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    Europa recusa indemnizar África pela colonização

    O El Pais revela que o Burundi, pede 36 biliões de euros à Alemanha e Bélgica, fazendo parte da  lista de nações que reivindicam uma compensação pelos prejuízos sofridos com trabalhos forçados e divisões étnicas.

    Num total e exemplar engajamento contra o racismo sistémico, o Burundi, um pequeno país na região dos Grandes Lagos deu a conhecer que vai pedir aos antigos colonizadores, a Alemanha e a Bélgica, uma indemnização de 36 biliões de euros e a devolução de todas as obras de arte roubadas.

    Um grupo de especialistas composto por historiadores e economistas trabalha desde 2018 para avaliar os danos económicos sofridos pelo país durante o período colonial (1890-1962) e, com base nesse relatório, o Governo burundês prepara uma queixa formal, estimulada pelo presidente do Senado local, Reverien Ndikuriyo.

    Os intelectuais burundeses incluem nos seus argumentos não só “os trabalhos forçados” e as penas “desumanas, cruéis e degradantes” impostas à população local durante a colonização,  mas igualmente as consequências das políticas coloniais de longo prazo, com efeitos posteriores à independência. Especialmente, o decreto de 1931, que classificou a população em três grupos étnicos e é considerada a semente dos massacres e da guerra civil (1993-2005) que assolaram Burundi depois da sua independência, em 1962.

    Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha perdeu todas as suas colônias, e Burundi passou às mãos belgas em 1917. Foi nesta segunda etapa de domínio que a Bélgica, muito mais ativa, instaura a categorização dos colonizados segundo sua etnia: hutu, tutsi ou twa. Isso é aplicado tanto em Burundi como na gémea Ruanda, em uma clivagem étnica que é apontada como a origem dos conflitos actuais: o genocídio do Ruanda (1994), as guerras no Congo e os massacres e guerra civil em Burundi.

    Enquanto se multiplicam ― tanto na África como na Europa ― as reivindicações para que finalmente se administre a herança colonial, as potências européias recusam a assumpção de responsabilidades e procuram fórmulas mais cosméticas – afirma o El País.

    Nos últimos 10 anos houve apenas gestos simbólicos: a devolução de alguns objectos (uma espada restituída ao Senegal, e uma bíblia e uma chibata à Namíbia), alguns pedidos de desculpas (de Reino Unido, Bélgica e Itália) e uma só indemnização (cerca de 144 milhões de reais ao povo mau-mau, no Quénia, pagos por Londres). Mas, por enquanto, foram apenas passos pontuais, forçados ou teatrais.

    O único antigo colonizador que desembolsou algum tipo de compensação económica pelos abusos coloniais, o Reino Unido, agiu por ordem judicial. Em 2013, depois de perder nos tribunais britânicos, Londres teve que indemnizar 5.000 sobreviventes quenianos. Daquela derrota surgiu também o primeiro pedido de perdão.

    A Itália anunciou com grande fanfarra em 2008 um “pacto de amizade” com a Líbia, no qual pediu desculpas “pelos assassinatos, destruição e repressão contra os líbios durante o governo colonial” e se comprometeu a pagar 200 milhões de dólares por ano, durante 25 anos, como indemnização. Mas o dinheiro do acordo entre Muamar Kaddafi e Silvio Berlusconi na verdade estava destinado à luta contra a imigração irregular e o pacto dissolveu-se com a queda do ditador líbio, em 2011.

    A França, potência que actualmente continua a exercer maior influência sobre os seus antigos territórios – no âmbito económico, político e militar –, anunciou em 2018  a devolução de 90 mil obras de arte africanas expostas nos museus franceses. Só a partir de Julho, quando houve uma mudança legislativa, se tornou possível executar o que foi anunciado.

    A Alemanha e a Bélgica são duas das antigas potências coloniais mais reticentes em assumir sua responsabilidade imperial. A Alemanha, que cometeu na Namíbia,  o primeiro genocídio do século XX (1904-1908), ignorou durante décadas qualquer responsabilidade da sua gestão imperial e nunca aceitou dar nem sequer o primeiro passo, que consiste em pedir perdão.

