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    Combustão

    O “desemprego é o maior adversário de João Lourenço”. Quando, a partir de 2018, comecei aqui a descarnar os fios deste rolo compressor, os poderes públicos preferiram subestimar a carga política que se escondia por detrás da falta de emprego e das desigualdades sociais.

    Empolgados pela dimensão do combate à corrupção, os poderes públicos esqueceram-se que a espiral de desemprego acabaria por matar a esperança daqueles que alimentaram altas expectativas em torno de uma promessa que João Lourenço haverá de carregar até ao fim do seu mandato: a criação dos 500 mil postos de trabalho…

    Entusiasmados pelo apoio popular que a cruzada contra a impunidade começou a granjear, os poderes públicos esqueceram-se que a barriga vazia é bem mais devastadora a corroer a alma das pessoas do que os danos provocados pela nossa miserável cleptomania.

    Esqueceram-se que o desemprego fala mais alto do que todas as restrições associadas ao estado de calamidade decretada pelas autoridades.

    Ao analisar o desempenho do Governo, o MPLA precisa, pois, de reflectir não só sobre o que fazem o seu Gabinete para a Cidadania e Sociedade Civil e alguns membros do seu Secretariado, como de saber responder também aos problemas dos jovens, em vez de lhes responder simplesmente por impulso.

    Ao subestimar a fome e o desemprego, as autoridades acabaram por incorrer, desta forma, num pecado capital: agiram com mais músculo do que cérebro.

    Primeiro, ao precipitar a entrada em vigor de um decreto que visava matar, por antecipação, uma reivindicação social, hiperbolizaram uma manifestação que não tinha a dimensão que acabou por lhe ser dada pelas próprias autoridades.

    Segundo, responderam de forma desproporcionalmente gravosa à opinião pública, às investidas arruaceiras desencadeadas por alguns jovens integrantes das manifestações.

    Terceiro, perderam a cabeça ao procederem à detenção arbitrária de jornalistas, cedendo a uma musculada tentação para o cerceamento da liberdade de imprensa.

    Por último, ao promoveram um julgamento sumário que se prolongou para além de tempo regulamentar, não deram conta que estavam a empurrar o Presidente para os braços dos manifestantes.

    Agora, o país tenta apanhar os cacos de uma revolta que, conferindo legitimidade às reivindicações dos manifestantes, acabou por lhes retirar credibilidade a partir do momento em que decidiram trocar o diálogo civilizado pela violência e pela vertigem do ódio.

    Agora, o país tenta apanhar os cacos de uma revolta que também não viu, da parte da UNITA – enquanto maior partido da oposição – uma atitude de clara equidistância em relação aos tumultos praticados pela fúria de alguns manifestantes.

    Perseguindo (legitimamente) o poder, com essa atitude, a UNITA arrisca-se a ser vista como cúmplice de arruaças e a ficar fragilizada diante de uma elite urbana que detesta a berraria e a raiva e não poupa críticas a quem atenta contra os bens privados. Dir-me-ão que cumpriu o papel de quem aspira ao poder. Isso já sabíamos, mas dela esperava-se mais. Muito mais…

    Diante da crise pandémica, a abertura democrática está, desta forma, a expor os nossos poderes e contrapoderes diante do espelho das suas próprias contradições.

    Quando deles se esperava que estabelecessem um pacto que conciliasse a preservação das liberdades democráticas

    e a protecção da saúde pública, de ambas as partes emergiram excrecências da velha cultura exterminista.

    Faltou, pois, diálogo e bom senso em torno de uma agenda nacional de compromisso para uma abordagem alargada e séria de problemas cruciais dos cidadãos como o desemprego, a carestia de vida ou a pandemia.

    A ausência desta cultura de compromisso nacional surge como herança de um sistema político anquilosado onde os seus agentes, à direita e à esquerda, não olham a meios para atingir os fins.

    Afinal, são muitos anos a ler as mesmas cartilhas e muitos anos a ouvir as mesmas cantilenas. Afinal, são muitos anos a obedecer às mesmas regras e muitos anos sujeitos aos mesmos rituais.

    Afinal, são muitos anos a consumir as mesmas intrigas e muitos anos a ter Maquiavel à cabeceira da cama…

    Agora, cabe às lideranças dos nossos partidos políticos compreenderem que dirigem agremiações que acabaram por não resistir à volúpia do capital.

    E não resistindo a essa volúpia, mais despudoradamente umas, mais disfarçadamente outras, todas elas acabaram por dar lugar a uma constelação de “sociedades comerciais anónimas” que formam hoje o nosso “sindicato multipartidário”.

