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    António Pires: Teatro pode ajudar a combater racismo

    DW África

    A viver em Portugal desde os seus oito anos, António Pires, director artístico do Teatro do Bairro, em Lisboa, diz que é preciso lutar tenazmente contra os preconceitos que ainda persistem. E o teatro pode ajudar, diz.

    Nascido em Angola em 1967, mas a viver em Portugal desde os seus oito anos, o encenador António Pires desafia os negros afro-descendentes a persistirem no debate contra o racismo institucional que ainda existe na sociedade portuguesa.

    António Pires estudou Marketing e Publicidade e diz que foi com naturalidade que entrou para o mundo do teatro em Portugal, depois de ter participado num casting e num curso pago pela União Europeia. Esteve uma temporada em Paris, França, e depois de regressar começou a trabalhar com o conterrâneo Rogério de Carvalho, um dos encenadores que determinou o seu percurso.

    Naquela altura, havia companhias profissionais e, para muitos, não era fácil vingar no meio artístico. Mas António Pires conta que a sua determinação foi fulcral.

    “Para ser sincero, foi tudo muito normal. Não tive mais dificuldade do que muitas pessoas que eu conheço da minha geração. E muitos, muitos ficaram pelo caminho. Comecei a trabalhar, comecei a apresentar as minhas coisas, com força, com determinação, fazendo o teatro que queria, as coisas artísticas que me apeteciam fazer, com muita energia, com muita garra”, afirma.

    Foi assim que começou a ser conhecido no meio teatral, a conquistar público e a afirmar-se como encenador, ocupando hoje um espaço no patamar dos principais protagonistas da arte dramatúrgica. E o seu espírito determinado, volta a frisar, pode ter contribuído para ultrapassar, sem se dar conta, barreiras e preconceitos contra os negros na sociedade portuguesa.

    “Eu nunca senti nada disso. Se calhar, pus uma pala e avancei. Quem se meteu pelo caminho levou uma cacetada que andou de lado. Portanto, fui sempre em frente a derrubar com uma catana por aí fora. Mas se isso acontece é uma coisa muito má”, refere.

    Discriminação no teatro?

    António Pires critica o facto de as mulheres e dos mais velhos terem muito menos papéis que os homens no teatro em Portugal. Mas não só. Segundo António Pires, os actores africanos também enfrentam dificuldades.

    “Existem poucos a entrar, por dificuldades financeiras. Não acho que a cor da pele seja uma coisa para nós exigirmos termos trabalho. Deve ser para nós exigirmos não nos recusarem trabalho. Isso acho muito bem. Para além disso tem que haver trabalho da nossa parte. É muito importante que nós nos afirmemos enquanto artistas”, afirma.

    O encenador concorda que é preciso debater as questões do racismo e da discriminação na sociedade portuguesa e reconhece o papel que tem desempenhado a comunidade de afro-descendentes nesse debate como forma de provocar mudanças de mentalidade.

    Papel do teatro

    Aqui o teatro também pode dar um contributo, lembra, exemplificando com uma das peças que produziu, o “Auto das Ciganas”, de Gil Vicente, encomendada para assinalar o Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. “Acho que é necessário falar. Até já fui a manifestações. E acho que é preciso debater. Daí eu ter feito, por exemplo, este espectáculo. As pessoas têm que gritar. Têm que dizer: ‘estou aqui’.”

    Ao longo do seu percurso artístico, António Pires tem apresentado trabalhos a convite de várias entidades, mas é na Ar de Filmes/Teatro do Bairro, estrutura de produção que ajudou a consolidar no Bairro Alto (Lisboa), que tem vindo a desenvolver o seu trabalho como encenador. Pires tem trabalhado com vários actores, entre os quais ligados ao Teatro Griot, que tem parceria com o seu teatro.

    “Fazem um teatro que tem mais a ver com África do que o teatro que eu faço. E, portanto, tem sido uma colaboração constante desde que eles começaram. Quase desde que começámos aqui o trabalho no Teatro do Bairro”.

    Com o Teatro Griot, o encenador luso-angolano fez a co-produção de um espectáculo musical chamado “Ruínas”, que falava de mutilação genital como arma de guerra. E, dando aulas, passa a experiência a vários actores jovens.

    “Este espectáculo que eu estou agora a fazer, “As Troianas”, que vai para o Convento do Carmo, é um espectáculo feito com actores profissionais e com o Teatro do Bairro, mas que inclui uma escola de teatro. E, portanto, tenho sempre passado experiência a jovens actores. Trabalho muito com gente jovem. Às vezes aparecem pessoas oriundas da África”.

    Trabalhar em Angola?

    Não é certo, mas se for convidado, não descarta a hipótese de um dia encenar em Angola. “Se me pagarem eu vou [risos]. Estou a brincar, mas isto é óbvio. Agora, não tem surgido oportunidade e também não tenho procurado muito, verdade seja dita, porque tenho este projecto no centro da cidade, no Bairro Alto, que envolve muito tempo. São muitas horas de trabalho aqui, de forma que tenho deixado isso um bocadinho para o lado. Mas penso nisso e acho até que tenho algo a ensinar”, afirma.

    O encenador confessa que não conhece muito do que se está a produzir em África na área do teatro, nomeadamente, em Angola. Mas aprecia e louva as criações do Teatro Elinga, que têm uma abordagem com uma carga social muito forte, embora não tão artística como se faz, por exemplo, na Europa, mais precisamente em Portugal. António Pires acredita que o teatro ajuda as pessoas a pensar e a reflectir, mesmo para os que exercem o poder. Por isso, afirma, “o teatro é absolutamente necessário” e “contribui também para as mudanças na sociedade e a favor de um mundo melhor”.

    António Pires foi um dos nomes no cartaz da 36ª edição do Festival de Almada, que decorreu entre 4 e 18 de Julho. O encenador apresentou “Terror e Miséria”, uma peça escrita por Bertolt Brecht entre 1935 e 1938, sobre a ascensão do nazismo na Alemanha.

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