    A Bélgica, que carrega a morte de milhões de congoleses durante o reinado de seu ex-soberano Leopoldo II, só neste ano oficializou seu primeiro pedido de perdão. Além disso, o suposto processo de “revisão histórica”, com a  reforma do Museu Real da África Central  e a criação de uma  “comissão de verdade e reconciliação”, está rodeado de polémicas.

    Mas a ausência de um verdadeiro processo de responsabilização, a vigência de políticas coloniais e a permanência de símbolos enaltecendo a grandeza conquistadora ― como os do rei Leopoldo II ―, demonstram que o colonialismo continua sendo uma questão do presente.

    A amnésia alemã

    A Alemanha, o país com a amnésia colonial mais aguda, iniciou negociações com a Namíbia para debater como administrar sua “reconciliação”. Até agora, os frutos desse diálogo são inexistentes. Berlim se nega a usar o termo “reparações”, não contempla a compensação econômica ― defende-se nos 800 milhões de euros (cinco bilhões de reais) que alega ter desembolsado em ajuda ao desenvolvimento local ― e sua postura continua escapando inclusive à admissão oficial de sua autoria.

    Em 2004 houve um aceno, quando pela primeira vez uma ministra alemã mencionou em público a “responsabilidade moral” da Alemanha nas matanças, mas o Governo rapidamente se desvinculou, dizendo que havia falado a título pessoal. Foi preciso esperar até o ano passado para que um membro do Executivo alemão, o ministro do Desenvolvimento, Gerd Müller, chamasse de “genocídio” os crimes cometidos pelo Império alemão na Namíbia.

    Se esse país do sudoeste africano não mereceu nenhum pedido de desculpas, apesar de ter sofrido mais intensamente as atrocidades germânicas no começo do século passado, no caso de Burundi, em cujo território a presença alemã foi muito menor, há uma longa batalha a espera. Com a Bélgica, por sua vez, tampouco cabe ter muitas expectativas, embora em 2009 o reino tenha pedido desculpas pelo sequestro de milhares de crianças mestiças durante as décadas de 1940 e 50. Filhos de colonos e mães locais, a Bélgica os sequestrava e os isolava em orfanatos e missões católicas, em condições precárias.

    “Profundo remorso“ pelo passado belga

    Em 2018, o Museu Real da África Central em Tervuren, na periferia de Bruxelas, reabriu as portas como Museu África, após seis anos de reformulação para poder apresentar uma “uma visão crítica” sobre o passado colonial.

    As críticas, entretanto, acabaram aparecendo, porque as peças expostas hoje foram roubadas por missionários e militares durante a época colonial, e porque neste mesmo museu seres humanos foram expostos no começo do século passado. Dezenas de congoleses eram peças vivas, exibidas no jardim, em uma reprodução de um povoado na colônia belga.

    No fim de junho, o rei Philippe, em um reconhecimento histórico e como presente pelos 60 anos de independência da República Democrática do Congo, apresentou um pedido público de desculpas e manifestou o “profundo remorso” pelo passado colonial naquele país, duas semanas depois de estátuas de Leopoldo II serem atacadas na Bélgica durante uma onda de protestos.

    Apenas duas semanas antes, seu irmão mais novo, o príncipe Laurent, havia dito que não via como o seu antepassado Leopoldo II tinha podido causar sofrimento aos congoleses, já que nunca estivera no Congo.

    Do mesmo modo, a chamada Comissão de Verdade e Reconciliação, anunciada em julho pelo Parlamento belga, no meio do movimento global de protesto contra o racismo surgido como reação a vários casos de brutalidade policial contra negros nos EUA, já nasceu cercada de dúvidas. Alguns especialistas criticaram a seleção de vozes que participarão da comissão, questionando se há uma real vontade de revisar o passado.

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