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    Como um agente duplo arrasou as secretas: a história completa

    DN | Valentina Marcelino

    Durante anos, um espião do SIS desviou documentos secretos para os mostrar, a troco de dinheiro, ao serviços de informações russos – o SVR, sucessor do mítico KGB. Um enredo a fazer lembrar a “Guerra Fria”.

    Toda a história da “Operação Top Secret” da PJ, a investigação, o flagrante em Roma, os estragos que o agente duplo português fez à espionagem nacional e na segurança da NATO foram contados pelo Tribunal de Relação de Lisboa, num acórdão a indeferir o último recurso do espião, condenado e a cumprir pena.

    Os protagonistas
    Frederico Carvalhão Gil, 60 anos. Foi detido em Roma a 31 de maio de 2016, julgado e condenado a sete anos de prisão por espionagem e corrupção. Cumpre pena em prisão domiciliária, mas depois do acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa, de 29 de maio passado, pode ir para a cadeia se forem indeferidos novos recursos.

    Funcionário dos Serviços de Informações de Segurança (SIS) desde 1987, desempenhou várias funções ao longo da carreira: coordenador de pesquisa de contra-espionagem, director de pesquisa de contra-terrorismo, analista do departamento de contra-subversão, representante do SIS na Unidade de Coordenação Antiterrorista (UCAT) e na Célula Nacional de Acompanhamento do Exercício CMX da NATO.

    Tinha formação sobre técnicas de penetração ou infiltração em serviços estrangeiros e conhecimentos sobre temas da ex-URSS e países de Leste e o funcionamento das secretas russas.

    Licenciado em Filosofia, segundo a avaliação social do tribunal é “conceituado no seu núcleo de amigos, como um homem leal, discreto e de elevado nível cultural”.

    Alegou que os encontros com o agente russo (cuja pertença às secretas de Putin garantiu desconhecer) eram apenas para tratar de negócios de venda de azeite. O sócio português que indicou, empresário beirão, morreu durante o processo. Nem em primeira instância nem neste acórdão da Relação foi dada credibilidade a esta versão, tendo em conta as provas.

    Sergei Nikolaievich Pozdnyakov, 51 anos. Agente do SVR (Sluzhba Vneshney Razvedki, Serviço Externo da Federação Russa). “Treinado para a gestão de fontes de elevado perfil, designadamente funcionários dos serviços de segurança de países estrangeiros, alvos da Federação Russa”, lê-se no acórdão, está identificado por vários serviços de informações europeus como agente do SVR.

    O Departamento de Segurança da NATO confirmou que Pozdnyakov fazia parte dos serviços de informações russos. Fala espanhol e italiano.

    Quando foi detido em Roma, com Carvalhão Gil, a embaixada russa invocou imunidade diplomática e pediu a sua libertação. As autoridades italianas recusaram, mas cerca de mês e meio depois deixaram-no regressar a Moscovo, deixando indignados a Polícia Judiciária (PJ) e o Ministério Público (MP).

    As autoridades portuguesas ainda têm activo um mandado de detenção internacional contra Nikolaievich, mas nunca se ouviram publicamente protestos, diplomáticos que fossem.

    O SVR é o serviço homólogo da CIA, responsável pela actividade de inteligência e espionagem fora da Federação Russa. O SIS “constituía um natural alvo para a realização de tentativas de infiltração nos respectivos serviços, com vista à obtenção de informações classificadas com interesse para o SVR”, refere o Tribunal.

    As autoridades portuguesas têm activo um mandado de detenção internacional contra Nikolaievich, mas nunca se ouviram protestos.

    O flagrante
    Apanhar dois espiões altamente treinados, um deles de um serviço de informações lendário (SVR – sucessor do KGB), exigiu uma preparação paciente, cirúrgica e persistente. À operação a PJ chamou “Top Secret”.

    Desde que o alerta caiu no SIS – enviado pelas secretas da Eslovénia, sob a forma de imagens fotográficas de um encontro naquele país, entre o espião português e o espião russo, em Novembro de 2015 – e os serviços de informações entregaram o caso ao MP e à PJ, a vida do agente duplo foi virada do avesso.

    Viagens passadas e correntes, contas bancárias, despesas, contactos, amigos, ligações, foram passados a pente fino pela Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo (UNCT), que o MP chamou para coadjuvar a investigação.

