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    Optimismo, uma questão de sobrevivência

    O ano horribilis que nos calhou está prestes a terminar. Mais ou menos surpreendentemente, despede-se com alguns sinais promissores, entre os quais destaco a possibilidade de vacinação contra a Covid-19; a derrota de Trump nos Estados Unidos;

    o início da retomada económica da China, país onde surgiu a pandemia que paralisou o mundo (queridos “ideólogos” anti-Pequim: já imaginaram se as duas principais potências económicas mundiais estivessem em recessão ao mesmo tempo?); a lenta, mas inspiradora democratização de África; e a nova ascensão das forças progressivas na América Latina, promovendo o reequilíbrio político da região.

    Problemas há demais. Começo por três factos genéricos:o renascimento e fortalecimento, em todo o lado, do pensamento retrógrado e divisionista, etnocêntrico do ponto de vista de identidade (o que é diferente de ser simplesmente identitário), racista, supremacista, negacionista e anti-ciência, erradamente apelidado de “populismo”; o crescendo da violência policial em inúmeras nações, autoritárias e democráticas; a dificuldade de estabelecer um ponto de equilíbrio entre liberdades individuais e salvaguarda do bem estar público.

    Mudando de perspectiva, outro problema é a indefinição política do Brasil, o principal país da América Latina (e da língua portuguesa), onde as forças do atraso mantêm uma certa resiliência, o que, entre outras consequências, cancelou (para usar um verbo na moda) o protagonismo internacional que o país tinha alcançado entre o fim do século passado e início do actual; e, no que diz respeito a uma área que me interessa em particular, o continente africano, a região que, em conjunto, mais crescia antes da pandemia, está por avaliar o impacto negativo que a Covid-19 terá sobre esse crescimento.

    Quando a doença surgiu e a humanidade, aflita, percebeu que ela tocava tendencialmente a todos e, mais do que isso, que os estados teriam de desempenhar um papel crucial para contê-la, lembro-me de ter dado umas boas risadas quando vi, um pouco por todo o lado, liberais económicos “de carteirinha”, como dizem os brasileiros, reclamarem por serviços de saúde pública mais eficientes, sem esquecer, claro, o providencial auxílio às suas empresas.

    Nessa altura, alguns apressaram-se a decretar o fim do neoliberalismo e a “entronização” da democracia, a prever a reconciliação do homem com a natureza e a jurar que uma nova aurora iria nascer, baseada na frugalidade, na solidariedade e na fraternidade.

    Chegados ao fim do ano, está claro que, pelo menos a curto prazo, isso não vai suceder. Seja como for, e feito o balanço sumário dos acontecimentos deste ano, na frente sanitária, política, cultural e económica, podemos extrair algumas constatações acerca do percurso que nos trouxe até aqui, o que pode ajudar-nos, espero, a corrigir alguns erros e equívocos.A constatação mais óbvia é a impreparação da humanidade, ocupada com a busca incessante de resultados, seja no plano dos indivíduos seja no plano das instituições e dos países, para enfrentar catástrofes perfeitamente previsíveis.

    Outra, a crença, dominante até agora, de que a democracia pode ser dada como garantida, quando, afinal, ela pode ser destruída por mecanismos perfeitamente democráticos. Ficou igualmente clara, penso, a possibilidade real e efectiva de diferenças culturais, que, afinal, definem os homens desde os primórdios, poderem ser transformadas em conflitos violentos.

    A principal constatação, entretanto, é o profundo equívoco da visão tecno-financeira do desenvolvimento, que, nas últimas quatro décadas, tem aprofundado a separação entre homem e natureza iniciada com Aristóteles, arriscando-se a esgotar o próprio planeta.
    Reverter tudo isso não é fácil.

    Por exemplo, serão as nações capazes de libertar-se da visão reducionista de desenvolvimento, incorporando o ambiente e a cultura nas suas estratégias? Além disso, terão elas interesse em desenvolver e implantar estratégias de desenvolvimento socialmente solidárias, articulando os interesses dos diferentes grupos? E isso é possível ou mera utopia “revisionista”?

    De igual modo, os países estão a prontos a substituir o confronto pela cooperação no plano internacional? As economias mais ricas abdicarão das suas práticas imperialistas (sim, sem aspas)? A humanidade está pronta, genuinamente, a defender a democracia, onde quer que seja?

    “Só sei que nada sei”, diria o filósofo. Mas, por opção pessoal, insisto em ser “realisticamente optimista”. É uma questão de sobrevivência. A alternativa é demasiado depressiva e sombria.

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