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    Guilherme Galiano: ‘Sou um homem da rádio emprestado à televisão’

    Guilherme Galiano. (Foto: D.R.)
    Guilherme Galiano.
    (Foto: D.R.)

    É hoje uma referência da televisão angolana, mas foi «uma figura pública precoce» na rádio em Portugal. Esteve na rádio Comercial, foi um dos fundadores da RDP África e, de volta à sua Angola natal, é actualmente director de projectos especiais da TV Zimbo. Neste canal, regressa agora ao pequeno ecrã para ajudar a contar a história do seu país, com o novo programa Memórias da Independência

    Como encara a sua presença no ecrã de televisão? Já lhe é indiferente?

    Sinceramente é. Sou um homem de comunicação e se puder falar e ser ouvido já me sinto realizado e feliz.

    Prefere a rádio ou a televisão?

    Prefiro a rádio. Sou um homem da rádio emprestado, com muito gosto e todo o prazer, à televisão. Mas, definitivamente, sou um homem da rádio.

    Como nasceu a ideia deste novo programa Memórias da Independência? 

    Surgiu durante uma reunião de direcção. Acabei por ser indigitado pelos meus colegas para dar corpo ao projecto e fazer as entrevistas.

    Foi feito algum trabalho de investigação? Alguns trabalhos de recolha de imagem para integrarem o programa?

    A ideia é, fundamentalmente, o depoimento de nomes ligados à independência de Angola. Diria que é mais um programa de rádio na televisão. É claro que vamos ilustrar com documentos, fotografias e imagens, relativas aos momentos relatados pelas 40 personalidades para assinalar estes 40 anos de independência.

    Personalidades de todos os quadrantes?

    Sim, de todos os quadrantes políticos e sociais. Acima de tudo nacionalistas que, de um modo ou de outro, quer na clandestinidade quer na luta armada, tenham contribuído para a causa da independência. Esta é a ideia. E que se pronunciem na primeira pessoa não só sobre o que foi essa luta mas, acima de tudo, fazendo referência ao seu percurso e à sua história: onde nasceram, as  raízes familiares, como despertaram para o nacionalismo, se integraram células clandestinas, como conseguiram fugir do país, etc.

    Mas para tudo isso é necessário algum trabalho de pesquisa…

    Bem, tenho alguma sorte no sentido de que, desde miúdo, também fui, entre muitas aspas, um participante neste processo. O 25 de Abril de 1974 dá-se quando eu tinha 14 anos e era aluno do Liceu Nacional Salvador Correia de Sá e Benevides, portanto ali também despertei para o fenómeno do nacionalismo. Mas não posso esquecer que um pouco antes, no Lobito, em 1972, se não estou em erro, vejo chegar um nacionalista que havia sido detido pela PIDE-DGS, Benigno Vieira Lopes, o agora general ‘Ingo’. Depois de liberto, foi colocado com residência fixa no Lobito e como era amigo do meu pai, já que cresceram juntos, tínhamos com ele uma relação muito próxima, ia muitas vezes a nossa casa. Mas como era uma figura que tinha sido presa, era uma pessoa de quem muito se falava, então numa cidade pequena como era o Lobito. Ainda me lembro de ouvir os meus amigos do bairro dizerem que o ‘Lhe Lhé’, diminutivo pelo qual eu era conhecido em família e pelos mais próximos, é amigo do terrorista, do ‘turra’ como se dizia naquele tempo. Tive, então, de abordar os meus pais sobre a questão e eles, de um modo muito ténue, lá me foram explicando as razões do ‘Ingo’ e para eu não dar muita importância ao assunto. No fundo, isso ajudou-me a ter uma percepção dos fenómenos nacionalistas naquela época, que me foram ajudando a sustentar essa preocupação de saber quem era quem.

    Lobito, nessa altura, ainda era uma pequena localidade. Como era viver lá nesse tempo?

    Comecei por viver no bairro do Compão. Depois, os meus pais conseguiram construir uma pequena casinha no bairro Académico e que ainda hoje é nossa. Vivi sempre tranquilo, éramos uma pequena família de quatro pessoas, com os meus pais, eu e a minha irmã mais nova dois anos e meio. O meu pai era controlador de tráfego aéreo e radiotelegrafista no aeródromo do Lobito, já a minha mãe era funcionária da Alfândega. Morávamos num bairro onde a comunidade negra, os autóctones, não era a maioria. Percebi aí que apesar de não haver uma discriminação efectivamente muito forte, tínhamos uma condição diferenciada. Primeiro porque éramos uma minoria dentro de um contexto maioritário nacional. Éramos cerca de quatro a cinco famílias negras no bairro. E havia uma grande dificuldade de afirmação, de mostrarmos que éramos iguais. Fui crescendo, assim, assistindo a situações que não eram justas e que, por isso, valia a pena lutar pela nossa afirmação, pela imposição de respeito e também pela afirmação pessoal.

