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    Filipe Mukenga e a tradição oral

    A música de Filipe Mukenga é o resultado de uma peregrinação apaixonada por vários estilos e tendências, que passa pela recolha do cancioneiro tradicional angolano, pelas influências da Música Popular Brasileira, pelo rock e pelas sugestões rítmicas e vocais do jazz. Nesta entrevista, ao Jornal de Angola, o cantor e compositor falou, dentre outras questões, do seu público, da nova geração de intérpretes e das suas mais recentes produções discográficas.

    Jornal de Angola – O prestígio da sua obra musical passa pela recolha da tradição oral, de que a canção “Mandume”, gravada no seu primeiro CD, é um exemplo. A oralidade deixou de ter importância no seu trabalho?

    Filipe Mukenga – A recolha da tradição oral é uma das traves em que assenta a minha obra. Depois de ter passado muito tempo a cantar coisas que não tinham qualquer ligação com a minha terra, sobretudo no período colonial, decidi traçar um novo caminho, começando a trabalhar inspirado nas realidades culturais do nosso país, a partir da nossa música. Foi no exército português, para o qual fui mobilizado em 1970, que tomei a decisão da mudança. Convivendo com colegas de diferentes zonas do país, pude apreciar canções lindíssimas das regiões a que pertenciam e foi aí que me apercebi da beleza da nossa música. Em 1973, quando termino o serviço militar, formo com José da Piedade Agostinho o Duo Misoso, um marco importante na minha carreira, porque dei início à recolha e estilização de obras perdidas no nosso vasto e rico cancioneiro.
    A oralidade não deixou de ter importância no meu trabalho, ela nunca vai deixar de ter grande peso na minha obra, porque continua a ser importante dar a conhecer aos outros povos da nossa terra a sua própria cultura e também ao mundo. Veja o que acontece com a canção “Humbiumbi”, ela vai “visitando” países e povos nas vozes de músicos conceituados. É a nossa cultura, a nossa música que se vai tornando conhecida dentro e fora do país.

    JA – “Nós somos nós”, o seu último CD, com produção do Zeca Baleiro, correspondeu às expectativas, ou seja, está satisfeito com os resultados?


    FM –
     Em relação ao meu disco “Nós somos nós”, com direcção musical do meu amigo Zeca Baleiro, um disco que considero muito bonito e com o qual decidi homenagear o meu povo pela grande conquista alcançada nos últimos tempos e que é a Paz, não fiquei muito satisfeito com os resultados em termos da sua divulgação nos meios de comunicação social aqui em Luanda. A agência Quality Cultural, criada pelo meu amigo brasileiro Raimundo Lima – o mentor do disco, nunca esteve à altura de implementar um programa que me levasse aos diferentes canais de rádio e televisão no país e fora dele, não colocando de parte a realização de shows em algumas províncias do país, como também no exterior. De igual modo, as negociações que levariam à sua distribuição e comercialização em alguns países da Europa, Ásia e América do Sul não foram realizadas e, no país, muitos dos meus fãs interpelam-me, ainda hoje, na rua, querendo saber para quando a ida à Praça da Independência para sessão de venda e autógrafos. Portanto, “Nós somos nós” foi um recém-nascido que veio ao mundo não encontrando as condições ideais para viver e crescer.

    JA – Os segmentos africanos da Música Popular Brasileira dialogariam melhor com a estética e a estrutura harmónica da sua música?

    FM – São muito visíveis as influências do Jazz na minha música, todos o afirmam. O meu amigo e irmão Filipe Zau, em diversas conversas com amigos, refere-se a mim tratando-me por ‘Sr. Dissonância’. Como também o Zau afirma, a dissonância é a minha imagem de marca. Em muitos segmentos da MPB, em que se escutam claramente harmonias na base de acordes invertidos, as dissonâncias, a música que faço encontra o seu habitat preferido, o que já não acontece nos casos em que as harmonias são mais à base dos acordes simples.

    JA – “Kianda Ki anda” poderia abrir as portas para a efectiva internacionalização da sua música. Houve percalços nessa intenção?