    Quando viajaram para Roma, no mesmo avião que viajou Carvalhão Gil, os inspectores da UNCT, o coordenador Pedro P., juntamente com Sylvie D. e Pedro C., tinham todos os indícios de que ele iria encontrar-se com o russo, mas mal sabiam que iam assistir a num histórico flagrante entre os dois espiões.

    Os investigadores tinham consigo muita informação que comprometia o agente português, como os milhares de euros recebidos, pelo menos desde 2011, extra salário – indiciando pagamentos do SVR. Só em sua casa foram apreendidos quase 40 mil euros, mas há registos de vários depósitos em numerário e durante esses anos.

    Sempre vigiado do aeroporto ao hotel, os inspectores esperaram pela oportunidade. A descrição do trajecto antes de se encontrar com Pozdnyakov é tão extensa como a quantidade de manobras de contravigilância que fez – sendo este facto considerado pelo tribunal como uma prova de que se tratava de um encontro “clandestino” e não de uma mera “reunião de negócios” para exportar azeite, como alegou.

    Nesse 21 de maio de 2016, Carvalhão Gil saiu do hotel pelas 10.30, de mochila às costas. De acordo com o relatório da equipa da UNCT, entrou no metro na estação de Termini, saiu em Pirâmide (quatro estações depois), seguindo depois a pé através de várias ruas até à Ponte Testaccio.

    Atravessou-a e percorreu cerca de dois quilómetros a pé até à Piazza Sidney Sonnino. Tinha saído do hotel há cerca de uma hora e pelas 11.30 sentou-se numa esplanada, durante cerca de 20 minutos. Depois deste tempo, levantou-se e fez todo o percurso no sentido inverso, sentando-se num bar, na esquina da Via Galvani com a Via Nicola Zabaglia – cerca de 25 minutos a pé.

    Esteve aqui até cerca das 12.15, seguindo de novo para a Ponte Testaccio, onde deambulou cerca de meia hora num mercado existente no local. A PJ registou que durante este tempo “entrou e saiu diversas vezes do mesmo local, invertendo repetidas vezes a marcha, utilizando as montras como espelho para verificar e controlar o ambiente e os transeuntes à sua volta”.

    Carvalhão Gil tinha consigo 10 mil euros em notas de 100, que tinha acabado de receber do russo – o que veio a sustentar a condenação por corrupção.

    Saiu do mercado e atravessou de novo a Ponte Testaccio, entrou na Via Bernardino Passeri, em direcção à Via Carlo Porta. Aqui estabeleceu contacto com Sergei Nikolaievich.

    Sem nunca imaginar que estavam a ser vigiados, “trocaram um cumprimento cúmplice e de entendimento e iniciaram a marcha juntos”, anotaram os inspectores. Andaram cerca de cinco minutos até ao “Number One café”, na Viale di Trastevere. Entraram e sentaram-se numa mesa, junto à entrada, do lado esquerdo.

    O russo ficou virado para a rua. Foram vistos a “conversar animadamente, tendo Frederico Gil, por diversas ocasiões, manuscrito algo em várias folhas de papel que entregou a Sergey Pozdnyakov” e este “entregou também algo” ao espião português (ver documentos secretos apanhados).

    Nesta altura, a polícia italiana, em cumprimento do mandado internacional, previamente informada pelas autoridades portuguesas, entrou no café e deteve os dois espiões, sempre acompanhada dos inspectores da PJ.

    Carvalhão Gil tinha consigo 10 mil euros em notas de 100, que tinha acabado de receber de Sergey – e que veio a sustentar a condenação por corrupção. Ao russo foram apreendidos documentos e informações que o agente português lhe tinha passado (ver documentos secretos apanhados).

    Sem imaginar que estavam a ser vigiados, “trocaram um cumprimento cúmplice e iniciaram a marcha juntos”. Os inspectores esperaram pela oportunidade.

    Antes deste encontro de Roma, a investigação portuguesa documentou um total de 35 viagens que o agente duplo português fez ao estrangeiro, 16 das quais “em que foram colhidos indícios de terem ocorrido em circunstâncias e/ou verificação de coincidências que, fazem supor, terem servido para manter contactos com elementos do SVR”.

    Marrocos, Itália, Suíça, Chipre, Eslováquia, Eslovénia, França, Áustria e República Checa foram alguns dos destinos desde 2011 – data que as autoridades indicam como início do recrutamento de Carvalhão Gil pelos russos.

