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    Tunísia: Presidente submete a referendo nova Constituição hiper-presidencialista

    Neste dia 25 de Julho, o Presidente tunisino Kais Saïed tem estado a submeter aos eleitores a proposta de uma nova Constituição em que se atribui boa parte dos poderes, nomeadamente o de nomear o primeiro-ministro e o seu governo, bem como de exonerá-los sem ter de se justificar, e propor leis cuja análise será prioritária no parlamento.

    A perspectiva desta votação anunciada há muito não tem deixado de criar polémica, com a oposição a apelar ao boicote, existindo dentro do país mas igualmente no exterior o receio de que a única democracia resultante das Primaveras Árabes se torne agora uma ditadura.

    Kais Saïed, no poder desde 2019, argumenta pretender “arrumar a casa” e negociar um empréstimo junto do FMI, num contexto em que o país tem uma taxa de desemprego na ordem dos 40% entre os jovens e uma dívida externa que ultrapassa os 100%.

    Todavia, não se pode ocultar que esta consulta popular acontece um ano depois de Kais Saïed demitir o seu primeiro-ministro e suspender o parlamento, órgão que acabou por dissolver no passado mês de Março.

    Apesar destes sinais, Raul Braga Pires, politólogo arabista, prefere dar o benefício da dúvida a Kais Saïed e mostra-se convicto de que a nova Constituição vai ser validada.

    RFI: O que é esta nova Constituição?

    Raul Braga Pires: é uma Constituição hiper-presidencialista. A concentração de poderes actuais, sobretudo o judicial, é aquilo que garante (ao Presidente) a vitória de hoje. Basicamente a vitória vai ser da abstenção. Mas esta Constituição vai passar. Agora a dúvida que se coloca é ‘então e amanhã?’ Ele já é oficialmente um ditador ou não? é aqui que eu dou o benefício da dúvida ao Presidente Kais Saïed por uma variedade de razões, sendo que as principais estão precisamente na população, nos tunisinos. Os tunisinos nos esboços (de Constituição) que no último semestre foram saindo para debate público, houve uma grande preocupação relativamente às liberdades individuais. Portanto, essas liberdades individuais continuam garantidas. O que o Presidente criou foi mecanismos para desenlear os nós górdios que a ‘Geringonça’ islamista liderada pelo partido Ennahda foi atando ao longo do pouco período que esteve no poder.

    RFI: Porque é que os partidos de oposição fizeram campanha para o boicote deste referendo em vez de incitar os eleitores a ir massivamente vota contra esta nova Constituição?

    Raul Braga Pires: Porque aí está a forma de rejeição do sistema. Quando estamos a falar dos partidos da oposição, estamos sobretudo a falar de partidos de esquerda, nomeadamente a esquerda tradicional. Isto depois é confundido com a dicotomia ‘islamistas versus laicos’. Ora, estes laicos muitos deles não são verdadeiramente laicos. O que verdadeiramente são é saudosistas de Ben Ali. Portanto, o apelo ao boicote é um apelo à rejeição total do sistema que foi reconstruído no pós-2011 (ano das Primaveras Árabes), e acaba por ele também por ele próprio ser um apelo à rejeição desse sistema porque o passo seguinte que Kais Saïed quer dar é o da luta sem tréguas contra a corrupção, é o da luta sem tréguas àqueles oligarcas tunisinos que conseguiram fazer a ponte do antigo regime para o novo regime mantendo os privilégios, mantendo a corrupção, mantendo a clientela e que, neste momento, estão a inquinar o processo democrático. Portanto, esse apelo a essa rejeição ou a esse boicote, é sobretudo um apelo à rejeição do novo sistema. Depois, uma outra coisa muito importante é que quando se fala das manifestações anti-referendo na Tunísia, nós muitas vezes pensamos em milhares de pessoas. Havia manifestações que não chegavam às cem pessoas porque eram dos partidos minoritários que apesar de se considerarem da oposição, não estavam representados no parlamento. Não estavam representados no parlamento porque o novo sistema não lhes permitiu esta capacidade de angariação de votos porque o novo sistema permitiu uma pulverização da esquerda em vários partidos políticos e, portando, os vários blocos de esquerda da Tunísia foram os que mais apelaram ao boicote no dia de hoje, mas são também aqueles que menos representação parlamentar têm. Inclusivamente, fizeram alianças contranatura com os islamistas do Ennahda e iam juntos para as manifestações e apelavam ao mesmo fim, sendo pessoas, partidos e ideologias que estão completamente nas antípodas umas das outras.

    RFI: O que é que Kais Saïed vai fazer com esse poder todo? É mesmo para “arrumar a casa” ou é um delírio de um ditador nostálgico do tempo do Ben Ali?

    Raul Braga Pires: Não creio, precisamente porque há logo aqui à partida a questão da idade. Kais Saïed não tem a idade que Ben Ali tinha quando chegou ao poder e, depois não tem a mesma mentalidade. Eu creio que, sendo um homem mais velho (com 64 anos), teórica e praticamente está mais perto da morte do que os outros, quando chegamos a estas idades ficamos mais preocupados com o legado que deixamos. Ele já percebeu que este é um momento histórico, é um momento histórico que vem de 2011, são 11 anos que já passaram desde essa ruptura social e política que aconteceu no Magrebe e no Médio Oriente e que começou exactamente na Tunísia, portanto ele sabe que está a viver um momento histórico e que o seu legado poderá eventualmente ser o do homem que teve a coragem de dar um murro na mesa na altura certa, cortar a direito, “arrumar a casa” e deixar para o próximo a “casa arrumada” para a Tunísia seguir o seu caminho na senda da democracia normalmente.

    RFI: Isto acontece numa altura em que a Tunísia está numa profunda crise social e económica, uma economia varrida literalmente pela covid-19 e agora também pelas consequências do conflito na Ucrânia. Kais Saïed tem tentado negociar um novo empréstimo com o FMI. Que margem de manobra tem ele quando, a nível do exterior, é visto como um putativo ditador?

    Raul Braga Pires: Essa é a grande questão. E essa grande questão coloca-se já hoje, mas os verdadeiros efeitos para todo o Magrebe e África da guerra na Ucrânia, nomeadamente na questão dos cereais, vai-se verificar no final do próximo semestre. Vai-se começar a agudizar seriamente a partir de Dezembro-Janeiro. Aí, Kais Saïed vai estar muito dependente do exterior. Se não há subvenções do Estado para os produtos de primeira necessidade, a fome e o desemprego serão generalizados, a seguir a isso vem o conflito social, vêm os golpes de Estado, vêm os militares, vêm as crises migratórias… Portanto, perante este cenário, estou em crer que a União Europeia, as Nações Unidas, o Banco Mundial, o Banco Africano para o Desenvolvimento, a União Africana, a União do Magrebe, todas as instâncias internacionais e regionais vão dar o seu contributo para que não se caia neste cenário que é bastante previsível. Eu até vejo isso mais como uma garantia de que Kais Saïed vai ter ainda mais margem de manobra para continuar a “arrumar a casa” no sentido em que ele, muito praticamente, colocará o problema perante os tunisinos explicando da seguinte forma: ‘ou é isto feito desta maneira que eu proponho, ou então é o caos’. Portanto, eu vejo esta crise como sendo até algo mais benéfico para a imposição das medidas do Presidente do que uma limitação à sua acção.

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