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    Lares assombrados – mulheres buscam socorro

    O ano 2017 jamais sairá da mente de Dinamene Airosa. Foi nesta época que o azar lhe bateu à porta, e viu partir a filha nas mãos de um agressor.

    A dor da perda ainda hoje perturba e mantém “intacta” a pergunta que mais lhe invade os pensamentos: Por que razão o ex-genro não evitou a desgraça?

    Há dois anos, Dinamene conheceu os efeitos da violência doméstica e perdeu a filha, morta pela pessoa em quem mais confiara o seu futuro: o marido.

    Desde então, a vida desta mãe tem-se resumido a três palavras: amargura, dor e revolta.

    Dinamene deixou, para sempre, de conviver com a filha, que entrou para a longa estatística das vítimas da violência doméstica, sem poder defender-se.

    A tragédia foi o corolário de práticas brutais que já se arrastavam há anos.

    Uma morte anunciada? Talvez tenha sido, mas ninguém soube ler os sinais.

    “O meu genro nunca quis que a minha filha trabalhasse. Um atraso qualquer, após o serviço, era motivo para sessões de pancadaria. Uma destas surras resultou em óbito”, revela a mãe, ainda com lágrimas “cravadas” nos olhos.

    O agressor foi julgado e condenado a 15 anos de prisão, mas, nem com isso, a antiga sogra diz-se consolada. “A pena não cobre a dor da perda”, afirma.

    A partida inesperada da filha mudou radicalmente a sorte de Dinamene e dos netos, que ficaram aos seus cuidados, sem mãe e com o pai preso.

    Sentimento idêntico “invade” a mente de Piedade Manuel, desde que perdeu a terceira filha, agredida brutalmente pelo marido, a tal ponto de ter o corpo irreconhecível.

    “Não acreditei quando vi o rosto da minha filha, totalmente desfigurado de tanta surra. Ele usou uma cadeira para bater nela, até perder a vida”, desabafa.

    Mais de mil denúncias em 12 meses

    As duas histórias espelham um problema que ganha contornos alarmantes em Angola, numa altura em que o Executivo desencadeia a “Operação Resgate”, para moralizar a sociedade e repor a autoridade ao Estado.

    Os casos de violência doméstica são cada vez mais notórios no país, onde centenas de lares se tornaram assombrados, sem amor nem confiança entre os parceiros.

    A angústia, o desrespeito e a opressão ganham espaço aos olhos de todos e resultam em choros e várias mortes, grande parte delas por ciúmes.

    Os últimos dados oficiais do Governo não deixam margens para dúvidas. Só nos três primeiros meses de 2018, vinte e uma vítimas de violência perderam a vida.

    Estatísticas do Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher (MASFAMU) apontam para um registo de 1.800 denúncias de violência doméstica, em 2018, em todo o território nacional.

    Dessas queixas, mil e 533 foram feitas por mulheres, contra 340 por homens.

    Um estudo temático publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) revela uma tendência para crescimento preocupante, ou seja, uma em cada cinco mulheres angolanas (21,7 por cento) foi vítima de violência física em 2018.

    A pesquisa revela, igualmente, que quase um terço (31,7 por cento) das mulheres, entre os 15 e os 49 anos, já foi vítima de violência doméstica nalgum momento.

    A percentagem de mulheres que sofreram violência física estabiliza-se a partir dos 20 anos, com uma variação entre os 32,9 por cento e os 35,6 por cento.

    Em contrapartida, o estudo mostra que 22,2 por cento das jovens dessa faixa etária analisada – entre os 15 e os 19 anos – já foi vítima de violência física.

    As províncias de Malanje (com 56 por cento) e Lunda Norte (52 por cento) registam o maior número de mulheres vítimas de violência doméstica.

    A do Cuando Cubango, com oito por cento, apresenta o menor número de casos relatados de violência contra mulheres na família.

    O relatório do INE assinala a existência de violência física de mulheres contra o parceiro, tendo este número alcançado os cinco por cento em 2018, enquanto seis por cento dos homens afirmam já terem sido vítimas nalgum momento.

