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    Festival “Correntes d’ Escrita”: Na Póvoa de Varzim se falou o português batucado de Angola

    DE UM MONGE QUE FOI A BANHOS NO MAR DA PÓVOA 

    Curou-te o mar do mal que padecias.

    Débil osso que tinhas enfermado À abadia voltaste tão sarado Que doente que eras quase te esquecias. Mas nesse dia à noite em tua cama Sentiste um mal-estar tão incomum E perguntaste a tantos e nenhum Te disse que era doença de quem ama.

    O mar também espera recompensa E nem um padre-nosso tu rezaste Agora ora infeliz porque ditaste Ingénuo a tua própria sentença. Na praia olhaste os olhos de uma dama E olvidar não pudeste essa tricana.

    (Foto: D.R.)
    (Foto: D.R.)

    Com este poema de Carlos Pessanha, jovem poeta da Póvoa de Varzim, vencedor do Prémio Literário Funda- ção Dr. Luís Rainha – Correntes d’Escritas, abrimos esta crónica do maior festival literário português, e da presen- ça de escritores e livros de Angola nesse encontro.

    DENTRO DE UM LIVRO HABITAM OUTROS LIVROS

    Ia a tarde do dia 27 de Fevereiro adormecendo sob os panos frios do Inverno, perto de um mar revoltado, ali na Póvoa de Varzim, quando o auditório do Cine-Teatro Garrett (500 lugares) se tornou excessivamente minúsculo para tão grande massa de poveiros que ali afluíram para ouvir os ilustres mestres da pena dizer as coisas sublimes que só eles sabem dizer.

    Estava a encerrar o 17º festival literário Correntes d’ Escrita que, aberto a 23 de Fevereiro, contou, este ano, com a presença de cinco escritores angolanos: Manuel Rui, Carmo Neto, Lopito Feijóo, António Quino e este que vos escreve.

    Mas foi em plena manhã chuvosa desse mesmo dia que a Póvoa de Varzim escutou, pela voz de Carmo Neto, o sotaque do português batucado que só Angola sabe dizer, a sua tentativa de responder à pergunta “Quantos livros tem um livro?”, apontando dois caminhos para a busca do sentido do texto literário: “primeiro, o que está escrito; segundo, quando encontramos a verdade escondida, o livro do leitor”.

    E afinal um livro dá origem a “centenas de livros dos leitores, sendo que, em comum, têm apenas o facto de todos esses leitores terem lido o mesmo e único livro”. Assim, “dentro de um livro habitam outros livros”, concluiu Carmo Neto ao dizer que a Literatura abre-se a diversas perspectivas.

    Na mesa nº 10 do Correntes d’Escritas no Cine-Teatro Garrett, estavam ainda João Paulo Sousa, Raquel Patriarca, Cristina Valadas e Vergílio Alberto Vieira, com a moderação do jornalista João Gobern.

    PÁSSAROS DE ASAS ABERTAS

    Angola foi a grande protagonista da noite de 25 de Fevereiro, no Hotel Axis Vermar. Pássaros de Asas Abertas e Reuni Versos Doutrinários foram as duas obras lançadas sob a chancela da União de Escritores Angolanos.

    Pássaros de Asas Abertas é uma antologia de contos de 37 autores nacionais, cuja edição da responsabilidade da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da União de Escritores Angolanos e está integrada nas comemorações do 40º aniversário da independência de Angola.

    Margarida Gil dos Reis e António Quino foram os responsáveis pela seleção e organização da obra. Margarida Gil dos Reis afirmou que este trabalho comprova a riqueza da literatura angolana e deseja que, através deste livro, os leitores conheçam novos escritores, escolham os que mais gostam e queiram ler mais coisas escritas por eles. António Quino confidenciou que o seu sonho é que os portugueses conheçam melhor os angolanos pelos olhos da sua literatura.

    Nesta antologia, poder-se-ão encontrar alguns dos mais expressivos nomes da literatura angolana contemporânea. Reuni Versos Doutrinários condensa 35 anos de publicação de poesia de Lopito Feijóo e trata-se de uma escolha do autor, onde os leitores poderão encontrar os melhores e mais distintos momentos do labor oficinal do poeta.

    A SUBJETIVIDADE DO TEMPO EM QUE SE ESCREVE

    “Escrevo o futuro ou escrevo para o futuro” foi o tema proposto na Mesa 4 do Correntes d’Escritas na tarde de quinta-feira, dia 25, no Cine-Teatro Garrett, colocando ao mesmo nível de reflexão Fernando Perdigão, José Manuel Fajardo, J.A.S. Lopito Feijóo K., Matilde Campilho, Tiago Salazar, com a moderação de Henrique Cayatte. J.A.S.

    Lopito Feijóo K. considerou o tema da mesa um “pouco lunático”, mas como na sua terra as pessoas o costumam caracterizar como lunático, agradeceu o convite e a integração neste debate. J.A.S. Lopito Feijóo K.  considera-se “um aprendiz de poeta que gosta de contar histórias”. J.A.S. Lopito Feijóo K. abordou ainda a questão da falta de compreensão dos escritores no seu tempo, alguns só são entendidos no futuro: “temos muitos escritores que nunca foram entendidos e, mesmo aquelesque são entendidos hoje, daqui a 50 anos, os vindouros vão ler as suas obras de outra maneira”. Está claro que “escrever para o futuro é muito complicado quando tudo o que vivemos é o presente. O passado lá vai, quando muito podemos fazer uma visita ao passado, e em razão das nossas experiências, escrever no presente para sermos entendidos no futuro”.

