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    Mexicano cria banho que recupera fisionomia de defuntos

    Alejandro Hernández Cárdenas pegou uma cabeça decomposta e que parecia estar queimada e cinco mãos rígidas e inchadas e, com cuidado, as mergulhou na sua solução secreta. Depois de passarem três dias de molho, diz ele, quaisquer cicatrizes, lesões ou sinais de nascença que as vítimas podem ter tido vão reaparecer.

    Foi o que aconteceu. A cabeça pútrida recuperou a aparência humana, com lábios cheios, poros grandes e uma contusão enorme na testa. As mãos tinham recuperado as impressões digitais, possibilitando a identificação.

    “A ciência avança sempre que há situações difíceis”, disse Hernández Cárdenas.

    Os detalhes revelados podem não levar a uma condenação, ou nem à prisão de qualquer suspeito, mas Hernández Cárdenas, odontologista forense que trabalha no Laboratório de Ciência Forense de Ciudad Juárez, conquistou um status de astro que só poderia ser produzido numa cidade como esta, com o seu clima semidesértico, índice de homicídios altíssimo, criatividade de região fronteiriça e espírito independente. Hernández Cárdenas desenvolveu a técnica de reidratação, que utiliza principalmente com corpos inteiros, mais ou menos sozinho. Ele chega a pagar parte do custo das substâncias químicas que fazem o relógio voltar atrás para os seus “pacientes” defuntos.

    Não é de hoje que especialistas forenses utilizam injecções de glicerina para reconstituir dedos, visando obter impressões digitais, mas o processo não é prático para corpos inteiros -especialmente não no calor sufocante de Ciudad Juárez, onde os corpos se decompõem e mumificam rapidamente. Apenas através da reidratação um cadáver pode recuperar parte da sua condição original, ajudando a polícia no seu trabalho ao revelar lesões sofridas e fazer os órgãos internos voltar quase para o estado em que se encontravam no momento da morte.

    Na maioria dos dias Hernández-Cárdenas pode ser encontrado no laboratório de Ciudad Juárez, reidratando alguns dos cadáveres armazenados ou sepultados sem ser identificados entre 2009 e 2011, no auge da violência entre organizações criminosas rivais nesta cidade de fronteira. Com quase 8.000 pessoas assassinadas nesse período, ele sempre tem muito o que fazer, e o seu processo tende a incluir tanto música quanto humor negro.

    FALANDO COM OS MORTOS

    Ele diz que conversa com os cadáveres, consolando-os enquanto trabalha e confortando-os com música romântica enquanto boiam na “jacuzzi”, a banheira com substâncias químicas que ele usa para a reidratação. Se os traços individuais que reaparecem no rosto de uma vítima parecerem ameaçadores, as baladas dão lugar a rap e hip-hop. O laboratório é impecavelmente limpo, mas cheira mal.

    Hernández-Cárdenas, 55 anos, concentra-se principalmente em ajudar a reidratar centenas de cadáveres na sua cidade natal, especialmente os de mulheres, para que possam ser identificados e os assassinos possam ser localizados. “Seria um pecado não fazê-lo”, opinou, dizendo que o seu trabalho às vezes o obriga a passar a noite acordado.

    Muitas vezes se sentiu frustrado com o facto de não ser feita justiça pelas pessoas cuja morte ele acaba por ficar conhecendo intimamente. Dos cerca de 150 cadáveres que ele já reidratou até agora, apenas alguns poucos renderam pistas que levaram à prisão de suspeitos.

    Casualmente, Hernández-Cárdenas revela que evita acompanhar os casos na justiça para saber se a polícia identificou os cadáveres sobre os quais trabalha. Ele teme ser perseguido por criminosos ou autoridades corruptas. “Quem sabe menos, vive mais”, ele explicou. “A gente não confia nem mesmo nas autoridades.”

    O maior apoio ao seu trabalho vem dos familiares de desaparecidos, que enxergam nas suas soluções químicas a possibilidade de ter uma definição quanto ao que aconteceu, para que possam concluir o luto. Especialistas, segundo os quais Ciudad Juárez é o único lugar onde a técnica já foi empregada, tendem a discutir o seu trabalho em termos mais científicos. Hernández-Cárdenas já deu entrada num pedido de registo de patente, que deve ser aprovada ainda este mês.

    “Se a eficácia do seu método for comprovada, será um avanço espantoso”, opinou Elizabeth Gardner, professora de ciência forense na Universidade do Alabama em Birmingham, que testemunhou o processo do odontologista.

    Ex-boxeador, Hernández-Cárdenas nunca teve a intenção de trabalhar com ciência forense. Casado aos 17 anos e, pouco depois, pai de três filhos, ele lutou para concluir a faculdade.

    À noite ele trabalhava como motorista de ambulâncias da Cruz Vermelha, um trabalho adicional que acabou por definir o seu destino. Numa noite de 1977, ele levou ao necrotério 28 corpos de pessoas mortas numa explosão. A equipa forense pediu-o para inspeccionar as bocas dos mortos para assinalar traços que os identificassem. Foi um desafio fascinante para ele, que se descreve como obsessivo.

    Hernández-Cárdenas continuou a dividir o seu tempo entre as próteses dentárias dos seus pacientes idosos (ele ainda atende pacientes) e o trabalho para a Cruz Vermelha, até fazer uma descoberta no laboratório forense, em 2002. Ele foi encarregado de analisar os dentes dos cadáveres para determinar a idade dos mortos. Foi então que uma pergunta que o atormentava havia anos começou a consumir o seu tempo: a reidratação das pontas dos dedos empregada por cientistas forenses em todo o mundo poderia ser aplicada a corpos inteiros?

    De repente, ele contou, “eu dispunha do material, do tempo e da autorização” para fazer experimentos. Ele começou com dedos e orelhas disponíveis no laboratório forense da cidade, colocando-os em vidros – “eu vivia a comer papinhas prontas para bebês”, conta -, modificando levemente as proporções das substâncias químicas a cada vez e aguentando as brincadeiras dos seus colegas.

    DEDO INTACTO

    Um dia ele chegou ao laboratório e descobriu um dedo perfeitamente intacto num dos vidros. “Pensei que os meus colegas tinham feito uma brincadeira comigo”, disse. Mas a reacção deles o assustou. “Não mexemos com a sua imundície”, disseram a Hernández-Cárdenas.

    Em 2008 conseguiu reidratar correctamente o seu primeiro corpo inteiro. Com isso, tornou-se quase uma celebridade entre os moradores de Ciudad Juárez e nos círculos de ciência forense do país.

    Carlos Reynosa, coordenador do programa de mestrado em ciência forense da Universidade Autônoma de Ciudad Juárez, disse: “Ele é muitíssimo procurado”. Membros do consulado americano e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) já perguntaram sobre e observaram o método de Hernández Cárdenas.

    Infelizmente, disse ele, autoridades e acadêmicos não são os únicos que se interessam pelos seus métodos.

    Agora divorciado, Hernández Cárdenas disse que a sua reputação esdrúxula o segue em toda parte em Ciudad Juárez. Quando ele convida mulheres para o jantar, elas frequentemente lhe perguntam sobre o seu trabalho, querendo saber detalhes que ele se nega a divulgar. “Acho que não é um assunto apropriado para se falar com uma dama.”

    Por KARLA ZABLUDOVSKY, DO “NEW YORK TIMES”

    Fonte: RM

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