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    Segredos como filosofia e modo de vida

    Com esta terceira obra Tazuary Nkeita foi admitido como membro da União dos Escritores Angolanos

    “O Último Segredo” (Luanda, UEA, 2011, 210p., Sete Egos), é a terceira obra literária – depois de ter trazido a lume as obras “42.4 – A Voz dos Dibengos” (Luanda, 2001) e “A Minha Pulseira de Ouro” (Luanda, 2005) – de Tazuary Nkeita, pseudónimo literário de José da Costa Soares Caetano, um luandense descendente de uma das penas mais brilhantes da literatura nacional, infelizmente pouco referenciado nos nossos meios intelectuais, que é Maurício Caetano.
    Quando folheamos pela primeira vez esta obra, sentimos um certo constrangimento porque desde logo o nosso trabalho de apresentador se nos aparentava dificultado quer em virtude da Introdução, do Post-Scriptum e dos Anexos sugeridos pelo autor, quer pela breve transcrição de abertura de José Luís Mendonça.
    É que o poeta, jornalista e ensaísta José Luís Mendonça, num extraordinário poder de síntese, resume em poucas linhas o conteúdo de “O Último Segredo”, quando escreve: “Saga de uma família angolana (Tuluca Dibaia, Yianda Dibaia, filhos e netos), contada em jeito de crónica, ou sublime saga de um tempo comum, um tempo em que Angola se descobre a si mesma, titubeante, na pena de um grande cronista”.
    Nada poderia ser mais objectivo. Ao lê-las, constatamos que estas narrativas explanam um mundo que não está muito distante da nossa própria realidade, quer pela paisagem, quer pela riqueza das imagens e dos diálogos apostos pelo seu autor, quer ainda pelos seus conteúdos (temas e questões) diversificados ou quer, sobretudo, pela sua contemporaneidade, para não dizer modernidade.

    Funcionário e empresa

    A saga ou narrativa histórica de Tuluca Dibaia é contada em 40 crónicas (algumas das quais já publicadas em jornais luandenses), e as mesmas resumem a vida quotidiana do nosso personagem, desde a dação do nome até à velhice; inicialmente como um alto funcionário de uma empresa cujo vínculo implica uma cadeia de segredos; aos 37 anos começa a namorar uma rapariga, a quem denominará o seu violino, conhecida por F. F. Yianda, com a qual casará, e que, com o andar dos anos e já com os quatro filhos nascidos, se transformará num cilindro; catorze anos após o casamento, o casal tem dois rapazes e duas raparigas: “Bebé” Dibaia, 13 anos, Isselente, 11, Júlia, 9, e Kaswekele, 6 anos; aos 40 anos, desvincula-se desses serviços para criar a sua própria empresa, denominada Grupo Dibaia & Associados, onde investiu todos os seus dotes e conhecimentos como presidente e director-geral. Ao longo dos 15 anos seguintes investiu todo o seu esforço e inteligência para montar e desenvolver a sua própria empresa, que se especializou em áreas como a da construção, do turismo, dos recursos hídricos, da alta tecnologia e dos eventos culturais, e os negócios da empresa internacionalizaram-se, facto que o levava a viajar constantemente, seja para o interior, seja para o estrangeiro. Com essa prática, Tulu Dibaia mostrou-se um marido e um pai de quatro filhos, ausente. Em quinze anos, aquilo que à partida parecia um casamento perfeito estava paulatinamente a desmoronar-se.
    O pior aconteceu no seio da família quando F. F. Yianda se apercebeu que o seu próprio filho caíra nas malhas da droga. “Ela queixa-se ao marido: ‘Educo os filhos sozinha. Queria o meu marido mais perto do lar. Nem sabes que roupa vestem os filhos ou o que fazem durante o dia. Só falas de viagens e negócios’”. F. F. Yianda descobriu tardiamente que o seu filho mais velho escondia as notas, viciava-se e fazia desmandos na rua. Por tal foi expulso da escola, pois já tinha reprovado pelas inúmeras faltas.
    Ao preparar-se para efectuar uma outra viagem de negócios, depois de ter chegado de outro país, Tuluca Dibaia vê-se confrontado com o fracasso do filho e o finca-pé da mulher: “Acabou-se! Ou a família ou os teus negócios. Escolhe!”, adiantou a senhora Yianda, que sentiu que o seu matrimónio se despenhava, dando-se conta do agora ou nunca: era o momento mais apropriado para pôr tudo em pratos limpos. Tinha esboçado um plano secreto e pôs as cartas na mesa. Queria o marido em casa e não encontrou melhor oportunidade. Ademais, a análise financeira da empresa era catastrófica, além da grande anarquia que se estava a instalar no seio dos empregados pela ausência consecutiva e, muitas vezes, por longo tempo, do patrão.
    Pressionado pela esposa, Tulu Dibaia decidiu dedicar mais tempo à família e, em particular, ao filho perdido. Começou por organizar a sua própria casa, ouvindo os filhos um por um. Participaria com eles em todas as decisões para a busca da felicidade e da harmonia familiares, tal como lhe pedia a sua esposa, como mais um segredo de uma boa relação. Mas, quando fala com “Bebé”, ou melhor, com Luno Ochindume Dibaia, o seu filho mais velho, apercebe-se que não o compreende; é doloroso constatar que já não compreendia o seu próprio filho. Na incompreensão, tirou-lhe algumas das mordomias: telemóvel, motorizada, proibição de sair à noite e obrigou-o a raspar o cabelo. Colocou-o, em seguida num campo de correcção para um programa correccional com duração de dezoito meses. Com isto, o casal ficou um período de relações cortadas. Mas foi o santo remédio!
    Não podendo viajar, Tulu Dibaia designou um substituto, o que recaiu em Nicálcio Jeremias e, desse modo, permanecendo no país, dirigiu a sua empresa como só ele sabia fazer. No meio das múltiplas histórias encontramos também inúmeras cenas que constituem autênticas passagens para alternar com os episódios principais, tais como as questões das birras de F. F. Yianda e os episódios dos espelhos, ocorrências que transpiraram na comunicação social, levando a que esta passasse a ser alvo de chacota (leia-se “O espelho maldito” ou “O espelho bom”, ou o curso intensivo de inglês em “O último obstáculo”, orientado pela americana Joanna Woods), ou então, “Palavras no feminino”, de cujo conteúdo ressalta um excelente recorte criativo e inédito, entre tantas outras. Trata-se de curtas narrativas que acabam por constituir o encanto da obra, mas o mais importante mesmo está relacionado com aquilo que constitui, ao longo de toda a saga, as relações entre o casal e os múltiplos segredos a que são chamados a revelar, por um lado, e a guardar, por outro.

