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    “A poeira do tempo” de Mena Abrantes

    José Mena Abrantes (Foto: D.R.)
    José Mena Abrantes
    (Foto: D.R.)

    Esta obra, A Poeira do Tempo, apresenta-nos um Escritor na sua pulsação íntima de jornalista e poeta. O estilo é preciso, conciso e claro. E há centelhas de poesia a faiscar do comboio da escrita. E um certo filosofar no pensamento simples dos personagens em situações extremas da vida, quando a morte é uma espécie de lenitivo para o sofrimento ou quando a lei da sobrevivência os leva a retirar do âmago um último resquício de força.

    A par dessa circunstância causal inerente à praxis social, Mena Abrantes surge-nos aqui ainda como arqueólogo. O que fazem os arqueólogos? Não vão às profundezas do solo, escavar até encontrar os subsídios ou os traços da História? E as diversas camadas que se acumulam no subsolo de uma cidade moderna não são elas formadas de detritos soterrados por longo tempo de poeira?

    Assim, o tempo tem uma presença ontológica de poeira e esta guarda o tempo no seu abdómen tardio de terra compacta e rochas. Então, o que vejo é um Mena Abrantes de pena de umbi-umbi na mão a traçar na poeira do tempo angolano as linhas desta crónica, enquanto género da Historiografia, que o deus Kronos retira das notícias reais. E mesmo se a respiração de Kronos não expele notícias reproduzidas nos média, como no poema de pastores e pescadores que fecha o livro, aí mesmo se encontram imagens fotográficas (também elas parte de um género jornalístico) que o nosso amigo Sérgio Guerra lentidou na sua câmara.

    Quem nunca conheceu Angola na sua integridade territorial, ficará talvez perplexo ao ler sobre um pastor do deserto, já que pastor induz-nos a um imaginário de prados verdejantes e águas rumorejantes. Mas quem sabe dos nossos pastores do Sul, que transumam os coiros respirantes e o leite, há-de ficar ainda mais estupefacto de saber que as viagens dos nossos povos os unem do deserto ao mar, e que “a vida é sempre um regressar ao que já fomos”: o próprio mar que já fomos. E é na berma desse mar que as mulheres do pescador e do pastor do deserto se conversam, serenas, com uma kyanda, dona das águas do mar e dos rios e lagoas. Este poema, a modos de oratura, é o trecho do livro mais pacífico e no qual as mulheres têm tempo para si mesmas.

    Guerra e comboio 

    Porque, no resto da obra de Mena Abrantes, as mulheres aparecem como estamos habituados a vê-las neste continente quase envelhecido pelo saque ocidental e a tradição secular: mulher africana na sua função vital de meio de produção e reprodução sexual.

    E também, fora já da poesia, os outros três textos iniciais são unânimes em abordar a História do período decisivo da formação do Estado Angolano.

    Uma história que poderia rivalizar com a História das Guerras Angolanas, de Oliveira Cadornega, quanto à temática, não em termos de objectividade histórica. A crónica, aqui, é literária, ficcional, mesmo quase sem o uso do discurso directo.

    Guerra e comboio. Dois actores omnipresentes nessa crónica tripartida em três textos. E da guerra, o mais dramático e desumano dos actos: matar o próprio irmão de sangue.

    É que nós, poetas, ainda guardamos a ética e a moral muito acima das circunstâncias trágicas da vida, e vemos a Humanidade no seu humanismo residual.

    Mas, enquanto lemos a Sinfonia Inacabada, em que Moacir “decidiu nunca mais abrir os olhos”, um texto que não perde nada para a cinematografia, um texto que demora apenas uma fracção de segundo tratado em câmara muito lenta, que torna possível reunir os três irmãos: Moacir, o seu irmão carrasco e a menina irmã que se perdera um dia na aldeia, tudo de desmorona, como diria Chinua Achebe, e volvemos a esta realidade em que não conseguimos mais “distinguir a vida verdadeira da verdadeira vida”. É então que, desiludidos, reconfirmamos que o ser humano, além de anjo e poeta, é também, sob o comando dos instintos mais primários, uma autêntica Besta Quadrada! O tal de Kifumbe das nossas tradições não é um monstro mítico: ele existe mesmo. É o criador dos holocaustos e do canibalismo gratuito das crianças.

    Em A Mancha Escura, que as faúlhas do comboio tinham tatuado no braço de Bentinho, lemos uma narrativa cronológica, na qual o personagem principal passa de mero espectador para agente ou actor do devir histórico-social.

    E é nesta estória que o Mena tem de soprar a poeira acumulada nas lajes do tempo, para revelar instantes de filosofia da existência desta crónica da gesta da revelação do Estado angolano independente. O nascimento de Bentinho por parto eutócico parece marcar uma sina de todo o nosso povo: andarilhos que somos e homens de pouca sorte. Porém, como Bentinho, o angolano é forte, verificou o pai, quando ele nasceu.

    O facto de Bentinho ter-se tornado um Homo Globalis, exilado na Bélgica e em certos países de África, não impediu que ele vivesse, durante a história da sua vida os antípodas da prática social: de um nacionalismo aprendido do seu pai, a chefe de uma rede de crime organizado que inclui assassinato, sexo, prostituição infantil, falsificação de documentos, comércio ilícito de drogas, diamantes, sem seleccionar clientes, numa espiral do business obscuro e obsceno que invadiu, com a imigração galopante, o nosso país.

    Esta estória inicial, poderia levarnos, se tempo aqui houvesse, a uma outra reflexão filosófica e ontológica sobre a própria cidadania, nessa dialéctica entre dependência e independência, escolher e depender de, o que levaria a colocar a nós mesmos a pergunta socrática do nosso tempo: “Quem, neste mundo, e neste tempo, é verdadeiramente independente?” Engarrafada esta questão curial na cidade do terceiro mundo ou dos ditos em vias de desenvolvimento, teríamos de elaborar um imenso tratado.

    Quando, na página 25, a propósito da luta no ex-Zaíre, que, de confronto com os belgas, redundou numa luta fratricida, Bentinho se interroga: “será que, em Angola, iria ser igual?”, agora que a poeira do tempo assentou, Mena Abrantes, escreve sobre essa poeira, com uma fina pena de memórias quase auto-biográficas.

    Apelo à Consciência 

    Para quem não sabe, no período da guerra da independência na cidade de Luanda, homens armados mataram por matar o único astrónomo angolano na altura, ali no observatório da Mulemba Wa Xangola, na Petrangol. A tragédia silenciosa é transformada literariamente numa alegoria da Lua, nave artificial da Terra, onde habitam “seres em forma de répteis” que “agitam com euforia as suas caudas escamosas”, quando “corre inutilmente sangue humano na Terra.” Neste conto, Mena Abrantes vai buscar subsídios de cientistas mundiais para contrapor o “auge dessa demência ou da bestialidade”, nessa terceira estória onde o narrador está presente e apela: “Estejam atentos, sejam Conscientes!”.   (CULTURA-Jornal angolano de Artes & Letras)

    Por: José Luís Mendonça

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