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    Angola merece poder local segundo sua realidade

    Angola merece um poder autárquico e autónomo à medida da sua realidade, defende o deputado da Assembleia Nacional (Parlamento angolano), Ovídio Pahula, ao perspectivar o contexto sócio-político do país, à luz da implantação das autarquias, a partir do ano 2020.

    Em entrevista à Angop, de cariz técnico, o académico e advogado sugere amplos poderes para os órgãos das autarquias e uma profunda revisão da divisão político-administrativa, assente na elevação das comunas do país à categoria de municípios e na criação de mais províncias.

    Segue, na íntegra, a entrevista:

    Angop – Como olhar para a futura descentralização financeira, à luz das autarquias previstas para 2020?

    Ovídio Pahula (OP) – É verdade que só teremos descentralização financeira, em Angola, com a implantação das autarquias locais que, em princípio, ocorrerão em 2020. Para que a descentralização financeira cumpra, com êxito, o seu verdadeiro papel, é necessário que os órgãos das autarquias locais detenham amplos poderes, por exemplo, no domínio financeiro, sem prejuízo da tutela estadual (legal e financeira), que lhes permitam tomar decisões definitivas.

    A descentralização, em geral, e financeira, em particular, como “tronco-mãe” da autonomia, constitui o maior e melhor guardião dos objectivos, carências, desejos das comunidades locais, erigindo uma grande capacidade de auto-administração de indivíduos unidos por laços económicos, culturais, étnicos ou de simples proximidade territorial, que os identificam ou irmanam.

    Angop – Então, como explicar as diversas formas de descentralização, como a institucional, empresarial, cultural, administrativa e política?

    OP – Academicamente falando, quanto às formas de descentralização, há que as destrinçar na perspectiva ampla (administrativa, política, institucional, cultural, associativa e outras), porquanto as outras, no nosso entender, pertencem ao instituto de devolução de poderes.

    Por uma questão de economia de tempo, vou ocupar-me, apenas, da descentralização administrativa, que ocorre quando a função administrativa é exercida por entidades colectivas públicas (autarquias locais) distintas do Estado, cujos órgãos são eleitos pelas comunidades dos seus territórios, em vez do Estado (administração).

    Todavia, é importante reter que não basta que a descentralização administrativa seja consagrada por lei. É preciso que essas pessoas colectivas públicas (autarquias locais) e os seus órgãos sejam investidos de atribuições e competências que permitam, efectivamente, a aproximação da administração às populações e sejam alocados os recursos humanos e financeiros necessários que possam executar aquelas atribuições e competências de forma eficiente e eficaz.

    A descentralização administrativa deve obedecer, em regra, aos seguintes padrões: reconhecimento pelo Estado de colectividades humanas baseadas numa solidariedade de interesses, gestão desses interesses por órgãos eleitos, emanados das colectividades e tutela administrativa sobre esses órgãos, exercida pelo Estado.

    Os órgãos eleitos por essas comunidades, isto é, as autarquias locais, devem dispor de um poder autónomo no domínio do planeamento financeiro e contabilidade autárquica, ou seja, poder de elaborar, aprovar e alterar os orçamentos próprios e os planos de actividades, bem como elaborar e aprovar os seus balanços e contas, sem descurar a autonomia tributária, da qual avultam a autonomia fiscal e creditícia e, por último, a autonomia patrimonial, orçamental e de tesouraria.

    Angop – Como aproximar o Estado, o poder local e as populações?

    OP – Com efeito, é necessário compreender que os problemas referentes à enorme extensão territorial de Angola, às consideráveis distâncias entre as capitais provinciais e municipais em relação a Luanda (centro de todas as decisões actualmente), ao atraso da implementação gradual das autarquias locais no país e A outros assuntos não menos importantes catalisam o desejo veemente das populações locais de exigirem a concretização da descentralização administrativa que assentaria, inevitavelmente, nas finanças locais.