    FM – O “Kianda ki anda”, considerado por muitos críticos musicais e amigos como o meu melhor disco de sempre, foi um CD com uma produção muito cara, e tinha pernas para me levar ao estrelato. Isso não aconteceu porque José da Silva, dono da Lusáfrica, editora sediada em Paris, e à qual esteve ligada por algum tempo, Cesária Évora, deu ouvidos ao seu amigo José Serra, agente de espectáculos em Portugal – que não havia pago os meus honorários de forma conveniente, o que me levou a rescindir o vínculo contratual com ele – e, na sequência, sem uma explicação plausível, utilizou uma cláusula do contrato que havia assinado com a sua editora e deu por terminado o nosso vínculo.

    JA – Sabemos que vai lançar, em breve, um livro autobiográfico, que inclui poemas e contos de sua autoria. A literatura e a sua criação musical pertencem a universos diferentes?

    FM – Embora as duas áreas se complementem, são mundos diferentes. A Literatura, quanto a mim, assenta nas palavras, que  expressam sentimentos, ideias e conhecimentos, enquanto a música assenta em notas musicais que são reforçadas, se assim se pode dizer, por palavras, expressando também sentimentos, movimento e imagens. No livro, pretendo mostrar às pessoas que a minha vida não se circunscreve à música.

    JA – Que influência teve o cantor e compositor André Mingas na evolução conceptual da sua música?

    FM – Aprendi a tocar violão graças ao João Silvestre, meu amigo de infância, antigo guitarrista e componente de um dos muitos grupos de música moderna dos anos 60 (A Nave), aqui em Luanda.
    Comecei por aprender os acordes simples. Mas, escutando grandes figuras do Jazz, comecei a não gostar muito da sonoridade daqueles acordes. A compor, eu procurava, de forma obsessiva, outras sonoridades e tudo se resolveu quando pude conhecer o André Mingas, que começou a tocar violão utilizando os acordes invertidos, as dissonâncias.
    Convivendo muito de perto com o André, comecei a dominar e a utilizar esses acordes e com eles dei um salto gigantesco, quer no domínio do canto, quer no da composição.

    JA – Sente que o espaço da sua música está cada vez mais reduzido ou ainda há quem ouça harmonias e textos bem conseguidos, num universo em que impera, essencialmente, o poder do ritmo, consubstanciado no consumo imediato?

    FM – Penso que há espaço no nosso país para diversos géneros musicais e com harmonias e textos bem conseguidos.
    O que acontece é que a nossa comunicação social, no seu desejo de obtenção de índices elevados de audiência, se vai circunscrevendo à música comercial, onde o poder do ritmo impera.
    Se a divulgação for equilibrada, isto é, se a música que faço, e de outros próximos da minha estética, começar a ser divulgada na mesma proporção da outra música, estou convicto de que mais gente passará a gostar da minha música.

    JA – Tem momentos e estratégias especiais para empreender o seu processo de criação musical, ou seja, primeiro o texto e só depois música, tudo em simultâneo, ou primeiro música e depois texto?

    FM – Tanto trabalhando dentro da parceria com Filipe Zau, como fora dela, a inspiração está sempre presente. Nunca me coloco em situação de queixoso, lamentando pela não chegada da ‘senhora’ inspiração. E ela acontece, iniciando, por exemplo, com a elaboração de um determinado texto que, depois de concluído, é vestido melódica e harmonicamente.
    Confesso que o meu forte não está na elaboração das letras, mas na estruturação das melodias, mas não existem momentos e estratégias especiais. A música comigo acontece, quer iniciando pelo texto e logo a seguir a música, quer vice-versa, ou tudo em simultâneo.

    JA – A nova geração de compositores e intérpretes angolanos diz-lhe alguma coisa, há nomes com futuro?

    FM – A nível de compositores e intérpretes, o país vai assistindo ao surgimento de jovens muito talentosos, alguns dos quais já com provas dadas e mais do que suficientes, garantindo-nos um futuro promissor.
    Apontarei aqui, por exemplo, os casos de Matias Damásio, Konde, Totó, Pérola, Afrikkanitha, Sandra Cordeiro e Ary, sem esquecer o talento do Nino Jazz, enquanto grande pianista.

    Fonte: JA

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