    Do medo à vergonha

    Trata-se de um problema que exige novas medidas por parte das autoridades.

    As vítimas crescem a cada dia, principalmente mulheres. O risco de morte no interior do lar é cada vez maior. A sociedade clama por socorro.

    Apesar dos esforços do Executivo, é quase certo que nem a punição aos agressores tem apagado os rastos da criminalidade. Alguns lesados, sobretudo mulheres, têm deixado os lares ou as famílias, refugiando-se nos centros de acolhimento.

    Por temor à morte, muitas mulheres preferem abandonar os lares, sem denunciar. Mas há quem rompa o silêncio, como Alexandra Sousa.

    A funcionária pública viveu oito difíceis anos de casada, com um marido que a proibia de quase tudo, até de dialogar com vizinhos e visitar a família.

    “Frequentemente, ele batia-me. Pensei que iria mudar, mas a esperança desvaneceu-se. Tive de me retirar da relação e fazer queixa à Polícia, embora ele não fosse detido”, conta.

    Mãe de três filhos, só tomou a decisão e livrou-se do sofrimento radical depois de uma sessão de pancadaria que a internou no hospital durante dois dias.

    Jandira Dias é outra vítima de violência doméstica. Bancária, com dois filhos, conta a sua história com o rosto coberto de lágrimas e cicatrizes.

    No início do relacionamento, revela, o ex-parceiro já dava sinais de ser uma pessoa muito agressiva. Todavia, ela “achava que tudo era apenas insegurança”, por gostar demasiado dela, crendo que tão logo mudaria.

    O que ela não esperava é que o parceiro piorasse e, com o tempo, as ameaças aumentassem e as agressões se sucedessem, de várias formas.

    Foram várias agressões, até que denunciou o parceiro, depois de ter batido nela na presença dos filhos, que pediram socorro aos vizinhos. Jandira disse “basta”.

    “Hoje sinto muita vergonha do meu rosto, devido às cicatrizes derivadas da surra que levava. Isso fez reduzir a minha convivência social. Já não saio com as amigas. Prefiro apenas frequentar a casa da minha família”, confidencia.

    Para superar o trauma, tem buscado ajuda psicológica especializada.

    Maria Gomes também conhece os traumas da violência doméstica, pois sofreu, durante 20 anos, maus-tratos do marido, até ganhar coragem e denunciar.

    Afirma que já passou por momentos difíceis na luta para superar o trauma e deixa um conselho aos que ainda passam por este mal. “Não tenham medo, enfrentem a sociedade, mesmo que alguém se ria e fale mal de vocês”, aconselha.

    Especialistas explicam consequências

    Se há quem se envergonhe do que passou nas mãos do ex-parceiro, outras fazem deste sofrimento uma fonte de coragem para denunciar.

    Maria Van-Dúnem, economista, apela às vítimas para não se calarem, mesmo que a violência for só verbal, embora reconheça as dificuldades.

    “Denunciar as agressões vividas na família nem sempre é fácil, até porque muitas mulheres demoram a reconhecer a realidade violenta”, reconhece.

    Já Ana Vunge declara que viveu 24 anos com um marido violento e que a vigiava permanentemente, chegando a estar impedida de realizar coisas simples, como fazer compras e ir ao salão de beleza sem autorização.

    “Fiquei 24 anos ao lado de um homem que, no início, claro, amei. Mas, após as sessões de violência, acabou-se o amor”, relata a vítima.

    A violência doméstica é uma prática que pode causar consequências psicológicas graves, e, como tal, os especialistas encorajam as vítimas a fazerem as denúncias.

    Segundo a psicóloga Carlota José, essa prática prejudica profundamente a auto-estima da mulher, com severos transtornos psíquicos, como depressão e ansiedade, além de distúrbios sexuais e de humor.