    Por este motivo, defendo uma profunda revisão da divisão político-administrativa (a partir de 2021), assente na elevação das comunas do país à categoria de municípios; na criação de mais províncias, ou seja, defendo que todas as províncias de Angola (actuais e por criar) tenham, no máximo, 40 mil quilómetros quadrados. Advogo, também, a reabilitação e o asfaltamento de todas as vias secundárias e terciárias que unem as províncias aos municípios e estes às comunas, sob responsabilidade dos governos provinciais e das administrações municipais (desconcentração administrativa e financeira profunda).

    Com isso, conseguir-se-ia a aproximação da administração local do Estado e autárquica às populações do território nacional e, consequentemente, a resolução célere, eficiente e eficaz dos seus problemas prementes, maior e melhor desenvolvimento (económico, social e cultural) do país, de forma equilibrada e harmoniosa, e maior segurança, equidade e racionalidade na distribuição da riqueza e do rendimento.

    Angop – De que forma será optimizada a descentralização administrativa e financeira?

    OP – A descentralização administrativa e financeira, no nosso entender, só será optimizada, em Angola, quando existir uma profunda e harmoniosa articulação entre orçamentos, planos económico-sociais e planos de desenvolvimento municipal (quer da administração local do Estado, quer das autarquias locais).

    Angop – Se o MAT diz que os municípios, as comunas e os distritos vão poder suportar sozinhos as despesas decorrentes das suas necessidades, acha que haverá capacidade para tal?

    OP – Como ainda não foi discutido e aprovado o pacote legislativo autárquico pela Assembleia Nacional, vou responder a esta pergunta no plano doutrinal do seguinte modo: o normal e razoável são as autarquias locais, no nosso entender, possuírem, no futuro, as seguintes fontes de financiamento: receitas próprias; impostos; imposto municipal e sobre imóveis; imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis; imposto único de circulação; impostos que podem ser criados por lei na base da realidade angolana; derrama local; taxas; transferências do Executivo e crédito público (muito polémico e discutível).

    Angop – Que sugestões avança sobre a maneira como deverá funcionar o crédito e a dívida pública das zonas autónomas ou regionais?

    OP – Não percebo o que quer dizer com zonas autónomas ou regionais! Penso que quis dizer como as autarquias locais recorrerão ao crédito público. Se for este o entendimento, apraz-me dizer que o recurso ao crédito toma distintos modelos jurídico-económicos, tais como: contratação de empréstimos (mútuo), abertura de créditos junto de diversos bancos habilitados a efectuar tais operações ou, ainda, a assinatura de contratos de locação financeira, embora o contrato de empréstimo seja o mais comum e, por este motivo, seja o mais utilizado e estudado. A autarquia que recebe os meios financeiros, decorrentes do contrato de empréstimo, é forçada a restituí-los de forma espontânea ou coactiva (caso se verifique incumprimentos).

    Contudo, há autores que defendem uma forte limitação e desencorajamento do recurso aos empréstimos públicos como preferencial fonte de financiamento dos entes públicos, mormente, as autarquias locais, porquanto o aguçado apetite pela satisfação imediata de certos intentos dos entes públicos locais, por vezes, não imprescindíveis para as autarquias locais, falseia um grosseiro embuste fundado na intenção de manter o equilíbrio do orçamento e a boa gestão dos dinheiros públicos.

    Angop – Pode-se explicar melhor?

    OP – É importante a tomada de sérios cuidados, no plano legislativo, de forma a limitar, senão mesmo vetar, contratos de empréstimos desmedidos e, não raras vezes, que impelem as autarquias locais para situações de “bancarrota”, motivada por incumprimentos contratuais de empréstimos com elevadas taxas de juros.

    A questão fundamental sobre os limites atinentes à contratação de empréstimos públicos, em geral, e às infra-estruturas, em particular, prende-se com o respeito pelo princípio da equidade geracional, ou seja, os efeitos que se podem repercutir, do ponto de vista económico, social e cultural, nas futuras gerações, originados por decisões financeiras feitas por dirigentes políticos ou gestores da geração actual.

