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    Desmistificando a desdolarização: o dólar não perderá o seu estatuto tão cedo

    A desdolarização está na moda. Ou pelo menos falar sobre isso. Segundo o grupo de pesquisa GlobalData, a discussão sobre a desdolarização em plataformas como Twitter e Reddit aumentou 600% no primeiro trimestre, em comparação com os últimos três meses de 2022.

    Existem dois conceitos relacionados que é preciso ter em conta para evitar confusões. Primeiro, há a força, ou valor, do dólar em termos das taxas de câmbio em comparação com outras moedas. Em segundo lugar, há o papel que o dólar desempenha como moeda de troca e de reserva global.

    O valor do dólar caiu recentemente e parece estar a entrar numa nova tendência de queda de longo prazo. Mas o valor do dólar ainda está acima dos valores observados desde o início do século XXI. Um declínio cíclico no valor do dólar não é suficiente para explicar o debate sobre a desdolarização. Para compreender o debate, é necessário analisar o segundo conceito, isto é, se o dólar está prestes a perder o seu papel na economia global como moeda de troca e de reserva global.

    Actualmente não há nada no desempenho recente do dólar que sugira que o seu estatuto de moeda de troca e de reserva global esteja em risco. O debate é essencialmente político. Vários presidentes, incluindo Emmanuel Macron da França e Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil, viajaram à China para se encontrar com Xi Jinping, que foi ver Vladimir Putin em Moscou. O debate político é baseado na narrativa de que o dólar dá aos Estados Unidos um “privilégio exorbitante” (para usar a frase do falecido presidente francês Valery Giscard d’Eistaing), o que dá aos sucessivos líderes e banqueiros centrais dos EUA muito mais margem de manobra política e económica do que seus pares mundiais.

    No fundo, o debate é mais sobre a hegemonia americana no mundo. A desdolarização é vista como uma forma de quebrar essa hegemonia.

    No ano passado, sanções económicas e financeiras e controles de exportação impostos à Rússia forçaram Moscovo e seus aliados a buscar alternativas ao dólar. No mês passado, o Brasil e a China fecharam um acordo que efetivamente contornaria o dólar americano nos pagamentos comerciais bilaterais e favoreceria o yuan e o real nos negócios.

    Enquanto muitos governos tentam minar o dólar e potencialmente destronar o dólar rei, políticos americanos também utilizam este argumento para fazer avançar as suas próprias agendas políticas.

    O presidente da Câmara dos EUA, Kevin McCarthy (R-Califórnia), atualmente em meio a um impasse sobre o teto da dívida com o governo Biden, disse que o aumento da dívida do governo dos EUA corroerá a posição do dólar como principal moeda de reserva internacional. McCarthy disse num evento da Bolsa de Valores de Nova York que “não devemos ignorar o afastamento do dólar”. A Secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, também envolveu-se no debate dizendo que o afastamento do dólar esta longe de acontecer.

    Mas isso não significa que a desdolarização seja iminente.

    Enquanto os Estados Unidos forem a maior economia no mundo, enquanto a maioria dos países quiser ter acesso à economia e aos mercados financeiros dos Estados Unidos e enquanto for muito trabalhoso e uma grande inconveniência mudar de moeda de referência mundial, a posição do dólar como moeda de reserva global está segura.

    As pessoas falam em desdolarização desde 1990, mas será um processo muito gradual porque não há concorrente a altura. Esse é o problema com a história da desdolarização. O yuan está a ganhar alguma participação de mercado. Mas, essencialmente, ainda está longe de desempenhar o mesmo papel que o dólar na economia global.

    Pesquisas trienais dos mercados de câmbio feitas pelo Bank for International Settlements confirmam que, embora o dólar esteja perdendo parte do mercado, continua muito à frente da concorrência. E mesmo a libra britânica ainda está envolvida em mais transações do que o yuan chinês.

    Os dados da Composição Cambial das Reservas Cambiais Oficiais (COFER) do FMI ainda mostram que o dólar representa aproximadamente 60% das reservas cambiais mundiais.

    Além disso, o dólar americano representa cerca de 80% dos contratos de financiamento comercial e mais de 40% dos pagamentos globais.

    O dólar é conveniente por causa da grande economia dos EUA – que produz bens e serviços consumidos globalmente – com mercados financeiros profundos, líquidos e abertos que facilitam esse comércio. É por isso que os dólares continuam em demanda.

    Assim, as medidas mais fundamentais do comércio de moedas sugerem que a desdolarização não acontecerá tão cedo, apesar das críticas válidas à impressão de dinheiro dos EUA nos últimos anos.

    Isso significa que o privilégio exorbitante do dólar é eterno? Isso seria uma aposta muito perigosa; a libra esterlina foi a moeda de reserva por quase um século, e perdeu o seu estatuto. Outras potências imperiais ocuparam essa posição antes disso.

    A posição do dólar não durará necessariamente para sempre. Se a China continuar a crescer e abrir a sua economia, e se tendências de polarização política mais preocupantes nos EUA ameaçarem a sua estabilidade política, o dólar poderá eventualmente perder o privilégio exorbitante que o antigo presidente francês Valery Giscard d’Eistaing tanto detestava.

    Mas talvez a sucessão do dólar seja diferente e não será substituído nem pelo yuan chinês, o euro ou outra moeda qualquer. Num mundo cada vez mais multipolar, a moeda ou moedas de referência mundial deverão necessariamente reflectir essa nova realidade.

    Por José Correia Nunes
    Director Executivo Portal de Angola

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