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    Investigado por golpismo, Bolsonaro fez um ataque grave à democracia a cada 23 dias

    “Se não tivermos voto impresso, vamos ter problema pior que nos Estados Unidos”. O discurso com teor golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 7 de janeiro de 2021, tornou-se símbolo de uma estratégia de radicalização alimentada ao longo dos últimos três anos e que culminou, há uma semana, na invasão às sedes dos três Poderes pela parcela extremista de seus apoiadores.

    Levantamento do GLOBO aponta que, desde o início de 2020, quando adotou uma rotina de ameaças explícitas ao Judiciário, Legislativo e às eleições, Bolsonaro fez um ataque a cada 23 dias, nos quais sugeriu rupturas institucionais. Anteontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes autorizou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a investigar o envolvimento do ex-presidente nos atos terroristas de 8 de janeiro.

    A escalada golpista teve como marco inicial as manifestações bolsonaristas com ataques ao Congresso e ao STF, cujas convocações foram endossadas pela primeira vez por Bolsonaro em fevereiro de 2020. No período mais recente, por outro lado, após sua derrota no segundo turno diante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro mudou de estratégia, passando a recorrer a frases dúbias e postagens vagas nas redes sociais em lugar dos ataques frontais. Para especialistas, o discurso escamoteado teve o propósito de funcionar como blindagem jurídica, mas seguiu servindo de encorajamento a seus apoiadores. Na quarta-feira, em um episódio ainda não explicado, o ex-presidente compartilhou em uma rede social um vídeo que contesta a legitimidade da eleição de Lula — o conteúdo, apagado pouco depois, motivou a apuração que ele vai enfrentar.

    — Bolsonaro lançou mão de um sistema de comunicação dupla, combinando um discurso no espaço público com as narrativas que circulam no mundo subterrâneo de desinformação nas redes. Nesse contexto, seu silêncio público nunca foi um silêncio para as redes bolsonaristas. Era uma ação política concreta, de ambiguidade para o não reconhecimento de uma derrota, dando sequência à incitação permanente da militância — avalia o historiador João Cezar de Castro Rocha, autor de “Guerra cultural e retórica do ódio”, no qual analisa a comunicação de Bolsonaro.

    Um levantamento feito pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação (ECMI) da FGV, a pedido do GLOBO, aponta que as redes de Bolsonaro tiveram picos de engajamento após as eleições com publicações de fotos tidas como “enigmáticas”, que, na avaliação de Rocha, ajudaram a insuflar a militância. No Twitter, por exemplo, a publicação mais compartilhada de Bolsonaro no pós-eleição, feita no dia 8 de novembro, foi uma foto tirada originalmente em julho na convenção do PL, no Rio, na qual o então presidente aparece entre apoiadores, em posição de liderança. Menos de uma semana antes, bolsonaristas haviam dado início a acampamentos diante de quartéis por todo o país, com pedidos para que o então presidente acionasse as Forças Armadas contra o resultado eleitoral.

    Em um encontro com apoiadores diante do Palácio da Alvorada no dia 9 de dezembro, transmitido nas redes, Bolsonaro discursou que “as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo” e que “se algo der errado é porque perdi minha liderança”. A transmissão não ficou salva nos perfis oficiais de Bolsonaro, que trazem, no entanto, outras duas filmagens, nos dias 11 e 12 de dezembro, nas quais o então presidente aparece em silêncio diante de dezenas de apoiadores. Em uma delas, um padre ao lado de Bolsonaro pede que as Forças Armadas “nunca prestem continência a um bandido”, referindo-se a Lula, e sugere também, com uma analogia bíblica, que os bolsonaristas “desçam ao campo para lutar”.

    — Logicamente, quanto mais tarde você acorda, mais difícil é a missão. Não é “eu autorizo”, não. É o que eu posso fazer pela minha pátria. Não é jogar a responsabilidade para uma pessoa — disse Bolsonaro no dia 9.