    Dação do nome em África

    A saga de “O Último Segredo” conta a história de João Segredo Abel, filho de Teófilo Abel e de Mariana Abel. A direcção da saga ou narrativa histórica tem início com a dação do nome a João Segredo Abel, uma criança moradora no bairro dos Antigos Escravos, uma criança que também já foi pobre e muito teve que estudar e trabalhar para subir na vida.
    A questão da atribuição do nome em África apresenta-se muitas vezes complicada para as pessoas de fora de uma determinada comunidade, sociedade e cultura. Lembrando as premissas e orientação metodológica que nos é proposto pelo linguista franco-italiano e investigador africanista Emilio Bonvini, a realidade é bastante complexa, pelo menos sob três pontos de vista: realidade linguística, uma vez que o antropónimo é sempre uma mensagem verbal que, além dos aspectos fonológicos, gramaticais e semânticos, implica a relação de interlocução entre um emissor e um receptor; realidade cultural, em seguida, tendo em conta a sua génese e o seu conteúdo referencial. O nome não constitui nunca o fruto da coincidência ao azar mas o resultado de uma decisão amadurecida, à luz de uma reflexão constante sobre a sua eficácia. Por isso, o simples engano na atribuição do nome, seria bastante grave tanto para aquele que o atribui como para aquele que o recebe. Finalmente, realidade psicossocial, uma vez que o nome é atribuído à criança visando a sua inserção no grupo. A atribuição do nome é um processo de “personificação”. Ele modifica o estádio inicial do “nome-pessoa-social” do recém-nascido para lhe conferir o estatuto de “pessoa-social”. Ele define o indivíduo criando-o socialmente.
    É necessário ter igualmente em conta a possibilidade de mudança de nome em fases de mudanças de estatuto, ou, mais modernamente, e fora de contextos das sociedades cujas comunidades ainda sejam regidas por padrões tradicionais, da mudança de nome para esconder ou para criar novos cenários.
    Pelo nome que ostenta, João Segredo Abel representa tudo o que seja um compromisso com a verdade e com a honra, dois atributos importantes da pessoa humana, sobretudo para o indivíduo africano, nas sociedades africanas de onde emerge.
    Toda a narrativa anda à volta dessa importante noção, ainda que, durante todo o enredo, a personagem principal apareça vinculada ao seu segundo nome Tuluca Dibaia, pois, como aclara algures, “ao longo da sua carreira, Tuluca Dibaia acostumou-se a vários nomes. Tinha um em cada uma das 164 divisões administrativas do seu país. Fazia isso supondo-se despercebido. Quando conheceu F. F. Yianda, a actual esposa, apresentou-se como “Toulo” esta segredava às amigas, muito antes do casamento: “Ele é todo tolo por mim…” O seu verdadeiro nome de baptismo foi Segredo, mas se lhe perguntassem ser verdade que guardava mil e um segredos, ria-se com as palmas das mãos viradas para cima e os ombros encolhidos, como quem jura inocência: “Nunca soube nada, nada, nada!” Protegeu, até à velhice, os segredos dos que serviu com excesso de zelo”; ao longo da vida será sempre o Toulo, o Tolo e até o Toulucho, ou então, algumas vezes, será apelidado Jipata.
    Mas até o próprio nome Dibaia nos conduz para outros cenários que o vão ligar, por um lado, ao antigo Bairro dos Escravos e, por outro, ao nome Woods da norte-americana Joanna, amiga e professora de inglês de sua esposa e investigadora que vem ao país destes para efectuar pesquisas acerca das origens dos seus ascendentes escravos, que nos séculos XVII-XVIII demandaram para as Américas na condição de escravos e de meros objectos da cobiça dos europeus. A reconstituição da história dos seus antepassados aparece em “Nunca é tarde para a verdade” e coloca topologicamente a “Rua S-12” como a “Rua dos Segredos” (uma rua que, conforme se pode entender, se identifica ao seu próprio nome e, concomitantemente, ao seu próprio ser), e que, de acordo com Tuluca Dibaia, “foi uma importante rota comercial, militar e trajecto obrigatório para milhares de escravos. Vista a partir do ponto mais alto, a rua tem o formato de um esse que era um código antigo. Este “S” quer dizer segredo e “12” era o