    ESCREVO E DEPOIS…

    Foi às 17h30 do dia 26, no Cine-Teatro Garrett, e mais uma vez, com sala cheia. Mário Zambujal, Mayra Santos-Febres, Álvaro Magalhães e Manuel Rui foram os que falaram  sobre o “depois da escrita” como o tempo da leitura, o futuro, que pode ser mais próximo ou mais longínquo. Manuel Rui transmitiu a ideia que depois de escrever fica com a impressão do incompleto, tendo de voltar a escrever com “palavras que não existem”. Uma ideia transmitida através de um texto poético que mereceu as palmas entusiastas do público.

    “Quando escrevo, o texto é uma invenção, uma necessidade de falar comigo no silêncio, na antecipação de tentar que a minha escrita vá invadir o silêncio dos outros”…

    O SILÊNCIO COMO PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

    A Conferência de abertura do Encontro Correntes d’Escritas apresentou na tarde de quarta-feira, 24, no Cine-Teatro Garrett, a reflexão de José Tolentino Mendonça sobre “O Silêncio dos Livros”.

    Perante uma plateia muito preenchida, como é habitual neste evento,   poeta, sacerdote e professor defendeu o silêncio e o refúgio da leitura como algo fundamental para recuperar o nosso lado mais humano, numa sociedade que vive vorazmente a hiper-estimulação dos sentidos. Esta vivência acaba por nos tornar “analfabetos emocionais”, frisou o orador, citando Ingmar Bergman. José Tolentino Mendonça acabou por confessar que um dos seus

    sonhos é “ver, um dia, o silêncio ser declarado Património Imaterial da Humanidade”, afinal, acrescentou, “o silêncio é uma forma de expressão extraordinária”.

    PRÉMIO CASINO DA PÓVOA

    O júri do Prémio Casino da Póvoa elegeu a obra de Javier Cercas como vencedora do

    Prémio Literário no valor de 20 mil euros, atribuído no 17º Correntes d’Escritas. Na

    declaração de voto pode lerse que o júri valorizou os seguintes aspetos: “a atenção

    às grandes questões da sociedade contemporânea”; “a opção por uma construção narrativa atenta à polifonia de vozes e aos seus modos distintos de convocação de memória”; “a componente de romance de iniciação, quer individual quer coletivamente considerado na Espanha dos primeiros anos de Democracia”. Javier Cercas nasceu em 1962, em Ibahernando, Cáceres, e publicara já vários livros.

    ESTÓRIAS DE SONHO E LIBERDADE

    A União dos Escritores Angolanos (UEA) apresentou dia 2 em Lisboa, no auditório Armando Guebuza da Universidade Lusófona, a antologia de contos intitulada “Pássaros de Asas Abertas”, integrada nas comemorações do 40.º aniversário da Independência de Angola.

    Com este segunda apresentação, depois do lançamento no dia 22 de Fevereiro no Correntes d’Escrita, na Póvoa de Varzim, a UEA continua o seu trabalho de divulgar e internacionalizar a literatura angolana, como frisou na ocasião o secretário-geral, Carmo Neto, ladeado pelo representante da reitoria da Universidade Lusófona, Esmeraldo de Azevedo, e pela co-autora da antologia, Margarida Reis.

    A 2 de Março, a tradutora e organizadora alemã Barbara Mesquita e a editora Ulrike Asche-Zeit apresentaram, no Goethe Institut, em Lisboa a antologia de literatura angolana Angola Entdecken! [Descobrir Angola!]. Esta obra antológica já foi lançada (2015) nas cidades alemães de Munique e Hamburgo.

    UM CONJUNTO DE CUMPLICIDADES

    “Um conjunto de cumplicidades”: com estas palavras, Manuela Ribeiro, que já anda há 17 anos a trabalhar para as Correntes d’Escritas, sintetizou a alma deste projecto proposto pelo vice-presidente da Câmara de Póvoa de Varzim e vereador da Cultura, Luís Diamantino: “O projecto das Correntes d’Escritas surgiu quando eu assumo o pelouro da Cultura da Câmara Municipal.

    (Foto: D.R.)
    (Foto: D.R.)

    Sendo eu professor de Literatura Portuguesa, entendia que era necessário, já quando estava na escola a leccionar, fazer-se cá na Póvoa um encontro que reunisse vários escritores e surgiu a hipótese, ao falar com um amigo meu, de um amigo meu que andava por aí e conhecia o Luís Sepúlveda e conhecia a Semana Negra, em Gijón, (soube que a Semana Negra já acabou) e eu pensei que seria uma óptima oportunidade de fazermos essa ponte, e esse contacto com Gijón. O Luís Sepúlveda

    e outros escritores vieram cá e esse intercâmbio foi-se alargando a outros pontos e outros escritores e neste momento as Correntes d’Escritas que começaram com 30 escritores, num espaço que tinha 70 lugares, já ultrapassou os 600 lugares.”

    Destacou ainda o vereador da Cultura da Póvoa de Varzim o seguinte: “Dizia outro dia um escritor que isto das Correntes d’Escrita é um milagre. O grande segredo das Correntes d’Escrita é que não há aqui estrelas. A única estrela que queremos que ilumine sempre as CE é o LIVRO.

    O Walter Hugo Mãe diz que a Póvoa de Varzim, em Fevereiro, é a Frankfurt de Portugal, porque a Cultura também tem a sua parte na Economia e é importante para a região, para o país e também para os países que interagem conosco, como é o caso de Angola, Moçambique, Brasil, temos aqui também escritores da Colômbia, Porto Rico, do México, de Cuba, etc. Temos aqui agentes literários, tradutores, editores, jornalistas e não podemos esquecer um elemento muito importante que são os leitores que enchem as salas, sã  eles que dão alma ao livro.” (cultura)

    Por: José Luís Mendonça

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