    A especialista critica a forma como determinadas pessoas encaram, com leviandade, a agressão masculina à parceira, suportada pelo ditado segundo o qual “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

    “Aqui estamos diante de uma terrível distorção, na medida em que a agressão física ou verbal e situação de humilhação são casos de polícia e, por vezes, de saúde pública”, faz saber.

    “Quem presencia esses comportamentos deve meter-se”, acrescenta.

    Mais eficácia da Lei

    A prática de violência doméstica é passível de penalização em Angola. Está tipificada no ordenamento jurídico angolano, mormente na Lei Contra a Violência Doméstica (Lei nº. 25/11, de 14 de Julho), que visa punir atentados aos direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas na família.

    De acordo com o jurista Esteves Cambundo, a Lei Contra a Violência Doméstica não prevê apenas medidas punitivas, porquanto, no seu capítulo III, dedica um conjunto de normas de carácter preventivo.

    As mesmas disposições orientam a educação, a sensibilização e informação, bem como a assistência e formação dos sujeitos do crime de violência doméstica.

    Além das já mencionadas medidas de prevenção e de apoio, o diploma legal prevê ainda medidas de protecção da vítima, compreendendo um conjunto de diligências que visam assegurar a protecção dela, da sua família e dos seus bens.

    A lei consagra também, no artigo 18.º, medidas administrativas que se materializam através da mediação de órgãos públicos e privados, vocacionados para o efeito, sendo as mais graves as de carácter penal, previstas no artigo 22.º.

    O jurista considera necessário que se estudem, profundamente, as causas do aumento de casos de violência doméstica em Angola, ao contrário de se pensar apenas no agravamento das penas a aplicar a este tipo de crime.

    Aos órgãos competentes do Estado, com realce para o Serviço de Investigação Criminal, Procuradoria-Geral da República e para os tribunais, solicita mais celeridade no tratamento dos processos, para o bem da justiça e do Direito.

    O MASFAMU “luta” para reverter os índices de crescimento dos casos de violência doméstica, com a criação das salas de aconselhamento ou casas de abrigo em todo o país.

    Conforme a activista social e antiga ministra da Família e Promoção da Mulher, Genoveva Lino, que falava num debate da TV Zimbo, devem-se criar novas políticas ou mecanismos para reduzir o quadro da violência doméstica.

    Sugere, igualmente, a criação de cooperativas profissionais para atender às necessidades de emprego e acentuar a importância da educação religiosa para a harmonia do lar.

    Já a directora nacional do MASFAMU para os Direitos da Mulher, Maria Soledade, entende que o empoderamento das famílias, o diálogo, o amor e a união podem ser a chave para reduzir os índices de violência doméstica.

    Do seu ponto de vista, o país precisa de ter mais instrumentos de prevenção contra a violência doméstica e de investir em grupos sócio-educativos.

    Mentalidade nova

    Só assim se poderá ajudar os autores de violência a mudarem de mentalidade e a entenderem que, no lar, há direitos e deveres para todos.

    A existência de brigas e conflitos é natural em todas as relações. O que não é natural é quando apenas uma das partes exerce o poder de forma autoritária, impossibilitando o outro de exercer o seu direito de expressão.

    E é essa a dinâmica que se estabelece em casais cujas mulheres sofrem violência.

    Em geral, o homem intimida a mulher através da força física e das ameaças de agressão aos filhos. As que dependem financeiramente dos seus companheiros ainda se vêem reféns, porque temem passar por privações, caso reajam.

    Acabar com a violência física ou verbal é um acto de maturidade e coragem. Trata-se de uma luta constante entre o bem e o mal, travada no espaço de onde mais se espera haver amor, carinho, compaixão e companheirismo.

    A agressão no lar é uma prática que vem de longa data, e os sinais de violência e risco de vida podem ser notados e denunciados pela vítima.

    Os agressores multiplicam-se pelo mundo, apesar de hoje os governos lutarem para endurecer as medidas punitivas e desencorajarem esta prática.

    Nesta dura situação, cabe à vítima escolher o melhor caminho: sofrer calada, para salvaguardar o lar, ou dar queixa, para salvar a vida? Eis o dilema.

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