número de escravos escondidos aqui. Era precisamente neste lugar que se escondiam os escravos evadidos, e daqui também partiam clandestinamente os mensageiros com comunicações secretas para vários cantos. Estes desenvolveram meios rudimentares de comunicação, mas foram muito eficientes. Havia aqui uma casa de estilo antigo, onde todos eles se reuniam e se organizavam. Eu sou descendente de um desses escravos…”, explica Tulu Dibaia à sua esposa, F. F. Yianda. Esta e outras explicações deixou-a estupefacta, levando-a a perguntar as razões porque este não explicara tudo isso a Joanna Woods quando ela ainda estava no país, ao que o marido lhe respondeu:
    “É um segredo que ela também investiga, eu sei, mas nada deve saber…”, disse ele e, uma vez mais, não dissera tudo. Sabia que a mulher não guardaria o segredo. Tanto “Dibaia” como “Woods” tinham o mesmo significado: madeira! Evitando conclusões apressadas, preferia não despertar a curiosidade dela”.
    Aqui a problemática do nome não se circunscreve a Tulu Dibaia, ou, até mesmo, ao seu filho mais novo, Kaswekele (nome que, em suas próprias palavras, queria dizer Segredo e recordava a sua própria infância na Academia Militar e os mil e um segredos que lhe eram confiados), ou à questão dos segredos. A problemática do nome nesta obra constitui um foco de reflexão e perplexidade, para não dizer polémica, para todos nós, pois…
    Quando, por ocasião de uma campanha de vacinação contra a poliomielite, F. F. Yianda e Joanna Woods, a sua amiga americana, ao se internarem por bairros suburbanos inóspitos, deparam-se com um estranho indivíduo, “um homem bastante sujo e completamente embriagado [que] surgiu entre a multidão aos gritos, dizendo: ‘Aqui não há doença nenhuma. São os feiticeiros que estão a nos matar. Essa mulher é uma sereia e o nome dela é Kianda. Fujam!’, e fez-lhe várias caretas, como num filme de loucos, Joanna Woods não acreditou no que ouvia e ficou completamente paralisada e boquiaberta. Custava-lhe acreditar que a sua amiga fosse a sereia das histórias que tanto ouvira da Ilha dos Embondeiros e dos ritos africanos que tanto investigava. Parou para reflectir e elaborou um plano secreto para descobrir o verdadeiro segredo da Família Dibaia: a relação entre Kyanda e Yianda, a casa 612 e a Rua S-12. Descobriu muitas coincidências num minuto”. Por isso, ela própria “queria desvendar o segredo da kyanda que se escondia atrás de Yianda, no mais curto espaço de tempo”. No entanto, apesar das coincidências, e se chegou a alguma conclusão sobre este assunto, isso é algo que a narrativa não nos aclara. É sabido, contudo, que esta encontrou em Kianda alguém que certamente “ser-lhe-ia útil às pesquisas sobre os mitos e crenças nas sociedades africanas”.
    E o nome de uma das filhas, a Isselente, não deixa de ser interessante, tal como foi dado à segunda filha do casal, o que muitos anos mais tarde quando a explicação é dada não deixou de indignar a sua esposa. É que, quando Tuluca Dibaia se apresentou aos futuros sogros e com eles delineou o casamento com F. F. Yianda, e perante o facto dele se casar com ela aceitando todas as condições, o pai da rapariga respondera: “Tá isselente, isselente!!!”, sem esquecer a alegria que lhe ia na alma.
    Termino, lembrando que Tulu Dibaia “dizia frequentemente, à mulher e aos filhos que não acreditava em plantas de sorte nem em paus de feitiço, já que “o verdadeiro segredo é ter o controlo do nosso destino, através do conhecimento das coisas e das suas causas. A vida tem leis e a sociedade tem normas”, repetia sempre. Tinha tudo o que nunca acreditou ter no dia em que se sentiu num mundo de loucos: o lar, os filhos, dinheiro e a felicidade familiar. Em quinze anos a sua vida mudara radicalmente”.
    É o que, na nossa modesta forma de ver, resume o nosso entendimento sobre a noção de modo de vida e filosofia africana. Se é segredo, se há segredo, ele não é mais do que aquilo que subentende o nome.

    (*) Adaptado do texto de apresentação do livro

    Mateus Volódia

    Fonte: Jornal de Angola

    Fotografia: Jornal de Angola

     

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