    Os documentos secretos apanhados
    São 12 os documentos elencados pelos juízes do Tribunal de Relação que sustentaram a condenação de Carvalhão Gil e que a autoridades acreditam ter chegado ao conhecimento dos serviços de espionagem do Kremlin. Uns estavam na sua posse quando foi capturado em Roma, outros estavam na sua casa em Lisboa:
    1 – Planeamento do Crisis Management Exercice (CMX) 2015;
    2 – CD do Ministério da Defesa Nacional sobre o CMX de 2011, com “muitos documentos de suporte”. Os relatórios dos CMX refletem sobre as vulnerabilidades da NATO, dos Estados membros, interesses e preocupações.
    3 – Lista de contactos dos oficiais de informação do SIS;
    4 – Listagens de identificação de funcionários do SIS;
    5 – Relatório secreto sobre suspeitos radicais islâmicos;
    6 – Relatório da UCAT sobre identidade de cidadãos chechenos, de “especial interesse para as autoridades russas”;
    7 – Relatório do SIS sobre a ameaça islâmica e “metodologia de aproximação ao fenómeno terrorista”. Descreve operações em que o SIS interveio;
    8 – Relatório, produzido pela delegação regional do Porto do SIS, sobre a comunidade magrebina (oriunda de Marrocos), residente na zona norte do país;
    9 – Relatório do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para o SIS, com informações da UCAT sobre um caso designado “Santarém Hotel”;
    10 – Folha com nomes e contactos de quadros do SIS;
    11 – Memorandos internos do SIS que descrevem todos os programas de gestão documental (smartdocs) “onde se identificam fontes e entidades, proveniência da informação e de alguns conteúdos com acesso reserva do, fornecendo informação sobre fontes do SIS e assuntos ali tratados, bem como sobre toda a estrutura operacional do SIS”. A divulgação destas informações, no caso a uma agência secreta estrangeira, permite “localizar documentos e informações, bem como formas de actuação do SIS”.

    12 – Papel manuscrito com informações de um documento NATO, de Março de 2016, sobre os interesses russos no Afeganistão (Intelligence Unit Situation update Afghanistan: Russian interest in de country). Trata-se de dados de acesso limitado dentro da própria NATO, classificado como “NATO Secret Limited”.

    Foram ainda apreendidos um disco rígido e cartões de memória com vídeos e fotografias do interior da sede do SIS, onde são visíveis diversos funcionários.

    Foram ainda apreendidos um disco rígido e cartões de memória com vídeos e fotografias do interior da sede do SIS, onde são visíveis diversos funcionários.

    Carvalhão Gil tinha consigo uma folha sobre o Afeganistão e entregou ao espião russo outro papel com informações sobre atual número dois do SIS, suscetíveis de poderem ser usadas para provocar “vigilâncias e eventuais pressões”. Inclui também informações sobre o ex-director do SIS e sobre o ex-ministro da Administração Interna, Dias Loureiro.

    Os estragos nas secretas portuguesas
    Ninguém melhor do que o próprio director-geral do SIS para descrever o impacto que a descoberta da toupeira e o desvio de documentos secretos tiveram nos serviços. As suas declarações, assumindo a gravidade dos estragos provocados, foram ditas em julgamento, à porta fechada.

    O acórdão da Relação sintetiza-as: “Relatou os danos ocasionados nos serviços do SIS, a ameaça à segurança das próprias pessoas, no caso de serem reveladas questões referentes à identidade das que trabalham ou desempenham funções no SIS. “.Por outro lado, a entrega de elementos de identificação de funcionários do SIS a serviços como o SVR dão-lhe acesso à estrutura e aos responsáveis, quer as matérias que trabalham, que os transformam num alvo de abordagem e podem ser alvo de pressão e de investidas para serem recrutados para estes serviços”.

    Neiva da Cruz disse que “com o caso em concreto tiveram de efectuar investimentos na mudança de sistemas de comunicações telemóveis e matrículas de viaturas”. Internamente, sublinhou, situações como esta “causam dano moral na coesão dos próprios serviços”.

    Um relatório do SIS entregue aos juízes diz, “quanto aos danos”, que a “relação clandestina” de Carvalhão Gil e de Sergey Nikolaievich Pozdnyakov “pôs em perigo interesses fundamentais do Estado português”.

    Passou ao SVR informação “cuja divulgação possa facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado, em particular no domínio da Segurança Interna, através da prossecução de actividades de espionagem, corrupção e subversão”.

