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    Avanço literário de Isaquiel Cory

    Li de um só fôlego o segundo romance de Isaquiel Cori, que busca captar o real vivido dos últimos dez a 20 anos, fazendo apelo à sua prodigiosa imaginação, que deixa adivinhar outras propostas estético-literárias, não menos conseguidas no futuro e com cada vez mais pujança criativa.
    O “Último Recuo” de Isaquiel Cory é um autêntico avanço, é a ultrapassagem do “savoir faire” literário aos neófitos que se abalançam no nosso indigente mercado literário, mesmo sem fôlego qualitativo para tanto, refugiando-se na má poesia de que o inferno anda cheio.  “Uma boa causa não faz um bom poeta”, já dizia o Mário Quintana, pedagogicamente. Mas isso é outra estória a merecer consideração.
    Grosso modo, o romance  em questão deixa escapar a ideia de um livro bem pensado e melhor elaborado, do ponto da realização estética, quanto mais não seja pela eficácia comunicativa, com o narrador e diálogos bem articulados, com uma linguagem bem cuidada, esmerando conforme já nos habituara nos contos de “O Último Feiticeiro”. No “Último Recuo”, capta-se a percepção do autor em relação a um período conturbado de um país imaginário, vivendo uma fase derradeira do conflito e a do imediato pós-conflito, quanto mais não seja pelo facto de o autor fazer apelo a um tema que ainda está bem fresco nas nossas memórias – a guerra civil, as suas consequências trágicas e o fel das traições e o mel da coerência e da verticalidade – diatribes que se foram tecendo mesmo entre personagens situadas no mesmo lado da barricada e que, na visão do autor, também contribuiram para o arrastar da trama fixada, durante largos e largos anos.
    A prova disso é o martírio por que passou João Segura, o protagonista, na iminência de tomar de assalto o estado-maior da insurreição armada, dirigida pelo Malaiko, uma das personagens pícaras do seu romance. Tal momento ficcional pode prejudicar o texto em termos de abstracção da realidade neste pormenor em concreto, o que não afecta a grandeza da obra, em todo horizonte, sendo nota negativa em termos do imediatismo da mensagem, facilmente identificável e que se confunde com o herói negativo de “carne e osso”. Tirando isso, o texto que Cori pinça, disseca a realidade que busca “retratar”, com o bisturi do “cirurgião”, feito observador judicioso, que procura detectar as entranhas de uma envolvente social dramática e virulenta.

    Temas recorrentes


    Além do núcleo temático da guerra civil, Cori resgata temas que lhe são caros, a si relacionados. Daí o rasgo biográfico, quando trata de um desmobilizado das extintas FAPLA e temas como a desmobilização, o desemprego, o mercado informal, a prostituição, o alcoolismo, já recorrentes em obras anteriores, como o livro de contos.
    O drama de Segura ocorre quando se apresta a retomar de assalto um quartel onde estava reunido o chefe insurrecto Malaiko. A sua unidade é bombardeada pela aviação lealista, deixando implicadas cumplicidades nas hostes da chefia da região com o inimigo, na zona operacional em que está baseado como comandante de uma Unidade –  a célebre Unidade X – que fragilizada por trás e desbaratada, quase acabou dizimada pela tropa inimiga.
    Paradoxalmente, Segura é detido e enviado para Calú, esta capital do país imaginário da trama romanesca. Finda a detenção, nunca justificada e sem direito a defesa, foi após dois anos de solidão, acrescido da perca do amor da sua vida, Rosamaria. É libertado sem que fosse julgado, não lhe tendo sido movida qualquer acusação formal, e beneficia, depois, de uma amnistia geral. Segura conhece a liberdade, dividido entre ser militar e civil. Aposta na condição de desmobilização compulsiva. O seu poiso imediato é o mercado informal, como a maior parte dos demais desempregados criados pelo do fratricídio. O kaporroto das adegas mais inóspitas, o ambiente pútrido dos prostíbulos, como daquela que virá a ser a sua futura mulher, Ricarda, depois de a primeira o ter abandonado, quando caiu em desgraça, rumando com o patrão para o exterior, com a promessa de não mais voltar, circunstância que agrava o seu estado mental na cadeia e o arrasa psicologicamente.
    São rasgos do percurso de andarilho do antigo tenente-coronel, antes  detentor de um estatuto social privilegiado.
    Mas a liberdade volta a brilhar para Segura quando cruza com o seu ex-companheiro de armas, Manecas Ladeira, professor que, com a sua influência real e espiritual de sindicalista e docente, lhe consegue uma cunha para professor do ensino médio na escola em que leccionava.
    A descrição narrativa dá-nos conta , por essa via, da abordagem da questão da integração social e mesmo psicológica do desmobilizado na vida socioeconómica da comunidade em que se acha (pretensamente) inserido.

