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    Ondjaki: Prefiro “dúvidas abertas do que certezas absolutas”

    O escritor angolano, Ondjaki, está em França para uma série de iniciativas, em Paris e Montpellier, que pretendem promover o livro “Avódezanove e o segredo do soviético”, traduzido em francês e publicado pela editora Métailié, no início deste ano.

    A RFI esteve à conversa com o escritor, que falou do romance “Avódezanove e o segredo do soviético” e reagiu à decisão do Presidente João Lourenço de pedir desculpa e perdão às famílias das vítimas desde a independência até ao acordo de paz de 2002. Ondjaki reconhece que “pedir desculpa a todas as vítimas é um passo importantíssimo, que já deveria ter sido dado pelo MPLA há muitos anos”.

    RFI: Esta terça-feira, dia 1 de Junho, participou, na Bibliocité, em Paris, encontro cruzado com a escritora francesa Marie Darrieussecq. Qual é a importância destes encontros?

    Ondjaki: É sempre importante cruzar ou confrontar olhares. Eu creio que uma pessoa, qualquer pessoa, sai a ganhar. Aprendemos qualquer coisa, sobretudo aprendemos também, devagarinho, a duvidar das nossas convicções. Eu acho isso importante, mantermos um espírito e uma abertura que leve à duvida. Não à dúvida no sentido da insegurança, mas de revermos os nossos conteúdos, as nossas certezas. Eu gosto mais de trabalhar com dúvidas abertas do que certezas absolutas, no que se refere à vida, à ecologia, aos amigos, até à política. É preciso revisitar as nossas convicções. Cada encontro é uma confrontação com o outro e isso, se a pessoa estiver aberta, permite rever muitas coisas.

    O seu livro “Avódezanove e o segredo do soviético” , traduzido em francês, foi publicado pela editora Métailié, no início do mês de Janeiro. Esta história passa-se no início dos anos 80, centra-se na construção de um Mausoléu de homenagem a Agostinho Neto. No entanto, esta obra construída pelos soviéticos vai revolucionar o dia a dia dos habitantes do bairro da Praia do Bispo?

    Sim, eu creio…não sou especialista em arquitectura, que essas intervenções são arquitectónicas , mas também acabam por ser políticas, de um ponto de vista simbólico. Elas inserem-se numa revisão arquitectónica da cidade que tem a ver, no nosso caso, com esses anos do marxismo e leninismo, onde o partido no poder optou por um caminho de socialismo. Mais tarde, seria chamado de socialismo esquemático devido às características tão específicas do nosso socialismo.

    Sim, é uma obra que é de facto emblemática. A mim não me desagrada, pessoalmente, mas, no livro, o que está em causa são duas coisas: o modo como isso iria ou não perturbar o quotidiano daquelas pessoas específicas do bairro, e não apenas da cidade, e o modo, que é uma coisa com a qual eu trabalho em muitos livros, como as crianças reagem à realidade social do país, ou mesmo à realidade política.

    O livro é sobre isso. Não tanto sobre o mausoléu, o Agostinho Neto. O livro é muito mais sobre relações afectivas das crianças com os seus, que são as avós e os vizinhos, e com o seu bairro. Um bairro para uma criança é um mundo. Se se perturba a ordem do bairro perturba-se a ordem das crianças e do coração das crianças.

    Há aqui uma crítica ao culto da personalidade? À vontade política de se sobrepor à vontade das pessoas?

    Eu acho que a literatura, pelos seus próprios caminhos, pela sua própria natureza, se não criticar; se não perturbar; se não mexer algum tipo de águas calmas; está a fazer sim, um papel estético. Mas não está a fazer um outro papel, que é o do desassossego. Não foi intencional. Eu acredito que há críticas intrínsecas na literatura. Eu escrevo muito sobre os anos 80, essa é uma das quatro obras que tem de facto características muito específicas em torno dos anos 80. É normal que alguns aspectos da obra surjam como críticas. Não sei se é intencional, mas acho natural.

    É uma história de amor à terra, amor ao bairro?