    Mas como era essa vivência na pequena Lobito?

    Lobito não tinha muita gente, mas era muito cosmopolita. Na época, tinha o maior porto marítimo da costa ocidental de África e ali atracavam barcos com gentes de todas as origens que transportavam consigo a sua cultura, o seu modo de estar, e faziam incidir isso sobre a cidade. Tal como acontece noutros portos marítimos.

    Porque se dá a sua mudança para Luanda?

    Os meus pais eram funcionários públicos e passavam a vida a ser transferidos. Nasci em Benguela no dia 28 de Setembro de 1960 – quando o meu pai ainda era funcionário dos Correios, só mais tarde é que concorreu e integrou os serviços da Aeronáutica Civil -, e no dia 4 de Fevereiro de 1961 já estava a residir em Luanda, na Avenida Serpa Pinto. Portanto, saí de Benguela com pouco mais de dois meses e vivi em Luanda de 1961 a 1963. A minha única irmã já nasceu em Luanda. Depois fomos novamente transferidos para o Lobito, onde ficámos até 1972, altura em que regressámos a Luanda. Enfim, aqui está um bom exemplo do modo como o processo colonial interferia na relação com os autóctones. Ou seja, quando não tinha outros meios para condicionar as pessoas ou levá-las a tribunal ou para a prisão por participação no processo do nacionalismo, não as deixava fixarem-se e consolidarem relação com as gentes da terra. Portanto, de 1963 até 1972, os meus pais fizeram um esforço titânico para construir uma pequena casa porque acreditavam poderem estabelecer-se definitivamente no Lobito, mas assim que ficou concluída foram transferidos de novo para Luanda. E foi preciso começar tudo do zero… Foi de uma violência atroz.

    Quando e porquê foi para Portugal? 

    Fui no dia 10 de Dezembro de 1981.

    Estava com que idade?

    21 anos.
    Fazer o quê?

    [risos] Saio de Angola, objectivamente, porque fui vítima de agressão por parte de uma figura pública, por ter ultrapassado o seu carro.

    Agredido fisicamente? Mas por quem?

    Não vale a pena recordar o nome, pois a pessoa já não está viva. Era de noite e ultrapassei um carro sem saber quem lá estava dentro e logo a seguir esse mesmo veículo faz questão de me ultrapassar – não era essa pessoa que ia a conduzir, eram uns tropas – e assim que o fazem começam a trancar-me. Até pensei que fosse uma brincadeira de alguns amigos. Quando saí do carro para saber de quem se tratava, noite escura, ouvi um indivíduo a perguntar-me se não o conhecia e como não consegui identificá-lo, deu-me uma bofetada. Logo a seguir perguntou-me o que fazia, ao que respondo que era estudante. ‘Estudante e com carro?!’, reagiu, e logo de pronto atirou-me outra bofetada, mas como consegui travar o acto, ele começou a gritar: ‘Ai que ele me quer partir o braço’. A partir daí, os tropas que estavam com ele caíram-me em cima e fui violentamente agredido. Este caso acabou por ser muito badalado em Luanda. Ele acabou por enviar-me um dos seus emissários para me avisarem que se a história não acabasse então daria mesmo cabo de mim. Quem acabou por interceder por mim foi o actual general Hélder Cruz, um dos responsáveis pela desminagem no país. Entretanto, instalou-se o pânico no seio da minha família e chegou-se à conclusão que a única solução era eu ir para fora. E foi assim que fui para Portugal.

    Sem saber o que ia fazer?

    A ideia era dar continuidade aos estudos.

    Tinha familiares em Portugal?

    Tinha o padrinho da minha irmã e alguns primos, mas tudo gente sem posses. A minha vida mudou muito aí. Aprendi a sustentar-me. Os primeiros anos foram muito difíceis, a morar em quartos alugados. Um deles, onde estive quase dois anos, nem janelas tinha, ficava na Morais Soares, na zona da Praça do Chile, em Lisboa. Mas não perdi a ideia dos estudos, fiz o 12.º ano lá e depois consegui entrar para a Faculdade de Direito, completamente sem meios, nem dinheiro tinha para comprar os livros. Mas lá consegui integrar-me na vida social portuguesa e isso ajudou a que voltasse a jogar basquetebol pela equipa do Instituto Superior Técnico, depois de ter treinado no Benfica. Na faculdade acabei também por integrar um projecto da Associação Académica de Lisboa que previa a criação de uma rádio, a Rádio Universidade Tejo (RUT), da qual sou um dos fundadores. Foi o meu primeiro passo neste mundo da comunicação. O programa chamava-se A Voz do Kilimanjaro. Trabalhei na RUT uns dois, três anos, até que um dia tive a sorte de me cruzar com um antigo professor do liceu aqui em Angola, que não só ouvia o meu programa como era director na Rádio Comercial, o Jorge Gonçalves. Quando se apercebeu que era eu a voz do programa que ele ouvia, ficou eufórico e convidou-me para ir trabalhar consigo. Estávamos, salvo erro, em 1986.