    Grelha comportamental

    De volta à vida civil, deixando a de roboteiro e passando a do professor que já era no passado, Segura serve de exemplo ao resgate de uma vida digna após muito sofrimento, de tanta carência material e vazio espiritual. Retira-se do bairro onde abundam as adegas e os prostíbulos e vai com uma das donas deste submundo para um bairro geográfica e socialmente melhor, em termos do acesso a transportes, saneamento e mercado formal, lojas onde já compra vinho e chouriço, em vez do caporroto e kimbonbo reinante na periferia urbana, que fazia o seu dia-a-dia na cidade, quando mergulhado na miséria depois de cumprir uma pena para a qual não fora condenado.
    Outras personagens atravessam o romance pinçado por Isaquiel Cori, como os antagonistas Matuba Grande, o seu imediato superior hierárquico na zona militar em que estava colocado antes da prisão, e o comandante regional, o próprio Imotep, que curou de enviá-lo para Calú, a capital, sob a acusação de indisciplina militar por incumprimento de ordens superiores. Os seus dois amores acrescem à carência e à constância dos ciclos vicioso e virtuoso da estrutura humana: a primeira esposa, a sua “sempre amada”, que o abandonou quando detido depois da desavença na cela aos olhos do carcereiro, Rosamaria;  a segunda, Ricarda, a mulher que viria a dar-lhe o filho da sua vida. Em cada um desses ciclos da grelha comportamental encaixa-se Raimundo, o “guia”, bufo pestilento, que tratava de torturá-lo mentalmente na prisão, nas despropositadas visitas para perturbá-lo, e o general Sempre em Frente, antigo “velho maquisard” postergado pela nova vaga, que numa lição de humanidade, entre traições e paixões mal dissimuladas, estende-lhe a mão quando pede para falar com ele na unidade em que era o chefe, cargo de que foi apeado quando descoberta a atenção que dispensava ao tenente-coronel Segura. “Então, TC Segura, finalmente acordado? Sou o general Sempre em Frente e invadi os seus aposentos, ironizou simpático. – A que devo o prazer da sua visita, general? Em que o posso servir?, ironizou Segura com o mesmo tom humorístico do general. – Nada de mais. Sentia-me só, depois do trabalho e resolvi visitar tão ilustre hóspede, o homem de quem se fala. Ah, só posto aqui lembrei-me do recado que me fizeste chegar.”  Cordato, o general fez-se acompanhar de alguma bebida para consolar o “recluso”, que estava perdido em devaneios que a solidão do cárcere deixava adivinhar. Não será de estranhar que a dado passo do texto o narrador deixa escapar que a personagem principal “quase atingia a perda da lucidez”.
    Um dado a reter também são distintos “momentos felizes”, como diria Ledo Ivo, ao longo da descrição do ambiente, comportamentos e objectos que enformam a estória, como na página 124, aumentando o “suspens” em torno da obra, como o episódio onde um dos seus algozes aparece na crista do vencedores da guerra, resgatando a situação/acção do clímax (quando é detido no interior). Justamente revive-se o ponto do clímax da intriga: “João Segura quis dizer mais qualquer coisa mas as palavras faleceram-lhe na garganta.” O trabalho da linguagem é notório : “Os seus olhos espantados viam no écran, sem tirar nem pôr, o gordo comandante Imotep, à conversa com o Chefe do EMG. Tinha uma postura rígida esforçadamente protocolar. Os seus gestos eram lentos e estudados, próprios de quem sabe que está a ser alvo das atenções”, observando-se uma mudança abrupta no comportamento do protagonista:  “O tom de  alegria esmoreceu no rosto de Segura e foi dando lugar a um sentimento de melancolia (mesmo de raiva contida pela identificação do seu verdugo). Nem tudo estava dito sobre a guerra, ou melhor, sobre o fim da guerra. De repente Segura viu quem eram os verdadeiros vencedores daquela longa guerra. A obra estava feita e acabada. Chegaria finalmente a hora do banquete.”  Tal cenário patético é entrecortado com um brinde entre Segura e o seu amigo, Manecas Ladeira, o professor, sindicalista empenhado na causa dos docentes, com a prossecução da cerimónia oficial, acompanhada via TV. “Lá brindaram(…) Assinaram-se os acordos. Vieram os discursos. E os abraços oficiais… e históricos. Mais sorrisos e mais abraços. Muitos aplausos: o negócio da paz estava fechado”.

    Ultimato da trama

    Um dos momentos não menos dramático da trama é a altura em que Segura é abandonado por Rosamaria e que lhe escreve uma carta, nos seguintes termos: “Reconheço que contigo vivi alguns dos mais importantes momentos da minha existência. Fizeste-me mulher. Mas também te fiz homem. Cheguei a amar-te mais do que a mim mesma. Isso acabou. As tuas ausências constantes cada vez mais deixavam um vazio em mim, no amor que tinha por ti. Mas o que tudo precipitou foi a tua degenerescência, a tua falta de confiança em ti mesmo. Os teus ciúmes, até então injustificados, empurram-me para os braços de um pretendente que sempre se mostrou atencioso e persistente. Trata-se, coincidentemente, do meu patrão.”
    A sua antiga cara-metade, que sempre o apoiou nos momentos difíceis, não podia ter sido mais arrasadora, para quem estava já deprimido na cadeia. A perda da lucidez era quase um facto incontornável, com o recado intempestivo do fim do fogo da paixão que consumia o casal. A cara-metade estava no regaço de alguém abastado, ante a obsessão pelos bens materiais, enquanto ele se contorcia na maior indigência do mundo, agravada com a venda da casa. E conclui a vingativa que não perdoou a ousadia do marido ao investir contra si uma bofetada:  “Decidimos viver fora do país. Ele liquidou o seu negócio e eu vendi a nossa casa, que, como bem sabes, estava em meu nome. Estou decidida a não permitir que nos voltemos a encontrar por esta vida a fora. Tudo acabou. Tudo entre nós morreu. Desejo que suportes da melhor forma  o teu calvário. É a vida. Esqueça-me.”
    Dado o ultimato, no fundo, tudo estava tramado na feliz urdidura da ardilosa teia ficcional de Cori.
    Outro tanto poderia ser dito sobre este romance entre a guerra, o ódio, o amor e golpes baixos que deve merecer a atenção dos leitores, sobretudo aqueles que apreciam a força inovadora da ficção narrativa angolana, cultivada pela nova vaga de escritores angolanos, quer emergiou entre os anos 80 e 90, grupo literário onde se acha o autor.

    Fonte: Jornal de Angola

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