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    Recordar Viriato da Cruz

    Poeta angolano, Viriato da Cruz nasceu em 1928, em Porto Amboim, e veio a falecer em 1973, no exílio, em Beijing (Pequim).

    Considerado um dos mais importantes nomes da geração de poetas pré-angolanos, Viriato da Cruz procurou as suas raízes africanas, sem, no entanto, perder as referências culturais portuguesas. Através do uso da língua portuguesa, se bem que polvilhada de palavras dia letais e adaptando a escrita à fala crioula, buscou incessantemente os símbolos da civilização africana perdida, como elementos regeneradores de todo um povo em busca da sua identidade. Essa ideia está bem expressa no poema Namoro, onde o apaixonado só consegue conquistar a sua amada quando se liberta das símbolos europeus e dança com ela uma rumba bem africana.

    Os seus poemas tanto são um grito de esperança (veja-se Mamã Negra , onde clama pelo «dia da humanidade») como um olhar nostálgico sobre os valores africanos (considerem-se os versos de Makèzú: «Todo esse povo / Pegô um costume novo / Qui diz qué civrização: / Come só pão com chouriço / Ou toma café com pão… (…) Pruqué qui vivi filiz / E tem cem ano eu e tu? // – É pruquê nossas raiz / Tem força do makèzú!…»).

    Em 1948, Viriato da Cruz lançou o mote: «Vamos descobrir Angola». A frase tornou-se lema para os intelectuais angolanos que, dois anos depois,fundaram o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, com Viriato da Cruz como um dos elementos mais ativos. Esse movimento foi responsável pela publicação da revista Mensagem , onde o grupo exprimiu o seu entusiasmo pela redescoberta da História e arte popular africanas, como contraponto a uma colonização que, fruto do endurecer da repressão por parte do regime ditatorial de Salazar, estava a sofrer uma contestação cada vez mais exacerbada. Nessa revista foram publicados alguns dos mais conhecidos poemas de Viriato da Cruz, tais como Makèzú ou Mamã Negra.

    Vítima dos seus ideais, numa altura em que se intensificava a repressão,Viriato da Cruz publicou apenas poemas dispersos em várias publicações na década de 50, antologia dos em 1961 no livro Poemas . A década de 60foi marcada em Angola pelo início da Guerra Colonial e pelo exílio de grande número de intelectuais angolanos, o que ocasionou o desvanecimento da criação literária que, apenas uma década antes,parecia florescer. A publicação de poemas de Viriato da Cruz – que então circulavam abundantemente de boca em boca – cessou.

    por Gabriel Baguet

    “Tua presença, minha Mãe – drama vivo duma Raça, / Drama de carne e sangue / Que a Vida escreveu com a pena dos séculos! / Pela tua voz / Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais dos seringais dos algodoais!… / Vozes das plantações de Virgínia / dos campos das Carolinas / Alabama / Cuba / Brasil…”

    Biografia

    Porto Amboim, Angola, 1928 – Pequim, China, 1973. Foi um dos mentores do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (1948) e da revista Mensagem (1951-1952). Foi membro-fundador e secretário-geral do MPLA. Dissidente deste movimento, esteve exilado em Portugal e noutros países europeus, fixando-se posteriormente na China. Teve grande importância no desenvolvimento da literatura angolana, caracterizando-se a sua obra pelo apego a certos valores africanos, quer quanto à temática, quer quanto à forma. A sua produção está dispersa por publicações periódicas e representada em várias antologias, das quais uma – No Reino de Caliban – reúne a sua obra poética.
    Obra Poética:

    Poemas, 1961, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império.

    Mamã negra
    (canto da esperança)

    (À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)

    Tua presença, minha Mãe – drama vivo duma Raça,
    Drama de carne e sangue
    Que a Vida escreveu com a pena dos séculos!

    Pela tua voz
    Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
    [dos seringais dos algodoais!…
    Vozes das plantações de Virgínia
    dos campos das Carolinas
    Alabama
    Cuba
    Brasil…
    Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos
    [das pampas das minas!
    Vozes de Harlem Hill District South
    vozes das sanzalas!
    Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando
    [dos vagões!
    Vozes chorando na voz de Corrothers:
    Lord God, what will have we done
    – Vozes de toda América! Vozes de toda África!
    Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston
    Na bela voz de Guillén…

    Pelo teu dorso
    Rebrilhantes dorsos aso sóis mais fortes do mundo!
    Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor
    [amaciando as mais ricas terras do mundo!
    Rebrilhantes dorsos (ai, a cor desses dorsos…)
    Rebrilhantes dorsos torcidos no “tronco”, pendentes da
    [forca, caídos por Lynch!
    Rebrilhantes dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)
    ressuscitados em Zumbi, em Toussaint alevantados!
    Rebrilhantes dorsos…
    brilhem, brilhem, batedores de jazz
    rebentem, rebentem, grilhetas da Alma
    evade-te, ó Alma, nas asas da Música!
    …do brilho do Sol, do Sol fecundo
    imortal
    e belo…