    Neste sentido, qualquer decisão financeira, quer se trate de uma escolha das necessidades a satisfazer por forma pública, quer por meios a utilizar para tal satisfação, tem, necessariamente, reflexos sobre gerações futuras, não só porque altera a distribuição dos recursos disponíveis entre o sector público e privado, como também pelas modificações que determinam o comportamento dos agentes económicos e que são susceptíveis de se repercutirem no montante e composição do património que esses agentes irão transmitir aos seus herdeiros.

    Angop – E os preços e as taxas?

    OP – Pelas mesmas razões que aduzi na questão anterior, respondo a esta pergunta no plano teórico (doutrinal): as taxas (e preços) representam, além dos impostos autárquicos, uma fonte de financiamento essencial das receitas tributárias das autarquias locais. A taxa constitui uma prestação pecuniária e coactiva exigida por uma entidade pública, em contrapartida de uma prestação administrativa, efectivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo. Trata-se de uma receita pública, ligada a relações de utilidade entre quem é obrigado a pagá-la e um serviço ou um bem público. É grande a variabilidade do conteúdo jurídico do conceito, resultante da diversidade das situações que geram as obrigações de taxas e das múltiplas delimitações formais da respectiva noção financeira.

    Somos de opinião que o futuro pacote legislativo autárquico (por discutir e aprovar na Assembleia Nacional) deve conter um regime geral das taxas das autarquias locais que delimite, de forma objectiva e inequívoca, as espécies de taxas municipais, bem como para se evitarem interpretações dúbias que criem zonas cinzentas na esfera de actuação entre o Estado e as autarquias locais.

    Angop – Como conformar o modelo de desenvolvimento económico (com a implantação das autarquias locais) com os demais planos elaborados pelo Governo, nomeadamente, o PND (2018-2022), PIP, planos dos governos provinciais e municipais?

    OP – O modelo autárquico, no domínio económico, estará alinhado e harmonizado, certamente, com os processos de coordenação, democratização e descentralização do Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), dos programas de investimentos públicos (nacional, provinciais e municipais), bem como com os planos de desenvolvimento provinciais e municipais.

    O plano nacional, em Angola, desempenha papel preponderante na determinação do rumo do desenvolvimento político, económico, social, cultural e, consequentemente, na distribuição da riqueza (rendimento – strictosensu), na elevação do modo de vida dos cidadãos, oferta das oportunidades de emprego, progresso nas carreiras profissionais, nos negócios, etc.

    Os planos nacionais, no nosso país, representam as metas determinantes dos comandos político-económicos no contexto global e apontam os indicadores dos pressupostos da preparação, elaboração, aprovação e execução dos orçamentos gerais do Estado, numa posição muito peculiar, para além de influenciarem as políticas económicas conjunturais e estruturais do Estado.

    Angop – Há correlação entre a descentralização financeira, poder local e autonomia? Que regras serão adoptadas para o aumento da capacidade orçamental?

    OP – Existe uma correlação entre a descentralização financeira, poder local e autonomia. A descentralização como mecanismo de aproximação do Estado e do poder local aos cidadãos, com o fito de se conhecer, com maior profundidade os problemas da comunidade e resolvê-los da melhor e eficaz forma possível, não está dissociada da autonomia, porque constitui a sua pedra angular.

    A autonomia é entendida, aqui, como o poder (direito e capacidade) efectivo que os entes públicos infra-estaduais (autarquias locais) detêm. Os órgãos locais eleitos pelas comunidades têm de criar normas regulamentares e gerir, à luz de um quadro jurídico-legal, os interesses das respectivas comunidades, sem acentuado poder de tutela.

    A autonomia é inerente ao poder local. Dito de outro modo, trata dos assuntos estritamente locais, isto é, que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que, por esta comunidade, podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria.

    O poder local autónomo deve possuir a autonomia normativa que emana de um poder regulamentar ordenado e sintonizado com as normas jurídico-constitucionais na base dos princípios da reserva, precedência e prevalência. A capacidade orçamental só cresce com o aumento da diversificação e alargamento das bases tributárias, mormente aquelas que não dependam da produção mineira (petróleo, diamantes, etc.). Infelizmente, o nosso país vai depender ainda, por muito tempo, dos impostos e das taxas da produção petrolífera e diamantífera.