    De acordo com o levantamento do GLOBO, das 46 ameaças explícitas do ex-presidente entre 2020 e 2022, 29 tiveram como alvo o Poder Judiciário. As urnas eletrônicas foram alvo de 18 ataques, dois deles junto com o Judiciário. O ápice dos ataques ocorreu em 2021, a partir da invasão ao Capitólio, em janeiro daquele ano, por apoiadores do então presidente americano Donald Trump, derrotado nas urnas. Desde então, Bolsonaro fez sucessivas alegações de “fraude” no processo eleitoral brasileiro, sem apresentar qualquer prova, e atacou decisões do STF, especialmente do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito sobre atos antidemocráticos, que mirou diversos aliados bolsonaristas. O ápice dos ataques, em setembro de 2021, quando Bolsonaro disse que não cumpriria mais nenhuma decisão de Moraes, deu início a movimentações por impeachment do então presidente, o que o levou a escrever uma carta de desculpas.

    Para o cientista social Jones Medeiros, pesquisador do Cebrap e autor do livro “The Bolsonaro Paradox” (“O paradoxo Bolsonaro”), o ex-presidente e seus aliados construíram um “ecossistema de informação próprio” nas redes. Esse ambiente, segundo Medeiros, permite que mesmo declarações escamoteadas do ex-presidente ou frases apaziguadoras não sejam lidas como desautorização para pautas golpistas.

    O pesquisador cita como exemplo as declarações de Bolsonaro em live no dia 30 de dezembro. Embora tenha avisado seus apoiadores a não “partir para o tudo ou nada”, Bolsonaro também declarou ter buscado “uma alternativa” para a posse de Lula, ponderando que não era “fácil”.

    — Quanto mais explícito ele for, maior a tendência de ser alvo de judicializações. Isto o coloca em um dilema, mas seus apoiadores parecem entender a situação, até porque o próprio Bolsonaro diz a todo instante que não pode falar para não ser “deturpado” — diz Medeiros.

    Diretor da Escola de Comunicação da FGV, Marco Aurélio Ruediger acrescenta que o processo sempre teve viés eleitoral:

    — É preciso abandonar o conceito de que as eleições são a cada quatro anos. A campanha virou permanente. O ecossistema que sustenta o bolsonarismo está vivo e continuará a atuar. Os três Poderes precisam discutir isso a fundo.

    A discussão sobre a responsabilização judicial de Bolsonaro também ganhou fôlego após os atos terroristas e a nova postagem contestando a eleição. Coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Luiz Fernando Pereira lembra que o TSE revisitou sua jurisprudência recentemente ao cassar o ex-deputado Delegado Francischini, enquadrado por ameaças à “legitimidade do processo eleitoral”, e que Bolsonaro já responde a uma ação por ataques semelhantes às urnas eletrônicas numa apresentação a embaixadores em julho.

    — Se você republica uma notícia falsa, é responsável da mesma forma. E o fato de apagar depois não altera o impacto, dada a velocidade das redes sociais e o alcance dos perfis de um ex-presidente — afirma Pereira.

    Professor de Direito Constitucional do IDP, Ademar Borges defende que as declarações de Bolsonaro com ameaças às instituições podem ser enquadradas como delito de abolição violenta do Estado democrático, previsto na legislação que revogou a Lei de Segurança Nacional. O tipo penal trata da tentativa de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais e prevê pena de até oito anos. Na sua avaliação, com a posse de Lula, o que os investigadores agora precisam comprovar é se Bolsonaro também cometeu o crime de tentativa de golpe de Estado, cuja pena pode chegar a 12 anos.

    — Bolsonaro cometeu múltiplas vezes delito de abolição violenta do Estado democrático quando ameaçava as instituições. Agora, há também o delito de golpe de Estado, que tem uma pena maior. Nesse caso, se houver prova de que Bolsonaro estava direta ou indiretamente envolvido com a organização dos atos, seja incentivando ou sugerindo esse tipo de movimentação, pode ser entendido como um dos mentores intelectuais.