    Pelo teu regaço, minha Mãe,
    Outras gentes embaladas
    à voz da ternura ninadas
    do teu leite alimentadas
    de bondade e poesia
    de música ritmo e graça…
    santos poetas e sábios…

    Outras gentes… não teus filhos,
    que estes nascendo alimárias
    semoventes, coisas várias,
    mais são filhos da desgraça:
    a enxada é o seu brinquedo
    trabalho escravo – folguedo…

    Pelos teus olhos, minha Mãe
    Vejo oceanos de dor
    Claridades de sol-posto, paisagens
    Roxas paisagens
    Dramas de Cam e Jafé…
    Mas vejo (Oh! se vejo!…)
    mas vejo também que a luz roubada aos teus
    [olhos, ora esplende
    demoniacamente tentadora – como a Certeza…
    cintilantemente firme – como a Esperança…
    em nós outros, teus filhos,
    gerando, formando, anunciando –

    o dia da humanidade

    O DIA DA HUMANIDADE!…

    (No reino de Caliban II – antologia
    panorâmica de poesia africana de ex-
    pressão portuguesa)

    Rimance da menina da roça
    A menina da roça
    está no terreiro
    cosendo a toalhinha
    pró seu enxoval…
    – “ Que céu tão lindo!,
    e o encanto da mata!…
    Ai, tanta beleza
    no cafezal…”

    A menina da roça terá poesia
    terá poesia nos olhos de mel?

    A menina da roça
    chega à janela
    e na estrada branca
    a vista alonga…
    – “É o carro a vir?”
    Não… é o bater compassado
    do aço de enxadas
    dos negros na tonga…

    A menina da roça tem é um namoro
    tem um namoro com um motorista

    A menina da roça
    veio à varanda
    e os olhos erra
    no verde à toa
    – “Está ele a chegar?!”
    Ah… são negros pilando
    dendém para azeite
    na grande canoa

    (Prucutum, lá do telheiro,
    vai chamar o meu amor)

    A menina da roça
    acorda à noite
    ouviu um barulho
    na escuridão
    – “O carro chegou!…”
    Oh… é o pulsar
    apressado
    do seu coração

    (Por que bates tão depressa, coração alucinado?
    Coração alucinado, espera que o dia amanheça)

    – “Já viu a minina?…”
    “Hem… tem cor marela
    do mburututu…”
    – “E não come nem nada…”
    – “E os olhos de mel
    tão-se afundar
    num lago azul
    que faz sonhar…”
    Conversam as negras
    à boca apertada

    (minha dor, ninguém a saiba –
    não há peito em que ela caiba)

    A menina da roça
    escuta dorida
    a triste canção
    que vem do rio

    Que vem do rio? – Que vem do peito:
    baixinho, lá dentro,
    chora de amor
    o coração.

    Menina da roça – águas do rio
    saudades da fonte… desejos de amar.

    (No reino de Caliban II – antologia
    panorâmica de poesia africana de ex-
    pressão portuguesa)

    Serão de menino
    Na noite morna, escura de breu,
    enquanto na vasta sanzala do céu,
    de volta de estrelas, quais fogaréus,
    os anjos escutam parábolas de santos…

    na noite de breu
    ao quente da voz
    de suas avós,
    meninos se encantam
    de contos bantos…

    “Era uma vez uma corça
    dona de cabra sem macho…
    …………………………………..
    … Matreiro, o cágado lento
    tuc… tuc… foi entrando
    para o conselho animal…
    (“- Tão tarde que ele chegou!”)
    Abriu a boca e falou –
    deu a sentença final:
    “- Não tenham medo da força!
    Se o leão o alheio retém
    – luta ao Mal! Vitória ao Bem!
    tire-se ao leão, dê-se à corça.”

    Mas quando lá fora
    o vento irado nas fresta chora
    e ramos xuaxalha de altas mulembas
    e portas bambas batem em massembas
    os meninos se apertam de olhos abertos:

    – Eué
    – É casumbi…

    E a gente grande –
    bem perto dali
    feijão descascando para o quitande-
    a gente grande com gosto ri…

    Com gosto ri, porque ela diz
    que o casumbi males só faz
    a quem não tem amor, aos mais
    seres buscam, em negra noite,
    essa outra voz de casumbi
    essa outra voz – Felicidade…

    Makèsú
    – “Kuakié!… Makèzú…”
    ………………………………………..
    O pregão da avó Ximinha
    É mesmo como os seus panos
    Já não tem a cor berrante
    Que tinha nos outros anos.

