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    Guiné-Bissau: “Nós estamos a exigir que nos digam o que aconteceu”

    Faz hoje exactamente um mês que se deu o ataque contra o palácio do governo da Guiné-Bissau. Homens armados irromperam no recinto numa altura em que o chefe de Estado lá se encontrava a presidir uma reunião do Conselho de Ministros. Durante várias horas ouviram-se tiros e quem se encontrava no palácio, fugiu ou escondeu-se. Deste ataque que resultou em 8 mortos, continuam por esclarecer os motivos e os seus autores.

    Mamadu Jamanca, Presidente da associação dos Importadores e dos Exportadores da Guiné-Bissau perdeu um sobrinho neste ataque. Foi contudo na qualidade de representante do sector empresarial guineense que a RFI falou com ele sobre o contexto social e económico em que se deram estes acontecimentos, após meses de bloqueios, até ele partilhar connosco a perda do seu familiar.

    RFI: Há vários meses que os funcionários públicos, nomeadamente o sector do ensino e os profissionais de saúde, estão em greve. Que impacto terão esses bloqueios na economia guineense?

    Mamadu Jamanca: Não é bom num país pequeno, muito dependente, com uma economia muito restrita e que depende largamente de um único produto, não pode dar ao luxo de estar em greves contínuas, greves que são uma grande machadada numa economia que já, só por si, não era grande coisa. Daí que nós sendo a organização do patronato da Guiné-Bissau, chamamos as partes para nos oferecermos para mediar. Estivemos inclusivamente com o secretário-geral da maior central sindical do país e oferecemos os nossos serviços. Sempre que nos derem oportunidade, vamos procurar dar a nossa contribuição no sentido não só de ajudar a terminar com essas greves mas também para que não volte a haver greves sobretudo desnecessárias.

    RFI: Mas julga que as greves são desnecessárias tendo em conta que as pessoas se queixam sobretudo de não receber os seus salários há vários meses?

    Mamadu Jamanca: Não afirmo que as greves sejam desnecessárias porque também fui funcionário público. Vejo que há aqui alguma inércia por parte do Estado representado pelo governo neste caso e alguma pouca atenção que o governo podia dar no sentido de encontrar resposta porque não se vai fazer hoje o que não se fez ontem e amanhã não se vai ter outra resposta a não ser fazer o que devia ter sido feito ontem que é sentar e conversar. Mas no sentar e conversar, quando assumimos a responsabilidade de que doravante vamos fazer isto, vamos fazer aquilo, assumamos compromissos que possamos cumprir.

    RFI: Viu algum impacto no poder de compra das pessoas aqui na Guiné-Bissau da aplicação dos novos impostos no ano passado?

    Mamadu Jamanca: Antes do impacto dos novos impostos, nós já estávamos a gerir com dificuldades extremas o impacto da covid-19 sobre as nossas vidas. Só o impacto que a covid-19 teve na vida quotidiana das pessoas, sobretudo das pessoas sem rendimentos oficiais, já era um problema enorme. Os políticos que me perdoem, mas eles não foram muito felizes a decidir essas novas taxas e impostos porque, se fossem sensíveis à realidade de que a covid-19 estava a levar as pessoas a viverem na ansiedade, a maioria da população da Guiné-Bissau vive das remessas do estrangeiro, os migrantes passaram muito tempo confinados, quem não trabalhar não rende e se não render, não pode ajudar a família, isto teve um impacto tremendo. Só isto era um fardo para a população guineense. E quando chegam estes impostos, nós as organizações da classe empresarial chamamos a atenção que os impostos e novas taxas não eram oportunas e muito dificilmente seriam exequíveis por razões meramente circunstanciais. O mundo hoje está a viver uma crise logística nunca vista. Vou dar um exemplo: perguntei quanto é que custa um contentor vazio da Índia para a Guiné-Bissau. Em 2019-2020, pediam pouco mais de 1.600 / 2.100 Dólares. Ontem, estavam a pedir 10.000 Dólares. Eu pergunto ‘como é que vamos conseguir dar resposta a esta situação num país como a Guiné-Bissau?’ Então se este contentor de 40 toneladas passar a custar 10.000 Dólares, como é que vão comprar a castanha de caju ao agricultor? Estes custos logísticos estão a obrigar à revisão em alta do custo dos produtos no mercado interno. Só isto já é um problema. E o problema para as exportações tanto do caju como de pequenas quantidades de outros produtos, se a logística custar assim tanto, quer dizer que vai sobrar tudo para o produtor, o intermediário e o exportador interno. Só para dar um exemplo dessa questão de logística mundial, o transporte marítimo mundial, há muita castanha de caju da Guiné-Bissau espalhada em portos pelo mundo fora porque o país se deu ao luxo, através do seu governo, de entrar numa guerra desnecessária com uma das maiores companhias marítimas do mundo, a Maersk. A Maersk fez o favor de fechar as suas instalações na Guiné-Bissau e foi-se embora. Nós estamos a ser assistidos por uma empresa pequenina, tipo um anexo num castelo, que não tem condições de resposta, pegou castanha de caju de muitos exportadores e essas castanhas estão espalhadas pelos portos do mundo à espera de chegarem ao porto de destino da Índia e do Vietname. A qualidade da castanha que vai chegar nos países de destino, vai ser um grande prejuízo económico para a Guiné-Bissau. Aproveito este microfone para chamar à atenção ao governo: o governo deve chamar a Maersk, o governo tem que assumir as suas responsabilidades enquanto gestor do bem comum. Estamos à porta de mais uma campanha de caju. Se esta situação continuar, quem é que vai pagar? Estas taxas e impostos vieram complicar mais a actividade económica mas isso muito mais comprometedor para o cidadão comum. Há pouco tempo, passamos aqui uma crise desnecessária de pão. Imagina a Guiné-Bissau, um país pequeno, dá-se ao luxo de entrar em guerra com as panificadoras, não faz sentido. Portanto, deixo aqui um apelo ao governo para que seja mais maleável, que seja mais sensível não só à vida dos operadores económicos mas também à população, porque no fundo somos todos consumidores. Fazer o comércio já é um problema. O país precisa de se industrializar e fazer com isto a mudança dessa narrativa tradicional de anos de vender o caju, as mais-valias do caju, os postos de emprego, taxas e impostos, o país exporta tudo isto e é por isso que continuamos pobres. A madeira é vendida a toros, isto é quase um crime gratuito. Temos algodão, temos amendoim, temos muitas coisas e podemos aqui criar pequenas e médias empresas de processamento local.

