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    Filhos de um deus menor Maio, 27

    Um pouco por todo o mundo, entre efemérides nacionais e internacionais, existem datas que carecem da referência ao ano. Dito de outro modo, são datas que, por força da sua importância, passam a fazer parte da história, passam a integrar o leque de datas e efemérides assinaladas anualmente.

    Elas representam, significam, simbolizam e são alvo de festejos, de condenações mas, em ambos os casos, de memória é o lastro da memória e o que dela se faz, que as torna (às datas) perenes.

    No nosso caso, tomemos como exemplo o 11 de Novembro, a mais importante efeméride-festejo nacional (pelo menos para mim), cuja celebração me deixa “encucada” por ser pouco reverenciada entre-portas – não entendo, mas não entendo mesmo, o motivo por que os presidentes da República (o anterior e o actual) não participam da cerimónia anual alusiva à data!!!

    Esta questão da importância das datas é relevante porque, no calendário das efemérides – e se nos ficarmos pelas nacionais –, elas representam mais do que uma data, representam o país ele próprio.

    Existe uma data que, não integrando o calendário oficial de efemérides, não deixa no entanto de existir e de ser assinalada por milhares de angolanos, dentro e fora de portas. Muito pelo contrário. E não se trata de uma celebração. Tal é o caso do 27 de Maio. A sua importância é de tal magnitude que, para falarmos do 27 de Maio, não precisamos de referir o ano.

    Não se trata de um dia 27, de um qualquer ano. Trata-se não de, mas do (dia) 27 de Maio de 1977. Trata-se de uma data gravada na memória de milhares de angolanos que a viveram, de outros que dela são órfãos, e de outros ainda que dela ouviram falar, mas pouco sabem.

    A criada “Comissão de Reconciliação em Memória da Vítimas dos Conflitos Políticos” contempla, entre os referidos conflitos, o 27 de Maio. Esgrimem-se razões, opiniões mas, relativamente ao 27 de Maio, não há consenso.

    E compreende-se por quê. Compreende-se que os conflitos entre os exércitos dos diferentes movimentos de libertação, e mais tarde entre as forças armadas e os exércitos de dois movimentos/partidos políticos (FNLA e UNITA), tenham sido de natureza (fundamentalmente) militar. Já não se compreende que se queira comparar os conflitos atrás referidos com o 27 de Maio.

    Compreende-se, sim, que os familiares e amigos das vítimas do 27 de Maio reivindiquem a “distinção” dos conflitos. E não sei se o 27 de Maio deverá ser incluído na categoria de conflito! O que sei é que o 27 de Maio redundou no assassinato de centenas, milhares (os números estão por apurar) de indivíduos, na sua maioria jovens, alguns ainda adolescentes, pelo Estado angolano.

    E digo bem, pelo ESTADO ANGOLANO. Tratou-se de um “conflito” entre (o) Estado e (os) civis. Foi o Estado angolano contra angolanos, civis. Não sendo jurista ou advogada, entendo que é aí que está o busílis. O facto de ter sido o Estado o perpretador e, por conseguinte, ser sua a RESPONSABILIDADE dos ignominiosos actos de barbárie cujas feridas continuam por sarar.

    Entre os que clamam por essa “distinção”, temos os sobreviventes que passaram pelas cadeias e, de entre todos, felizmente que há os inconformados que se batem por que se faça luz e justiça. Que tarda!

    Estamos em Julho, Maio já lá vai, dirão… Entre retórica e mais retórica, falar do 27 de Maio é dizer que falamos de pessoas, de mulheres e homens para quem o mês de Maio de 1977 não deixou espaço e tempo para julgamentos e perdões! Por isso Maio é um mês triste.

    Para os católicos, Maio é o mês de Maria. Em Angola, para milhares, significa tristeza, angústia, mágoa, revolta, expectativa. Ainda que não tenhamos tido as Mães da Praça de Maio, como na Argentina, são muitas as mães, pais, filhos – quantos não conheceram os pais! –, avós, netos, tios, sobrinhos, primos, amigos que já não esperam pelos seus entes queridos. Esperam por respostas. E esperam por um pedido de DESCULPAS que só pode vir do Estado, do Estado angolano.

    Na verdade só se poderá falar de perdão, depois de um pedido de desculpas. Daí ser importante expurgar, quanto antes, este trauma colectivo, para que a paz habite os nossos corações.

    Num tempo em que aqui e ali se vai lendo, ouvindo e sabendo de pedidos de desculpas – tardios, é um facto! – em diferentes geografias, contra crimes que são considerados contra a humanidade (tomemos a Bélgica e a Austrália de entre os casos mais recentes), é hora de Angola e os angolanos se reconciliarem e, para isso, os angolanos, o Governo e a aludida Comissão têm que SABER OUVIR, ouvir e dialogar muito particularmente com quem sofreu na pele e com os familiares de quem já não se encontra entre nós – sem excepção e sem medos.

    Não quis o Governo adoptar a solução sul-africana (Comissão Verdade e Reconciliação), mas não percamos a oportunidade de fazer história, pela positiva. Tão importante quanto preservar essa memória e homenagear as vítimas, é saber que as pessoas sentirão que se fez justiça.

    A reconciliação passa por que se faça o luto através da assumpção do erro por parte do Estado – acto simbólico e bonito que pode bem acontecer na celebração dos 45 anos da nossa Independência. Desse modo, os que partiram, os que ficaram e as gerações vindouras sentirão que o 11 de Novembro valeu a pena e que a vida é o bem mais precioso a preservar, a começar pelo Estado.

    O que os angolanos querem é que “amanhã seja outro dia”, o que nos reporta a Chico Buarque, e “O que eu quero” – como muitos, permito-me dizer como todos, é cantar esta música lindíssima de André Mingas – é “(…) Falar de amor, de carinho e de paz/(…) a vida ver sorrir/ Ver o por do sol do nosso país/ Tão lindo, tão, lindo (…)”.

    Não é a primeira vez que escrevo sobre o 27 de Maio, e talvez não seja a última… a ver vamos!

     

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    FonteO País

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