    Em três anos, Bolsonaro insistiu em ataques ao Congresso, STF e às urnas eletrônicas
    46 ameaças de Bolsonaro aos Poderes e à legitimidade das urnas eletrônicas desde 2020

    1 ameaça a cada 23 dias

    2020 – 10 ameaças

    25 de fevereiro: Envio de vídeos por WhatsApp convocando para manifestações com ataques ao Congresso e ao STF, com frases como “vamos mostrar que apoiamos Bolsonaro e rejeitamos os inimigos do Brasil” e “vamos resgatar o nosso poder”

    28 de maio: “Acabou, porra. Ontem foi o último dia”. A ameaça foi feita por Bolsonaro após uma operação da PF contra empresários investigados por ataques ao STF. Na mesma data, um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, disse que se aproximava um “momento de ruptura”

    17 de junho: Em conversa com apoiadores, Bolsonaro fez ataques ao STF: “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca. Eles estão abusando. (…) Então, está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. No dia seguinte, com a prisão do ex-assessor Fabrício Queiroz, cessaram os ataques

    2021 – 22 ameaças

    7 de janeiro: Um dia depois da invasão ao Capitólio por apoiadores de Trump, Bolsonaro previu roteiro semelhante no Brasil: “Se não tivemos voto impresso, uma maneira de auditar o voto, vamos ter problema pior que nos Estados Unidos”

    14 de maio: Durante cerimônia de governo, Bolsonaro atacou o STF por decisões sobre Lula e as urnas eletrônicas: “O bandido foi posto em liberdade, foi tornado elegível, no meu entender para ser presidente na fraude. Ele só ganha na fraude no ano que vem”

    7 de setembro: Em discurso na Avenida Paulista, Bolsonaro chamou as urnas eletrônicas de farsa e atacou o STF: “Qualquer decisão do ministro Alexandre de Moraes este presidente não mais cumprirá. (…) Acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes, deixe de ser canalha”. Ameaçado por pedidos de impeachment, escreveu uma carta com desculpas dois dias depois.

    2022 – 14 ameaças

    18 de julho: Em apresentação a embaixadores, Bolsonaro fez acusações infundadas contra as urnas eletrônicas: “Por ocasião das eleições de 2018, o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia. Ou apertava número 1 e depois ia apertar o 7 e aparecia o 3, e o voto ia para o outro candidato”.

    7 de setembro: No bicentenário da Independência, Bolsonaro disse que “a história pode se repetir” após citar golpes militares de 1922, 1935 e 1964, e reiterou ameaças a outros Poderes: “Com a minha reeleição, nós traremos para as quatro linhas todos aqueles que ousarem ficar fora delas”

    30 de dezembro: Em último pronunciamento no mandato, ex-presidente afirmou ter buscado “alternativas” para a posse de Lula: “Agora, certa medida tem que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos, de outras instituições. (…) Você que quer resolver o assunto por vezes, você pode até ter razão, mas o caminho não é fácil”. Duas semanas depois, operação da PF encontrou minuta de um decreto presidencial contra o TSE na casa do ex-ministro Anderson Torres.

    Após derrota na eleição, Bolsonaro recorreu a mensagens dúbias e enigmáticas nas redes
    112 postagens (Facebook e Twitter) entre os dias 31 de outubro e 12 e janeiro

    Maiores repercussões:

    02 de novembro – Vídeo sobre desobstrução de rodovias

    Total: 1,12 milhão

    1,08 milhão de interações no Facebook

    43,1 mil retuítes no Twitter

    “Estou com vocês e tenho certeza que vocês estão comigo. O pedido é (sobre) rodovias: vamos desobstruí-las para o bem da nossa nação e para que nós possamos continuar lutando por democracia e por liberdade”

    08 de novembro – Foto diante de apoiadores com a bandeira do Brasil

    Total: 500,9 mil

    450,6 mil interações no Facebook

    50,3 mil retuítes no Twitter

    Cerca de uma semana após o início de acampamentos diante de quartéis pelo país, Bolsonaro publicou uma foto sem legenda, em posição de comando e cercado por apoiadores, com a bandeira do Brasil ao fundo. Foi sua primeira postagem após o período eleitoral.

    11 e 12 de dezembro – Lives no Facebook diante do Palácio da Alvorada

    Total: 1,6 milhão

    Em silêncio, Bolsonaro circulou por dois dias seguidos diante de apoiadores que o aplaudiam e pediam intervenção militar; a seu lado, um padre orientou as Forças Armadas a “nunca prestar continência” a Lula.

    -Levantamentos do GLOBO e da Escola de Comunicação, Mídia e Informação (ECMI) da FGV

    Por Bernardo Mello e Marlen Couto

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