    A nossa cartografia política assiste, assim, à conversão do capital na ideologia dos nossos partidos, a comercialização da sua doutrina como moeda de troca para angariação de assalariados e a colocação de representantes das suas elites na cúpula accionista.

    Os nossos partidos, nos seus códigos e na sua linguagem esteriotipada, vêm-se expondo, desta forma, como uma tribo de compadres e amigos ligados entre si por interesses meramente corporativistas.

    Os nossos partidos, submersos num mar de dinheiro, transforam-se em casinos onde as principais regras de jogo passaram a ser a mentira, o oportunismo, a chantagem, a manipulação e a fraude.

    Os nossos partidos carregam, por isso, uma casta de políticos que aspira a ser rica, mas que não consegue senão ser uma corporação de gente endinheirada.

    Os nossos partidos, sugados por uma pesada teia burocrática, em vez de militantes, passaram a ter nas suas fileiras utensílios humanos remetidos à instrumentalização.

    Os nossos partidos passaram a ser repartições do Estado destinadas a embalsamar o pensamento diferenciado. Os nossos partidos passaram a assemelhar-se a velhos casebres sem persianas e sem casas de banho…

    Os nossos partidos, com máscara na cara, surgem a empunhar um sorriso de democrática liberdade nos lábios, mas não conseguem esconder a censura que os corrói por dentro.

    Os nossos partidos fazem falta à sociedade, mas, muitos deles, ao converterem-se em verdadeiros pesadelos, abrem espaço para a instalação de um perigoso sentimento de saturação entre a população.

    Nestas circunstâncias, se a “refundação” para o MPLA pode não ser sinónimo de extinção, a dinâmica do tempo obrigá-lo-á a calibrar, por dentro, um novo trilho.

    Reduzida a cacos e sujeita a uma longa travessia no deserto depois da guerra, a UNITA, obrigada a encetar uma metamorfose, persegue agora uma nova identidade.

    Noutras latitudes, desfilam partidos envolvidos em disputas fratricidas que, ao transformarem-se em vítimas da sua própria miopia, já não há lavandaria que aceite proceder à “limpeza a seco” das suas excrescências políticas.

    Para muitos desses partidos ou coligação de partidos, a “refundação” agora já só vai com esfregão, creolina e potassa. Não há outra saída.

    Os clássicos da literatura política e económica à esquerda, podem ter sido bem triturados pelo Bloco Democrático, mas continuamos a ver a sua elite a tatear como uma “Banda Desenhada” que, sem maestro, não consegue encontrar espaço para a exposição…

    Na CASA-CEE as sucessivas sessões de artes cénicas, que têm sido protagonizadas pelas suas várias dissidências, assemelham-se à imagem de uma mulher que, sem eira nem beira, passou a ser disputada por dois maridos que, sem bússola, vão acabar, também eles, por ficar solteiros…

    Noutras paragens partidárias, depois de várias tentativas a dar o arranque do motor em vão, a “refundação” agora só pode dar lugar à evaporação.

    São partidos para quem a palavra “oposição” é uma mera alcunha. São partidos que já não são nem reformáveis, nem recicláveis nem refundáveis.

    Atado à árvore tribal, o PRS, por mais diamantes que lhe caiam no colo, está condenado a ter uma sobrevivência eleitoral regionalizada.

    Espécie há muitos anos em vias de extinção, a FNLA permanece obstinada em continuar a ser igual a si própria e, por isso, persegue a sua marcha triunfal de regresso à… Pedra do Feitiço.

    Perdida na cidade, mas com saudade das matas do Norte de Angola, agora já nem ela própria sabe do seu paradeiro.

    Mas não está solitária. Com grau de parentesco muito próximo, fora da orla parlamentar, seguem-se-lhe as peugadas vários outros primos, sobrinhos e enteados…

    Os partidos são instrumentos nucleares para a afirmação dos grandes líderes políticos, mas não são mais importantes do que as instituições do Estado.

    MPLA, UNITA e FNLA são partidos históricos, que em conjunto com os demais partidos constituem peças chaves da nossa democracia, mas todos eles em circunstância alguma jamais serão mais importantes do que Angola!

    Do que precisamos agora, por isso, é de abrir o país ao debate e ao compromisso, sabendo ouvir a diferença e resistindo à tentação para a politização de problemas sociais e económicos que reclamam por equações realistas e não por expedientes partidários fantasiosos e extremistas.

    Do que precisamos agora é de lucidez, de espírito crítico, de bom senso e de tolerância como ingredientes nucleares para evitar a combustão que tivemos nos últimos dias. Só isso.■

     

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