    Passou ao SVR informação “cuja divulgação possa facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado, em particular no domínio da Segurança Interna, através da prossecução de actividades de espionagem, corrupção e subversão”.

    Divulgou documentos “sobre matérias que visam prevenir e assegurar a operacionalidade e a segurança pessoal, dos equipamentos, do material e das instalações dos órgãos do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), em especial do SIS”.

    Transmitiu dados “sobre matérias que visam proteger a actividade operacional do SIS com os seus congéneres estrangeiros”.

    Salientam as secretas nacionais que “a constatação de que, durante anos, um de entre os seus pares explorou relações de confiança e espírito de corpo prevalecente em toda a cadeia hierárquica do SIS, com a finalidade de trair o seu país, afectou profundamente todo o pessoal do SIS (…) Acrescem os efeitos decorrentes da noção de violação de identidade dos funcionários do SIS, em prol dos interesses de um serviço estrangeiro que prossegue finalidades adversas à missão dos órgãos do SIRP”.

    Os estragos na NATO
    O gabinete de Segurança da NATO deixou claro, numa resposta ao tribunal, o impacto da acção do agente duplo, designadamente quanto à passagem para o SVR dos documentos classificados NATO ou do conteúdo neles descrito.

    “A passagem deste material para um serviço de informações hostil resultaria em danos graves para a Aliança da NATO”, é escrito. “Consideramos que se Carvalhão Gil tiver passado aos serviços de informações russos apenas uma pequena parte da informação classificada NATO a que teve acesso, tal representaria uma violação muito grave à segurança da NATO e causaria graves danos à Aliança e aos seus aliados”, acrescenta ainda este relatório citado no acórdão.

    “A passagem deste material para um serviço de informações hostil resultaria em danos graves para a Aliança da NATO”,

    A NATO sublinha que “a participação de Carvalhão Gil nos Exercícios de Gestão de Crise (CMX) pode ter sido mais prejudicial do que o material classificado que possa ter passado aos serviços de informações russos. Dado que pode comprometer os planos de resposta da NATO e é especialmente perigoso para a Aliança”.

    E o que viu o espião português nestes exercícios? Teve acesso “a dados sensíveis, além de uma panorâmica geral privilegiada de como a NATO responderia a várias situações de crise. Em particular, terá estado em condições de compreender e explicar a posição do Conselho do Atlântico Norte em caso dessas emergências e, através do relatório pós-exercício, poderia ter exposto as posições e as vulnerabilidades de determinadas nações aliadas que nestes participaram. (…) Podia relatar pormenorizadamente a maioria dos planos de contingência da NATO. (…) Estaria em condições de explorar procedimentos e tácticas de defesa colectivas, nomeadamente no caso de um país Membro ser atacado por um agressor”.

    Cronologia
    Novembro de 2015: Carvalhão Gil é filmado pelas secretas da Eslovénia num encontro com o espião do SVR naquele país. As imagens foram passadas ao SIS, que as entregou ao Ministério Público para investigação. Neste encontro ficou registada pelas autoridades a entrega de uma pendrive ao agente russo e o recebimento de 21 mil euros.

    Maio de 2016: O espião português é detido em Roma, num encontro com o agente russo.

    Junho de 2016: Depois de ouvido pelo juiz Ivo Rosa, Carvalhão Gil fica em prisão preventiva, em regime domiciliário.

    Junho de 2017: O MP deduz acusação contra Carvalhão Gil e Sergey Pozdnyakov por crimes de espionagem, violação de segredo de Estado e corrupção activa e passiva agravados. Segundo o MP “o arguido funcionário do SIS foi recrutado pelo SVR para, a troco de quantias em dinheiro, prestar informações cobertas pelo segredo de Estado a que acedia em razão das suas funções”. O MP já tinha apurado “a realização de três encontros”.

    Fevereiro de 2018: Carvalhão Gil é condenado a sete anos e quatro meses de prisão efectiva pelo Tribunal Criminal de Lisboa, pelos crimes de espionagem e corrupção passiva para ato ilícito. Fica em prisão domiciliária com pulseira electrónica.

    Maio de 2019: A Relação de Lisboa indefere um recurso do espião, mantendo a condenação e concordando com a avaliação feita em 1.ª instância, descrevendo os vários momentos da investigação, operação e danos causados às organizações nacionais e internacionais.

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