    Avó Xima está velhinha
    Mas de manhã, manhãzinha,
    Pede licença ao reumático
    E num passo nada prático
    Rasga estradinhas na areia…

    Lá vai para um cajueiro
    Que se levanta altaneiro
    No cruzeiro dos caminhos
    Das gentes que vão p´ra Baixa.

    Nem criados, nem pedreiros
    Nem alegres lavadeiras
    Dessa nova geração
    Das “venidas de alcatrão”
    Ouvem o fraco pregão
    Da velhinha quitandeira.

    – “Kuakié!… Makèzú, Makèzú…”
    – “Antão, véia, hoje nada?”
    – “Nada, mano Filisberto…
    Hoje os tempo tá mudado…”

    – “Mas tá passá gente perto…
    Como é aqui tá fazendo isso?”

    – “Não sabe?! Todo esse povo
    Pegô num costume novo
    Qui diz qué civrização:
    Come só pão com chouriço
    Ou toma café com pão…

    E diz ainda pru cima
    (Hum… mbundu Kene muxima…)
    Qui o nosso bom makèzú
    É pra véios como tu.”

    – “Eles não sabe o que diz…
    Pru qué Qui vivi filiz
    E tem cem ano eu e tu?”

    – “É pruquê nossas raiz
    Tem força do makèzú!…”

    Sô Santo
    Lá vai o sô Santo…
    Bengala na mão
    Grande corrente de ouro, que sai da lapela
    Ao bolso… que não tem um tostão.

    Quando sô Santo passa
    Gente e mais gente vem à janela:
    – “Bom dia, padrinho…”
    – “Olá!…”
    – “Beçá cumpadre…”
    – “Como está?…”
    – “Bom-om di-ia sô Saaanto!…”
    – “Olá, Povo!…”

    Mas por que é saudado em coro?
    Porque tem muitos afilhados?
    Porque tem corrente de ouro
    A enfeitar sua pobreza?…
    Não me responde, avó Naxa?

    – “Sô Santo teve riqueza…
    Dono de musseques e mais musseques…
    Padrinho de moleques e mais moleques…
    Macho de amantes e mais amantes,
    Beça-nganas bonitas
    Que cantam pelas rebitas:

    ‘Muari-ngana Santo
    dim-dom
    ualó banda ó calaçala
    dim-dom
    chaluto mu muzumbo
    dim-dom…’

    Sô Santo…

    Banquetes p´ra gentes desconhecidas
    Noivado da filha durando semanas
    Kitoto e batuque pró povo cá fora
    Champanha, ngaieta tocando lá dentro…
    Garganta cansado:

    ‘coma e arrebenta
    e o que sobra vai no mar…’

    Hum-hum
    Mas deixa…
    Quando Sô Santo morrer,
    Vamos chamar um Kimbanda
    Para ngombo nos dizer
    Se a sua grande desgraça
    Foi desamparo de Sandu
    Ou se é já própria da Raça…”

    Lá vai…
    descendo a calçada
    A mesma calçada que outrora subias
    Cigarro apagado
    Bengala na mão…

    … Se ele é o símbolo da Raça
    ou a vingança de Sandu…

    Namoro
    Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
    e com a letra bonita eu disse ela tinha
    um sorrir luminoso tão quente e gaiato
    como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
    espalhando diamantes na fímbria do mar
    e dando calor ao sumo das mangas.
    sua pele macia – era sumaúma…
    Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
    tão rijo e tão doce – como o maboque…
    Seu seios laranjas – laranjas do Loge
    seus dentes… – marfim…

    Mandei-lhe uma carta
    e ela disse que não.

    Mandei-lhe um cartão
    que o Maninjo tipografou:
    “Por ti sofre o meu coração”
    Num canto – SIM, noutro canto – NÃO

    E ela o canto do NÃO dobrou.

    Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
    pedindo rogando de joelhos no chão
    pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
    me desse a ventura do seu namoro…
    E ela disse que não.

    Levei à avó Chica, quimbanda de fama
    a areia da marca que o seu pé deixou
    para que fizesse um feitiço forte e seguro
    que nela nascesse um amor como o meu…
    E o feitiço falhou.

    Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
    ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
    paguei-lhe doces na calçada da Missão,
    ficamos num banco do largo da Estátua,
    afaguei-lhe as mãos…
    falei-lhe de amor… e ela disse que não.

    Andei barbado, sujo, e descalço,
    como um mona-ngamba.
    Procuraram por mim
    ” – Não viu…(ai, não viu…?) Não viu Benjamim?”
    E perdido me deram no morro da Samba.

    E para me distrair
    levaram-me ao baile do sô Januário
    mas ela lá estava num canto a rir
    contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário

    Tocaram uma rumba dancei com ela
    e num passo maluco voamos na sala
    qual uma estrela riscando o céu!
    E a malta gritou: “Aí Benjamim!”
    Olhei-a nos olhos – sorriu para mim
    pedi-lhe um beijo – e ela disse que sim.

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