    É uma história de como as crianças podem de facto ir a extremos para defender os seus e o seu bairro. No livro, não querendo dar muitos spoilers, mas há pessoas que já conhecem a obra, já foi feito um filme, as crianças predispõem-se a explodir ou “dexplodir”, como eles dizem, a própria obra. E isso, eu acho que, simbolicamente, é muito bonito. Não sei se era interessante acontecer ou não na realidade. Umas crianças pegarem dinamite para fazer explodir um edifício. Mas, acho que simbolicamente, na literatura, creio que isso sim quer dizer que as pessoas estão dispostas a extremos para defender as suas casas. Até mesmo, por exemplo, a Palestina está disposta a extremos para defender a sua casa. Só não tem os meios para o fazer.

    Nos seus livros as histórias são muitas vezes contadas por crianças. Acha que quando uma história é contada por uma criança tem um impacto diferente?

    Eventualmente poderá ter um impacto diferente para o leitor que vai ler. Sim, muitas vezes tenho algumas ideias. Há coisas que naturalmente irei escrever. Mas são os personagens, como eu os convoco, que me dizem: então vamos lá decidir. Quem é que vai falar nesta história? São as crianças? Não, nesta é a avó. não, nesta é o narrador ausente. Não penso muito, sai-me! É verdade que estas histórias, que se baseiam nas minhas auto-memórias dos anos 80, têm como narrador crianças. Mas eu creio que assim, me parece, a história tem mais força ao ser contada.

    É autobiografica?

    Muito autobiográfica. Mas a minha autobiografia é escrita por todos. Ou melhor, sirvo-me de todos para escrever a minha autobiografia. Quando, às vezes, eu digo: este livro é autobiográfico, a “AvóDezanove e o segredo soviético”. [as pessoas dizem] : Ah! mas tu viveste isso? Sim, quer dizer, eu vivi alguns daqueles episódios. O meu primo viveu outros, o vizinho viveu outras. E a avó é tua? Sim, eu tinha uma avó chamada avó Agnette, avó Dezanove. Mas eu tenho 17 avós em Luanda, percebe. Então qualquer uma delas me serve para alimentar a minha autobiografia.

    No livro há um personagem que é o engenheiro soviético. Há o segredo soviético. Há uma história de amor. É um amor impossível. Qual é o objectivo com esta história?

    Eu gostaria de pensar que, literariamente, nenhum amor é impossível. Mas não é isso que a realidade nos diz. Há amores impossíveis. Às vezes não são barreiras, nem físicas, nem sociais, são barreiras do próprio destino. Há pessoas que se amam, que poderiam estar juntas, e que de repente, por força do seu destino, se separam.

    Havia uma brincadeira, na nossa infância, da minha avó que nos ameaçava, constantemente, quando não nos queríamos portar bem, quando não queríamos comer, que ela se ia embora para uma terra chamada tão longe com um suposto namorado soviético. Então é baseado nesse mito, meu pessoal, ou da minha avó, que eu criei esta co-relação.

    O segredo do soviético no livro, o segredo, são vários segredos. Ele vai alimentando vários segredos, inclusive as crianças pensam que não gostam muito dele, tem uma relação esquisita com ele. Depois, vem-se a saber que ele estava, também, aparentemente, do lado das crianças. São essas surpresas a que chamamos vida, ou literatura.

    Há uma denúncia à ocupação soviética?

    Eu nunca falei em ocupação, eu nunca senti ocupação soviética ou ocupação cubana. Tanto os soviéticos, quanto os cubanos estavam em Angola a convite de determinadas pessoas, ou determinadas forças políticas. Portanto, não se pode designar como uma ocupação.

    O Presidente João Lourenço pediu, recentemente, desculpa e perdão às famílias das vítimas desde a independência até ao acordo de paz de 2002. Considera que esta postura abre o caminho para a reconciliação em Angola?

    Eu creio que isso pode ser considerado mais um dos passos para a reconciliação em Angola. A reconciliação em Angola vem sendo feita e é um processo em aberto. Todas as feridas estão abertas. Se em Portugal, eu acho, não se falou o suficiente sobre todos os conflitos, todas as guerras que atravessaram. Nós, então, o que direi. Em Angola temos de falar.

