-partidário, onde, apesar da coesão dada pelo carisma do líder, a compreensão do seu pensamento político nem sempre foram favas contadas.

    Na questão do Banco Mundial e do FMI, por exemplo, Augusto de Matos escreveu, em 2019, que “não faltaram”, da supra-estrutura, “alguns elementos radicais e sem qualquer perspectiva que tentaram aliciar, em vão, o malogrado embaixador nas Nações Unidas, Manuel Pedro Pacavira, a evitar a adesão, encontrando a sua firmeza e determinação até ao último momento”.

    Mário Nelson também falou, no 2º Colóquio Internacional sobre a História do MPLA, quanto ao “enfraquecimento da ala mais conservadora do MPLA” em decorrência das decisões que conduziram às reformas de mercado, reforçando a ideia de que a transição teve de ser arrancada a pulso pelo antigo líder.

    Em duas palavras, a frase pronunciada por José Eduardo dos Santos no discurso proferido na investidura para a liderança do MPLA e do país (“Não é uma substituição fácil, nem tão-pouco me parece uma substituição possível, é apenas uma substituição necessária”), acabou por revelar-se lapidar e definidora de um poder que fez o necessário, estando por verificar se, também, fez tudo o que era possível.

    José Eduardo dos Santos em 2017, na tomada de posse de João Lourenço.
    (Direitos de autor AMPE ROGERIO / AFP)

    O grande programa

    O grande programa económico de José Eduardo dos Santos foi o Saneamento Económico e Financeiro (SEF), por ter determinado a viragem da orientação política e económica do Estado angolano, de acordo com uma relativa unanimidade entre os estudiosos da transição de mercado nas últimas três décadas operada no país.

    Segundo Mário Nelson no 2º Colóquio Internacional da História do MPLA, a ideia dessa transformação tem a sua génese ainda antes do Congresso Extraordinário de 1980, em relatórios onde era claramente dito que a economia era ineficiente e tinham de se tomar medidas, falando-se nos fracos níveis de produção e de produtividade, bem como na necessidade de organizar a contabilidade das empresas e de alterar a política de salários e o sistema de preços, com base no cálculo económico.

    Em 1981, prossegue a fonte, no Relatório intitulado “Pontos Chave da Economia”, aprovado pelo Bureau Político, já se falava abertamente na necessidade de dar apoio às estruturas privadas e, em meados de 1983, a percepção das dificuldades levou ao recurso a especialistas portugueses, primeiro, e depois húngaros, para aconselharem o Estado em matérias económicas.

    A reflexão originada pelos estudos destes especialistas resultou na recomendação, em Junho de 1984, da implementação de medidas conducentes à adopção de mecanismos da economia de mercado, uma directriz adoptada em Janeiro de 1985 na 1ª Conferência Nacional do MPLA, meses antes da Perestroika, a estratégia de abertura económica adoptada pela extinta União Soviética, em Abril de 1985, algo de deita por terra o argumento segundo o qual as reformas em Angola emanaram das mudanças ocorridas no Leste europeu.

    O ex presidente angolano, José Eduardo dos Santos, em Havana com o cubano Fidel Castro a 16 de Dezembro de 1988.
    (AFP PHOTO / RAFAEL PEREZ)

    Em Dezembro de 1985, o 2º Congresso do MPLA aprovou uma tese que mandava mudar o sistema de direcção da economia, mas só depois de um interregno de quase 18 meses, em Maio de 1987, o programa foi finalmente aprovado.

    A fonte cita o economista Alves da Rocha, a que considera um dos mais prestigiados estudiosos da economia angolana, no seu livro “Os limites do crescimento económico em Angola”, a declarar que “o SEF era um programa que continha todas as orientações necessárias para a gestão da transição entre a economia administrativa e a economia de mercado e teria sido a base segura para uma correcta política de estabilização macroeconómica”.

    Mas apesar de voltado para a estabilização da economia e o aumento dos níveis de produção o SEF perseguia, a criação de um adequado quadro político/legal que permitisse o desenvolvimento da economia privada, o que chocava com os dogmas ideológicos impregnados no aparelho.

    Além disso, a revisão do Sistema de Direcção da Economia proposta no programa implicava tocar em matérias consideradas como sagradas e visava retirar poderes de intervenção administrativa na gestão das empresas, o que não era do agrado de todos.

    O Presidente chinês, Xi Jinping enviou, esta terça-feira, uma mensagem de condolências ao chefe de Estado angolano, João Lourenço, pelo falecimento do ex-Presidente José Eduardo dos Santos.
    (DR)

    A aplicação do SEF (de 1987 a 1990), declara Mário Nelson ao referir os benefícios do programa, facilitou as negociações da dívida externa no Clube de Paris e permitiu o diálogo com o Banco Mundial e o FMI e a posterior inserção de Angola na comunidade financeira internacional com a adesão a estas instituições.

    Além disso, em dois anos, foi produzido e aprovado um pacote legislativo importante, que serviu de base às alterações estruturais da economia e um conjunto de análises e estudos fundamentais para os desenvolvimentos posteriores ao nível económico e social.

    Depois do programa ter sido abandonado, lamenta, nunca mais se materializou um dos pilares do SEF, a “reposição da verdade dos preços”, não se conseguindo acabar com os subsídios à água, à energia e aos combustíveis, bem como às empresas do Estado mal geridas.

    Velório de José Eduardo dos Santos, em Angola.
    (DR)

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