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    A apólice de seguro da nação…

    GustavoNos primeiros ideários dos programas (antigos) dos nacionalistas angolanos, o que hoje se tenta aglutinar sob o conceito de classe média angolana, não passava da vaga referência da “pequena burguesia”. Esta categoria social, na grelha da leitura marxista, julgada mais em termos de comportamento subjectivo, era alegremente convidada a “suicidar-se” para se juntar aos operários e camponeses na construção do chamado “homem novo” – a tese cabralista em voga…

    Nessa saga “suicidária”, alicerçada na utopia do radicalismo da época, ficou célebre a incitação angolana que proclamava a necessidade revolucionária de “partir os dentes da pequena-burguesia” – uma das pérolas mais preciosas do nosso almanaque político…

    Enterrados esses tempos de utopia e assumindo o arrependimento, prevalecem, porém, entre nós, outros dilemas.

    Queremos ter democracia mas não queremos ser democratas. Queremos ser cidadãos do mundo mas só exercemos o direito de cidadania em silêncio e em câmara escura. Queremos ser livres mas recusamos exprimir a nossa liberdade de pensamento em voz alta.

    Esses não são, porém, os únicos nossos dilemas. Queremos ter uma burguesia mas, pela cabeça dalguns dos nossos decadentes “dinossauros” políticos, não deveríamos ter burgueses.

    A verdade, porém, é que, graças a Deus, tudo isso nunca passou disso mesmo: mera utopia. Agora, varridos pela selvajaria de um capitalismo antropófago, o desafio é outro: como fazer nascer uma classe media como coluna vertebral da nação se, como defendia a sociologia africana dos anos 60, afinal, aquela insiste em comportar-se exclusivamente como uma “pequena burguesia compradora”, que não se dispõe a suar para constituir o seu capital em projectos agrícolas ou industriais?

    Como fazê-la crescer se, o seu enriquecimento fica-se a dever ao seu posicionamento e relacionamento com o aparelho de Estado, onde se alimenta de forma ilícita em detrimento do desenvolvimento nacional?

    Como fazê-la crescer se, a sua principal debilidade é a falta de virtudes e de ética? Mas, o Estado, mesmo assim, deve participar no fomento da burguesia? Afirmativo!

    A questão de fundo não repousa nos apoios do Estado. A questão de fundo radica na forma como, até agora, esses apoios foram e têm sido canalizados.

    Ou seja, o Estado não pode continuar a favorecer sempre a mesma clientela.

    O Estado, de resto, não tem que ter clientela alguma, tem que tratar os cidadãos em igualdade de circunstância, proporcionando a estes as mesmas oportunidades. Dir-me-ão que o Estado no passado até foi generoso na atribuição de benesses e favores a políticos aspirantes à classe média.

    Esse era, porém, um tempo em que tudo girava em torno de um igualitarismo absoluto que nivelava os cidadãos com a pirâmide invertida mas, longe de o ser pela via do reconhecimento do mérito e das competências, era-o pela via da troca de favores e da compra de consciência.

    Era um tempo em que os critérios que sustentavam a atribuição desses favores e o fomento de uma certa clientela burocrática, tanto do lado do poder como da oposição, eram essencialmente políticos e a distinção nada tinha a ver com o espírito de iniciativa , o esforço, a entrega e a capacidade de trabalho de cada um.

    Por isso é que a Caixa Agro-Pecuária (CAP) faliu e ninguém mas, rigorosamente ninguém até hoje, deu uma satisfação aos cidadãos sobre as razões da sua falência. Ora, em economia de mercado – o eufemismo que embeleza a palavra capitalismo – não há critérios políticos. Há trabalho, competitividade, competências e inovação! No nosso caso, o problema de fundo não é apenas já a ausência dessas variáveis, que não nos deixa dormir descansados. No nosso caso, a questão de fundo é outra! Não querendo ser apocalípitico, é avisado reter a ideia de que, em diversas ocasiões no passado, políticos com responsabilidade neste país já chamaram a atenção para a necessidade imperiosa de se proceder a uma redistribuição de oportunidades e da renda nacional.

    Antes que seja tarde de mais, precisamos urgentemente de alargar a base de distribuição da riqueza. Para quê?

    Para que tudo não continue a ficar concentrado sempre no mesmo grupo de pessoas. Para quê? Para que os detentores de capital espalhado pelas áreas da banca, dos diamantes, do imobiliário de alta renda ou dos petróleos, não cedam a sabujice de mergulhar os seus tentáculos também em negócios de lanchonete, barbearia, alfaiataria ou de “candongueiro”…

    Mas, porque será que insisto, afinal, na necessidade de alargarmos a base da distribuição da riqueza nacional?