    E foi assim que o curso de Direito ficou para trás?

    Foi uma coisa boa que condicionou a outra. Trabalhar numa rádio com o peso que a Comercial tinha na altura, fez de mim uma figura pública precoce, ainda para mais num país difícil como era Portugal na época. Mas tive a possibilidade de começar a ganhar dinheiro que nunca me tinha passado pela cabeça. Aos 26 anos, vim do nada para o quase tudo. Passar a ganhar primeiro 80 mil escudos e depois 120 mil era um fartote. O que acabou por dar-me o impulso para me poder afirmar como comunicador.

    Depois foi convidado para a RDP África?

    Muito depois. Fiquei na Comercial até 1992 e quando a rádio foi privatizada fui convidado para o Rádio Clube Português, dos irmãos Botelho Moniz. Aí fiquei mais dois anos, depois com a falta de sustentabilidade financeira acabei desempregado. Logo depois é que me convidaram para o projecto Canal África que deu origem, mais tarde, à RDP África. Este projecto nasceu em 1994, a seguir a uma visita de Marques Mendes, então ministro do Governo de Cavaco Silva, à Guiné-Bissau. As entidades daquele país irmão ameaçaram o Governo português que se não criasse um canal específico para África proibiam as emissões da RDP Internacional, porque estavam fartos de ouvir apenas música portuguesa, sem uma abordagem aos problemas locais. Como eu era entendido em questões africanas, fui convidado a criar esse canal, com a ajuda de alguns colegas que estavam na RDP Internacional, o Salvador Alves Dias, o Carlos Menezes e poucos mais.

    E o também angolano David Borges não estava nessa equipa?

    O David Borges ainda estava na TSF. Logo a seguir, o PSD perdeu as eleições para o PS de António Guterres. E foi nesse período que o David Borges foi convidado pela nova direcção da rádio para assumir o Canal África. Ao aceitar, fez questão que a estação se passasse a chamar RDP África, que estreou no dia 1 de Abril de 1996. Eu continuei a integrar o projecto até vir para Angola. Foi um enorme prazer trabalhar com o David Borges, aprendi muito com ele, nos oito dos 16 anos que fiz nas manhãs da rádio, e também com o João Diogo.

    Quem o substituiu nas manhãs da RDP África?

    O João Pedro Martins que está em Macau. Agora, já lá está outra figura, mas eu estou zangado com a RDP.

    Porquê?

    Porque pedi uma licença sem vencimento para vir para Angola. Entretanto, criaram um processo de rescisão voluntária, ao qual me candidatei por duas vezes, só que em nenhuma circunstância autorizaram que a minha rescisão se efectivasse, justificando que eu era imprescindível para o serviço. Ora, não se atribui uma licença sem vencimento de quatro anos a alguém que é imprescindível ao serviço. Portanto, se pude estar quatro anos fora, também poderia rescindir. O problema é que sabiam que eu já estava em Angola enraizado, suficientemente organizado, e não podendo estar nos dois lados, não voltaria à rádio e optaram por me despedir. Acho que merecia ter sido tratado como foram outros colegas, que aceitaram o processo de rescisão, até pelos anos que dei àquela casa. E não estamos a falar de nenhuma indemnização milionária. Enfim, entenderam que era a melhor forma de poupar uns tostões e, mais uma vez, a vítima fui eu. Tiveram dois pesos e duas medidas para situações semelhantes, e se invoco outras questões que não as laborais vêm logo com desculpas de que ‘fulano é um complexado, é isto e aquilo’. Mas foi um acto persecutório com alguns laivos de racismo. Fiquei sentido.

    Voltando à realidade actual, e em face à sua experiência na TV Zimbo, como viu o recente episódio do ‘beijo gay’ numa telenovela na concorrência?

    Não sou homofóbico, respeito a liberdade individual de cada um, mas entendo que cada país tem o seu modo de ser, de estar e de interpretar algumas acções que são do foro comum. Para um jovem país como o nosso, ainda agarrado a uma postura conservadora, há questões algo sensíveis e que devem ser, na minha óptica, abordadas com algum cuidado.

    Qual foi o momento que considera chave na sua vida?

    O que me marca mais é a família. Hoje, sinto uma falta incomensurável do meu pai, que morreu em Portugal tinha eu 28 anos. Sem meios, vivia em casa dos meus pais e tinha acabado de ter o meu segundo filho. E ele disse-me uma coisa que, na época, me deixou sem chão, não tinha percebido o alcance da questão: ‘Se o senhor é homem para fazer filhos, tem de ser homem para sustentar o seu lar. Depois da criança nascer, deve abandonar a minha casa’. Nesse mês morreu, mas a força daquilo que me disse fez nascer em mim uma noção de responsabilidade e de respeito para com a família que até ali não tinha. Foi a partir desse dia que me fiz homem. (sol.ao)

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