    Angop – Como se explica o orçamento participativo?

    OP – Quando falamos de orçamento participativo, estamos a defender que os dinheiros públicos merecem, por parte do cidadão, especial atenção, pois ele (cidadão) é o maior contribuinte e o principal destinatário das receitas do Estado e dos entes públicos infra-estaduais (autarquias locais), obtidas através dos impostos e taxas, fundamentalmente.

    O orçamento participativo deve reflectir sobre os anseios, as preocupações e as aspirações do cidadão mais humilde da sociedade e tem de traduzir uma comunicação acessível que permita ao povo participar, livremente, na decisão e na resolução dos seus problemas e defesa dos seus mais legítimos interesses. No orçamento participativo, está vertida a sincera e sólida democracia local, que só é possível no quadro de uma independência orçamental.

    Angop – Como controlar a execução orçamental e financeira a nível local?

    OP – A execução orçamental e financeira autárquica estará sujeita, seguramente, aos níveis de controlo e fiscalização orçamental e financeira, como a fiscalização e o controlo político, que serão feitos pela Assembleia Municipal; fiscalização e controlo administrativo, orçamental e financeiro, que estarão a cargo dos órgãos administrativos do executivo (Câmara Municipal) do presidente da autarquia e outros órgãos especializados (Ministério das Finanças, por exemplo) e fiscalização financeira jurisdicional, que estará a cargo do Tribunal de Contas.

    Angop – Que comparação faz das realidades de Portugal, Moçambique e Cabo Verde em relação à sua experiência no plano da descentralização administrativa e financeira?

    OP – Quanto às realidades de Portugal, Moçambique e Cabo Verde, no âmbito da descentralização administrativa e financeira, devo dizer-lhe o seguinte: estudei, com muita profundidade, durante a redacção da minha tese de doutoramento, estes três países e, felizmente, permitiu-me comparar realidades distintas de países diferentes, embora haja algumas similitudes. Portanto, Angola merece um poder local autárquico e autónomo, à medida da sua realidade. A municipalização erigida na descentralização financeira representa o busílis da materialização transcendente da aspiração de uma Angola livre, democrática, unida na diversidade, descentralizada, próspera e de progresso económico-social e cultural.

    Quem é Ovídio Pahula

    Ovídio Pahula, nascido em Quiteve, Mucope, na província do Cunene é professor associado das faculdades de direito das universidades Agostinho Neto (mestrados) e Mandume-Ya- Ndemufayo – Lubango.

    Licenciado em Direito na Ex-União Soviética, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Doutor em Direito (PhD), pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é formador do Instituto de Formação da Administração Local (Ministério da Administração do Território) desde Novembro de 2012.

    Entre outros cargos públicos, foi delegado provincial do Ministério da Justiça na Província do Cunene. Como político é deputado do MPLA (círculo eleitoral da Província do Cunene, legislatura de 2017- 2022) e integra a comissão de Administração do Estado e poder Local.

    Entre obras científicas, académicas e literárias, Ovídio Pahula escreveu o Direito económico, Direito fiscal, Finanças locais, Direito administrativo, Instituições e Mercados Financeiros, Etnografia do Sul de Angola, A Evolução da Constituição Económica, “O que são eleições legislativas?

    Sua diferença com as eleições presidenciais (caso Angolano); Parcerias público-privadas, Angolana à luz do novo texto constitucional, A Desconcentração e a Descentralização em Angola, Descentralização financeira em Angola, Divisão da divisão político-administrativa da Província do Cunene no quadro da institucionalização das autarquias locais em Angola (Estudos), Firmeza da vida e no Fundo da Pedra há um Tchinhongo.

    Tem comunicações sobre o Grupo Etnolinguístico Nhaneca – Nkhumbi no Contexto Nacional – Uma Reflexão sobre a sua estrutura social, económica e cultural e Vida e obra do Dr. Agostinho Neto, entre outras…

    Fala Nhaneka – Nkhumbi, Oshiwambo, Umbundo, Português, Francês e Russo

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