    RFI: Precisamente, para além da castanha de caju, a madeira é outra das grandes riquezas da Guiné-Bissau mas é também uma riqueza natural que é preciso proteger. O que espera relativamente a isso?

    Mamadu Jamanca: A minha opinião é preconizar que o governo seja responsável e muito rigoroso. Eu vim de uma região muito castigada pela exploração desordeira das florestas da Guiné-Bissau. Eu sou da região de Gabu, uma região muito próxima do Senegal. No leste do país, temos problemas de água. Este ano, no leste do país não choveu muito. Depois como é que vamos passar durante a seca? Quando faltar a água para as pessoas, nós que somos tradicionalmente pastores nómada, não podemos dar-nos ao luxo de pensarmos em dar água aos animais. Se um pastor nómada ficar sem o seu gado, já está feito. Então é preciso que se tomem medidas imediatas porque senão, mais tarde ou mais cedo, não será só a população daquela zona do país, será todo o país que vai ficar numa situação ainda pior do que estamos hoje.

    RFI: Deram-se recentemente novos episódios de instabilidade política no país. Qual acha que vai ser o impacto de tudo isto a nível económico?

    Mamadu Jamanca: Estou aqui a falar com mágoa, grande tristeza e com revolta porque o que aconteceu é inadmissível. No preciso momento em que o país estava a dar sinais de que o navio já estava a ultrapassar as águas turvas de um vendaval tremendo, acontecer agora esta machadada neste esforço comum de todos os guineenses, mas com um esforço tremendo da classe empresarial que está a sustentar este país, não é a classe política e muito menos os políticos que estão a carregar este país às costas é o sector privado para este país ter as mínimas condições. Aproveito para expressar aqui a minha revolta pelo que aconteceu. Até hoje, não temos uma explicação convincente, séria e aceitável do que é que aconteceu, para que não volte a acontecer. Quero compartilhar aqui um à parte: fui vítima directa deste acontecimento. Um dos jovens que faleceu no dia 1 de Fevereiro, o condutor do Ministro da Defesa, era filho da minha irmã. Este rapaz morreu nos meus braços. Este rapaz, quando apanhou a bala e fui avisado, fui socorrer este rapaz, já estava nas instalações do hospital da base aérea. Fui lá ter com ele e a primeira coisa que o rapaz me disse foi ‘tio, eu sei que vou morrer’. Ele estava mal porque o abdómen dele estava rasgado e eu rasguei a camisa dele para o socorrer. As pessoas querem dizer-me hoje que o que aconteceu ‘não foi nada’, foi uma coisa simples e já passou?! Eu digo que não. Todos os guineenses, os políticos, os militares, religiosos, a sociedade civil, todos nós devemos dizer em uníssono ‘Não, nunca mais!’ Estamos a falar da Guiné económica, mas não podia deixar de compartilhar esta dor, esta revolta que estou aqui a sentir e a de todas estas pessoas, destas famílias que sofreram. Não tiveram uma palavra de conforto, numa cidade de Bissau pequena, o Ministro da Solidariedade, o Ministro da Presidência, o Primeiro-Ministro, ninguém foi dar uma palavra de conforto enquanto representante do Estado e do governo a estas famílias. Nós estamos a exigir que nos digam o que aconteceu de facto para que as almas dos nossos entes se calhar possam descansar melhor.

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    FonteRFI

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