    Porque o embrião da nossa classe média vive no limite das contas e está longe de ser o grosso do pelotão.

    O grosso do pelotão são os de baixo, que não podem pagar um motorista, não podem pôr os filhos em colégios privados, passam a vida de candongueiro em candongueiro e não têm possibilidades de projectar a vida com base em créditos bancários.

    Por isso é que precisamos de alargar a base da nossa classe média!

    Porque a classe média, que é adversa aos horrores da desigualdade, das injustiças, da censura e das restrições à liberdade, transporta uma activo de que estão destituídos os nossos endinheirados: pensa e age pela própria cabeça.

    Logo, esse segmento da sociedade, que é indispensável para sacudir a nossa abolia moral e combater o poder atrabiliário sobre as pessoas, faz-nos falta! Desde logo porque uma sociedade com uma classe média preponderante é, sem dúvida, uma sociedade mais estável. E quanto mais pessoas pertencentes a este categoria social tiverem uma vida estabilizada, mais estabilidade terá o país.

    Precisamos de uma classe média ampla porque detendo capacidade de intervenção cívica, sendo portadora de valores de cidadania e estando descomprometida com o sectarismo partidário, a classe média dispõe de autonomia espiritual para combater a peste autoritária.

    Porque avessa ao clientelismo, a classe média dá-nos garantia de se opôr ao centralismo como um mal endémico da nossa vida pública e de denunciar o conformismo daqueles que pretendem continuar a viver com uma venda nos olhos ou dos que não disfarçam o desejo de vingança.

    Uma classe média faz-nos falta porque detendo capacidade para pôr a nú a velocidade e a obscenidade com que se enriquece na nossa sociedade e com que se despreza o saber e o conhecimento, saberá questionar a ortodoxia das instituições e lutar pela liberdade como um dos principais fiadores do pluralismo e da tolerância.

    Uma classe média interventiva e antisubserviente faz-nos falta ainda porque sendo a alavanca da sociedade, ajudar-nos-á a combater os efeitos nocivos da corrupção – a maior das ameaças à credibilidade do nosso sistema político. Porque só uma classe média civilizada, que não exalta “sangue, suor e lágrimas”, preencherá a preocupante e doentia falta de comparência da nossa cidadania nos assuntos mais candentes da sociedade.

    Porque só uma classe média nestas condições, ajudar-nos-á a voltar a lutar pela restituição da decência e da dignidade da nossa horrenda qualidade de vida.

    Porque só uma classe média robusta ajudar-nos-á a diminuir o fedorento fosso entre ricos e pobres. Uma classe média, em última instância, funcionará como apólice de seguro dos centros de decisão e, por tabela, da nação.

    Custa-me, por isso, perceber porque a nossa burguesia não se coloca na linha da frente para fomentar o seu alargamento e prosperidade. Custa-me acreditar como a maioria dos nossos endinheirados, que só pensa no seu umbigo, ainda não tenha percebido isso. Custa-me entender que não tenha já percebido que a transformação económica registada no país permitiu identificar quem é quem e quem não é nada. Infelizmente são muito mais, os que não são nada… GUSTAVO COSTA (Novo Jornal)

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    1 COMENTÁRIO

    1. Estimado Sr. Custavo Costa

      De facto aborda um tema deveras oportuno e que tem a ver com os verdadeiros valores que sustentam as pessoas e os Países aonde vivem.
      A Europa tem uma crise de valores aliás podemos dizer que nunca as relações internacionais estiveram tão despidas de valores de nobreza e de altruismo.
      E as consequências serão tragicas para os povos que não encontrarem a sua identidade e os valores que os sempre guiaram até a este momento historico.
      E a pergunta que se faz é que o que esta acontecer em Angola é mesmo uma vontade genuinamente angolana ou são apenas interesses de qualquer ordem.
      O desaparecimento dos espaços verdes na capital é de facto um exemplo da falta de um pensamento de desenvolvimento sustentado.
      Nem a guerra destruiu tanto os valores que sempre guiaram os povos do reino de ngo”la
      Angola precisa de se reencontrar
      Os Angolanos precisam de saber o que querem ser
      E a verdadeira identidade não são os carros, nem os fatos, nem é o dinheiro que nos dá.
      A verdadeira identidade vem com o conhecimento ,com a valorização da nossa historia com olhos postos numa sociedade justa e com oportunidades para todos.

      Seja como for tivemos essa oportunidade nas mãos e como se diz a historia é o maior juiz de todas as imbecilidades humanas seja aqui ou noutro lado qualquer.

      Bom trabalho

      Angola para aempre

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