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    Lilian Thuram: “Quando ouvia cânticos a imitar macacos, não tinha dúvidas de que as pessoas com problemas eram as que cantavam e não eu”

    Campeão do mundo pela França em 1998, Thuram construiu uma carreira ímpar a que não faltaram os obstáculos. Hoje em dia, dirige uma fundação que luta contra o racismo, tentando explicá-lo

    Lilian Thuram mudou-se para França, vindo de Guadalupe, aos nove anos. Ninguém como ele viveu a vitória da selecção francesa no Mundial de 1998, particularmente no que diz respeito à harmonia racional que o país viveu depois do triunfo histórico. Habituado à discriminação, Lilian testemunhou atitudes que o chocaram tanto, enquanto crescia, que, uma vez terminada a carreira, decidiu focar-se na luta contra o racismo.

    Durante algumas semanas após a conquista do primeiro campeonato do mundo pela França, Thuram estava encantado a ver os franceses a serem tratados como iguais independentemente da raça.

    “Não sou ingénuo. Sei muito bem que fora do futebol as pessoas não são tratadas da mesma forma. Não podem sonhar com as mesmas coisas. Dependendo da cor da tua pele, das tuas origens, não tens acesso às mesmas oportunidades. É por isso que estou muito feliz que, pelo menos durante um período, tenha havido este reconhecimento,” afirma o ex-jogador ao jornal inglês “The Guardian”.

    O antigo internacional francês fundou em Paris a Fondation Lilian Thuram, depois de deixar o Barcelona, em 2008. O objectivo é educar os jovens sobre as raízes do racismo e por que é que está errado. O jogador com mais internacionalizações por França luta agora contra o racismo com a determinação que fez dele um dos melhores defesas da sua geração. Thuram viaja pelo mundo e faz palestras em escolas, universidades e conferências.

    Não foi fácil para o “The Guardian” agendar uma reunião com o antigo jogador. Isso não aconteceu apenas por questões de agenda, mas também porque Thuram está no meio de uma tempestade mediática depois de ter dado uma entrevista aos italianos do “Corriere dello Sport”. Ao reflectir historicamente no problema, Thuram disse: “É necessário ter a coragem de dizer que as pessoas brancas acreditam que são superiores”. A frase irritou alguns dos seus compatriotas. O jornalista Pierre Ménès disse que “o verdadeiro problema em França, ou no futebol francês, é o racismo anti-branco”.

    A controvérsia gerada fez com que Thuram ficasse relutante em relação a dar uma nova entrevista. Acabou por aceitar. “O facto de o tema do racismo estar a ser cada vez mais debatido é bom,” diz. “E se estou a ser atacado isso significa que, de alguma forma, as minhas acções estão a pôr certas pessoas desconfortáveis. (…) Não te esqueças de que Nelson Mandela foi acusado de ser um racista anti-branco. Martin Luther King também.”

    O francês não se vê como o próximo Mandela ou MLK mas o número de livros sobre essas personalidades na sua preenchida estante sugere a influência que as duas figuras históricas têm sobre ele.

    Thuram nasceu na Polinésia Francesa. O racismo intriga-o desde que se mudou com a sua mãe para a região de Paris, em 1981. “O que me surpreendeu quando cheguei foi que alguns dos meus colegas julgavam-me por causa da cor da minha pele. Faziam-me crer que a minha cor de pele era inferior à deles e que ser branco era melhor,” afirma. “Eram miúdos de nove anos. Não tinham nascido racistas mas já tinham desenvolvido um complexo de superioridade. A partir desse momento comecei a colocar-me questões a que nem a minha mãe sabia responder.”

    Sem os esclarecimentos da mãe, Thuram procurou explicações nos livros. “Historicamente, criámos hierarquias de acordo com a cor da pele,” diz. “Educámos a pessoa branca para pensar que era dominante sobre os outros. Tal como educámos os homens para serem dominantes sobre as mulheres. São mecanismos intelectuais e ideológicos que foram construídos para explorar outras pessoas.”

    O seu primeiro clube foi, curiosamente, o Portugais de Fontainebleu, fundado por emigrantes portugueses, mas com jogadores de todas as nações. “Ao fim de semana, eu era português,” diz Thuram. “Os adversários insultavam-me chamando-me ‘porco português’, o que, sendo da Polinésia Francesa, eu achava muito engraçado.

    Como muitos dos seus pares, Thuram passava cada momento possível com uma bola nos pés. “A melhor maneira de ser bom em algo é fazê-lo muitas vezes. Quando vives nos subúrbios, jogas muito futebol. Não tens acesso a aulas de piano ou violino. (…) É por isso que tantos jogadores vêm destas áreas.”

    A vida de Thuram mudou quando Arsène Wenger o levou para o Mónaco, com 17 anos. Foi o início de uma carreia brilhante. No entanto, no principado, apesar de ser já um jogador conhecido, Thuram era muitas vezes impedido de entrar em bares e restaurantes. Durante os dez anos que passou em Itália, no Parma e na Juventus, ouviu regularmente cânticos a imitar macacos.

    “Percebi o mecanismo por trás do racismo. (…) Por isso, quando ouvia os cânticos a imitar macacos, não tinha dúvidas de que as pessoas com problemas eram as que cantavam e não eu. (…) O racismo nasce de uma sensação de que tu és superior à outra pessoa. Achas que és ‘normal’ e eles não. É o mesmo com a homofobia. (…) Precisamos de explicar muito calmamente a estas pessoas que elas não são ‘a norma’. Não existe norma.”

    Segundo Thuram, “as pessoas tendem a analisar o racismo de acordo com o seu próprio país ou os seus sentimentos mas tens de considerar o racismo a uma escala global e com profundidade histórica”. “As sociedades europeias fora construídas sobre o racismo. Está enraizado no subconsciente colectivo há séculos.”

    Para ilustrar o progresso da humanidade, Thuram pega no exemplo da sua própria família: “O meu avô nasceu em 1908, 60 anos depois da abolição da escravatura em Guadalupe. Quando a minha mãe nasceu, em 1947, havia segregação nos Estados Unidos. Quando eu nasci, em 1972, havia apartheid na África do Sul. Em França, o racismo do estado acabou nos anos 60. Se não tiveres consciência desta história mais profunda, podes achar que há mais racismo hoje. Mas eu posso dizer-te que não há. Há muito menos.”

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