    É óbvio que, esse episódio específico do 27 de Maio é um dos episódios, digamos, mais complexo e mais difíceis de se abordar. Para mim, o que eu valorizo nisto, as declarações do Presidente são da responsabilidade do Presidente, é importante que, finalmente, alguém de dentro do MPLA tenha tomado a iniciativa, com uma certa coragem, de abordar o assunto. Pedir desculpa a todas as vítimas é um passo importantíssimo, que já deveria ter sido dado pelo MPLA há muitos anos. Porque é o MPLA que estava no poder e que está no poder até hoje. Eu espero que seja o início de uma discussão mais ampla sobre este tema, até para que se esclareça pequenos detalhes que nunca foram esclarecidos pelos dirigentes do MPLA.

    Neste período Angola perdeu muitos dos seus intelectuais. Existe um fosso, que foi provocado por um regime totalitário. Como é que se colmata este fosso?

    Eu acho que é importante dizer que todas essas questões, relacionadas com esse período inicial pós-independência de Angola, representam uma complexidade muito profunda. Não é fácil, não é binário. Mesmo o chamarmos regime totalitário, sim é possível e sim tem uma explicação histórica para isso.

    O fosso, qualquer fosso, seja de ausência de intelectuais, ou de médicos ou de engenheiros têm de ser tratados com investimento na cultura, na informação e neste amplo debate que tem de ser feito para curar feridas. Não há outra maneira histórica de vencermos tantos episódios cruéis, não só esse, mas outros, derivados de guerra ou de desavenças políticas. Só há um caminho, que é o do debate da abertura e de se começar a falar sobre isso. É óbvio que haverá reacções diferentes a essa do Presidente, sempre haverá.

    A escrita pode ser um exercício para reavivar essa memória?

    A escrita pode ser um modo de se repensar e de propor novos caminhos de debate ou ouvindo as reacções dos outros. Ouvindo as reacções das pessoas que estão fora do MPLA, ouvindo as reacções das pessoas que estão dentro do MPLA. Dentro do MPLA há opiniões distintas sobre este episódio, especificamente sobre o 27 de Maio. Acho que a escrita pode trazer o registo, às vezes pessoal, às vezes colectivo, de uma zona histórica de Angola que está muito mal explicada. Já muita gente morreu, antes de falar, creio que teria sido bom terem falado antes de morrerem. Mas às vezes faz parte da complexidade histórica, que alguns temas se vistam de silêncio em vez de se vestirem de palavras.

    De certa forma, o Ondjaki faz isso nos seus livros. O seu último livro, o Deslembramento, fala-nos dos acordos de Bicesse, na guerra civil. Sente que, como escritor, faz parte do seu papel deixar a história escrita?

    Enquanto escritor, e digamos, actor social daquele país, creio que dentro da arte é quase impossível que a arte de qualquer artista angolano não se cruze com a guerra e com histórias de guerra. Impossível no sentido que é isto que estivemos a viver nos últimos anos. Mas nos últimos 100 anos e nos últimos 45 muito mais em carne viva. É difícil encontrar um poema angolano ou moçambicano que não se cruze, de maneira implícita ou explícita, com a guerra. Neste sentido sim, a literatura tem servido, não só em Angola como na parte africana de língua portuguesa, como um contributo histórico muito acentuado. O que é muito bonito. No entanto, temos de ter a ressalva que estamos a consultar a história sob um olhar literário. Isto tem de ser considerado. Outra coisa é olharmos a história com o olhar dos historiadores, dos antropólogos ou da sociologia.

    Neste momento está a trabalhar em algum projecto?

    Acabamos de montar um filme com uma produtora angolana do Kiluanje Kia Henda e ele fez-me um convite, no ano passado, para escrever uma curta metragem. Chama-se “Vou mudar a cozinha” e creio que a partir de Agosto, Setembro teremos uma curta metragem. Eu achei a ideia muito bonita. Um produtor angolano, com dinheiro angolano, convidou-me e eu chamei uma equipa, muito pequena, muito boa de angolanos fantásticos. O Eric Claver, um grande realizador e director de fotografia, a Camila Hara, realizadora, a equipa estava cheia de mulheres. Eu acho que com os meios que o Kiluanje conseguiu criar fizemos um filme muito bonito, muito simples e muito importante para nós. Porque fala, em simultâneo, da guerra, da mulher, da autonomia, da força, da independência que as mulheres procuram e que lhes é devida, independente de tudo. Foi uma das surpresas da pandemia.

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    FonteRFI

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