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    “Quando há um problema grave de saúde, ou vamos até Portel ou vamos diretos para o cemitério”

    Ao fim de 24 horas de viagem pelo rio Anapu, na ilha do Marajó, Norte do Brasil, a equipa da clínica móvel da Médicos Sem Fronteiras chega à primeira paragem: Ipixuna, uma pequena localidade ribeirinha no remoto município de Portel, estado do Pará.

    O principal objetivo é providenciar cuidados de saúde a pessoas com suspeita de COVID-19. Mas não só isso. A equipa MSF sabia que podia deparar-se com outras questões de saúde durante esta jornada e, por isso, incorporou um forte componente de cuidados primários para conseguir também prestar assistência a pacientes com outras doenças.

    Chegar a comunidades isoladas na Amazónia: uma clínica móvel em Marajó.
    (MARIANA ABDALLA)

    COMUNIDADES RURAIS NEGLIGENCIADAS NO ACESSO AO SISTEMA DE SAÚDE
    O município de Portel tem uma das piores médias nos índices de desenvolvimento humano do país, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e as comunidades rurais têm sido historicamente negligenciadas no acesso ao sistema de saúde, sobretudo devido às dificuldades de deslocação pelos rios.

    Tendo em conta este contexto, a MSF mobilizou uma clínica móvel com uma equipa abrangente para chegar a estas comunidades – composta por pessoal médico e de enfermagem, de promoção de saúde e peritos em logística –, com o propósito de reforçar as mensagens e informação de prevenção da COVID-19 e também para providenciar atendimento às pessoas em caso de outras doenças.

    Chegar a comunidades isoladas na Amazónia: uma clínica móvel em Marajó.
    (MARIANA ABDALLA)

    FALTA DE MÉDICOS E DE MEDICAMENTOS
    Logo desde o primeiro dia destas atividades, a equipa da MSF identificou uma grave carência de acesso das comunidades desta região a cuidados primários de saúde.

    Não havia suficientes profissionais médicos, nem medicamentos, além da patente falta de recursos para dar resposta a emergências, como as mordeduras de cobra, e um muito limitado acesso a serviços médicos essenciais como os cuidados de saúde sexual e reprodutiva.

    “A nossa clínica móvel deslocou-se a esta zona para realizar atividades relacionadas com a COVID-19, mas felizmente não encontrámos casos desta doença”, nota a gestora de enfermagem do projeto da MSF em Portel, Ana Claudia Barreto. “O que encontrámos foi a falta de um sistema de cuidados primários de saúde, principalmente de prevenção, em questões como a saúde sexual e reprodutiva”, sublinha.

    Em todas as consultas, a equipa da MSF ouviu relatos de pacientes que demonstravam a vulnerabilidade da população que vive ao longo do rio Anapu – algo com que as pessoas se confrontam no dia-a-dia.

    Chegar a comunidades isoladas na Amazónia: uma clínica móvel em Marajó.
    (MARIANA ABDALLA)

    “ENFIAMOS AS BOTAS NOS PÉS E FAZEMO-NOS AO CAMINHO PELO MATO ADENTRO”
    “Quando há um problema grave de saúde, ou vamos até Portel ou vamos diretos para o cemitério. E Portel fica longe. Se tiver 400 litros de combustível, vou lá. Mas se não os tiver, não vou. Pela floresta há a forma de transporte que Deus fez, que é o trilhozinho e as nossas pernas. Enfiamos as botas nos pés e fazemo-nos ao caminho pelo mato adentro. Dizemos que fica próximo, mas é mais de um dia de viagem”, descreve Maria Rosinete Monteiro, residente em Ipixuna.

    Ana Claudia Barreto explica ainda que, durante as atividades médicas da clínica móvel, a equipa da MSF percebeu que “muitas pessoas precisavam de informações básicas a respeito da COVID-19”. “Elas tinham um conhecimento limitado sobre os sintomas, assim como sobre como o vírus se propaga e como fazer a prevenção.”

    Apesar de todos os testes rápidos feitos a pacientes sintomáticos terem apresentado resultados negativos para a COVID-19, o risco de um caso chegar à comunidade continua bem presente e esta situação é especialmente perigosa para grupos que vivem tão excluídos do acesso a cuidados essenciais de saúde.

    Por isso, a equipa de promoção de saúde dedicou bastante tempo a sessões de orientação para a população e distribuiu máscaras para reduzir tanto quanto possível os riscos de exposição ao vírus.

    “Esta população teria sérias dificuldades face a um grande surto de COVID-19, dada a falta de acesso. A nossa equipa médica fez todos os esforços para cuidar de cada paciente da melhor forma possível, providenciando uma variedade de serviços primários de saúde, mas aquilo que testemunhámos, das necessidades de saúde e outras questões essenciais nestas comunidades rurais de Portel, tem de ser atendido, e rapidamente. As necessidades são enormes, estas pessoas estão muito vulneráveis e a propagação do vírus da COVID-19 nestas condições seria catastrófica”, alerta ainda a gestora de enfermagem do projeto da MSF em Portel.

    Chegar a comunidades isoladas na Amazónia: uma clínica móvel em Marajó.
    (MARIANA ABDALLA)

    “AS PESSOAS NÃO TÊM DINHEIRO PARA IR DE BARCO ATÉ AO POSTO DE SAÚDE”
    Líderes das comunidades, principalmente professores e técnicos de enfermagem responsáveis pelas unidades básicas de saúde na região, são testemunhas diretas da falta diária de serviços disponíveis.

    “Nós vivemos em Portel e passamos períodos de cerca de 20 dias em Ipixuna por causa do meu trabalho”, conta Clevenaldo Rodrigues, técnico de enfermagem nesta localidade ribeirinha.

    “O acesso à saúde aqui é complicado. Frequentemente, as pessoas não têm sequer o dinheiro necessário para comprar o combustível para ir de barco até ao posto de saúde. E para mim, como técnico de enfermagem, também é difícil porque não existem linhas comerciais de barcos que venham até cá.”

    A equipa desta clínica móvel da MSF prestou tratamento a 390 pacientes durante as atividades feitas ao longo do rio Anapu. Os principais diagnósticos médicos feitos foram de infeções respiratórias não relacionadas com a COVID-19, doenças de pele e infeções do trato genital-urinário. Além disso, foi identificada a falta de informação em promoção de saúde e a ausência de serviços abrangentes de saúde sexual e reprodutiva e em matéria de violência sexual e de género.

    “A população daqui está isolada e as casas e comunidades ficam muito distantes umas das outras. Os postos de saúde são frequentemente geridos por apenas um profissional de enfermagem”, descreve o médico da MSF Eduardo Rugani.

    Chegar a comunidades isoladas na Amazónia: uma clínica móvel em Marajó.
    (MARIANA ABDALLA)

    “Foi importante termos promovido o acesso a cuidados de saúde para estas comunidades. E não apenas no que se refere à COVID-19, mas também sobre as outras questões que as afetam. As pessoas disseram-nos que não viam um médico há muito tempo. Assim, a MSF veio aqui para tratar, orientar, acolher e prestar cuidados de saúde de forma geral a esta população”, avança ainda.

    Entre junho e julho de 2021, equipas da MSF providenciaram ainda formações a profissionais de saúde no município de Portel, nas quais foram abordados temas como os protocolos de prevenção e controlo de infeções, fluxo de pacientes e mensagens de promoção de saúde. Concluídas as atividades em Portel, foi entregue às autoridades de saúde do município um relatório com as conclusões e lições aprendidas durante este projeto.

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