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    E se António Costa não for acusado? “Seria a descredibilização total do Ministério Público e da sua investigação”

    Os procuradores do Ministério Público não podem, individualmente, ser legalmente responsabilizados. Mas no caso de o processo se revelar insuficiente, poderá haver lugar a um pedido de indemnização do ainda primeiro-ministro. De qualquer forma, os juristas ouvidos pela CNN Portugal querem acreditar que, para emitir aquele comunicado e divulgar a investigação, o MP tem provas suficientes. Caso contrário, a imagem da justiça portuguesa ficará bastante afetada

    O primeiro-ministro ficou a saber, na terça-feira de manhã, através de um comunicado da Procuradoria-Geral da República, que estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça, num processo ligado a suspeitas de corrupção e tráfico de influências. Considerando que, sendo suspeito de tais crimes, não poderia continuar a exercer o seu cargo com dignidade, António Costa demitiu-se do cargo de primeiro-ministro e, na sequência disso, o Presidente dissolveu a Assembleia da República. Facto inédito: o Ministério Público fez cair um Governo de maioria.

    Da investigação a Costa sabe-se muito pouco. Quais são afinal as provas que existem contra o primeiro-ministro? Quão avançada está a investigação? E se, no final desta investigação, não for feita qualquer acusação? Se se chegar à conclusão que não há, afinal, qualquer matéria criminal contra António Costa? Que responsabilidades terão de ser assumidas pelo Ministério Público (MP) por fazer cair o Governo e provocar uma crise política? Que consequências para a justiça portuguesa?

    “Consequências diretas nenhumas”, responde sem hesitar o advogado Paulo Veiga Moura quando questionado pela CNN Portugal. “O MP obviamente não pode estar a investigar com medo de depois vir a ser responsabilizado”, explica.

    O advogado Rogério Alves concorda: “O MP tem de agir com autonomia e sem inibições à sua atividade. É claro que tem de ter bom senso, mas não pode estar condicionado.”

    Mas isso não quer dizer que não haja um “apuramento de responsabilidades ao mais alto nível”, como diz à CNN Portugal outro jurista, que pediu anonimato. Até porque, recorda, a própria procuradora-geral, Lucília Gago, assumiu o caso e foi a Belém falar com o Presidente da República. “Se tal acontecer espero que se tirem as devidas ilações, de cima a baixo. Naturalmente que a independência dos magistrados não pode ser posta em casa. Na nossa legislação, não há a possibilidade de um procurador ser punido por um inquérito não produzir um resultado prático, porque os procuradores não podem sentir-se cerceados na sua função. Portanto, não haverá uma reação formal, mas espero que haja uma reação interna, que as pessoas envolvidas sejam responsabilizadas.”

    Paulo Veiga Moura é da mesma opinião. “Na estrutura interna do MP e do Ministério da Justiça terão de se tirar consequências. Claro que pode acontecer um procurador achar que tem boas razões para investigar e até para acusar e deter uma pessoa, como aconteceu, por exemplo, com José Sócrates. Mas se depois se concluir que o procurador exerceu mal a sua função terá de ser responsabilizado, pelo menos internamente. O que não pode acontecer é estragar a vida às pessoas e não ser responsabilizado”, diz à CNN Portugal.

    “Qual é o ponto de desequilíbrio?”, pergunta Veiga Moura. “Um juiz e um procurador não podem ter medo para investigar, mas também não podem ficar completamente impunes quando cometem erros graves.” Sobretudo num caso com esta dimensão: “Não é só António Costa demitir-se, é o país parar por causa disto. Se não houver acusação, o órgão de cúpula tem de extrair as devidas consequências. Pelo menos internamente tem de se tirar ilações.”

    Na opinião deste advogado, talvez seja altura de “a sociedade começar a repensar este sistema”. “Nós estamos, de uma forma quase encapotada, a criar uma forma de justicialismo – ou seja, um governo de procuradores. Um MP sabe que tem poder para demitir um Governo. Uma simples investigação do MP tem o poder de dar cabo do país. Isto começa a ser perigoso num estado de direito democrático”, avisa.

    “Dada a magnitude daquilo que ocorreu – o MP demitiu o Governo, é algo inédito – presumo que haja razões bastantes para a fundamentação do inquérito, que haja provas”, acredita o advogado Carlos Blanco de Morais. No entanto, reconhece, “aquilo a que temos assistido é que muitas vezes o MP poderá ter razão em investigações que desenvolve, as suspeitas têm fundamento, mas depois não consegue recolher as provas suficientes. Sobretudo quando estão em causa atividades de lóbi, há muitas vezes acusações levianas. São casos em que, podendo haver censura moral, pode não haver matéria criminal.”

    “Espero que não ocorra”, diz. Mas, no caso de isso acontecer, e de não haver qualquer acusação a António Costa, “o Ministério Público fica numa má posição, obviamente”, afirma o advogado à CNN Portugal. “A credibilidade do judiciário já conheceu melhores dias.”

    “Se isso acontecer por falta de provas ou de fundamentação, será gravíssimo”, considera Blanco de Morais. “É um problema de crise de estado de direito, porque a partir de então qualquer Governo ficará com uma espada de Dâmocles sobre a sua cabeça, sem saber quando é que uma situação destas poderá acontecer de novo.” Para o impedir, “teria de haver uma reforma do MP”, afirma. “É óbvio que é um órgão independente e assim tem de se manter. Mas parece-me evidente que, no futuro, os partidos do bloco central, a maioria democrática, terão de tomar medidas no sentido de reconfigurar a constituição do MP e também a responsabilização de titulares do MP que incorrem em erros grosseiros.”

    “Toda a gente fez o que lhe competia”

    Neste momento não existe qualquer acusação, apenas uma indiciação. Como explicou António Ventinhas, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, na CNN Portugal, o MP rege-se pelo princípio da legalidade, ou seja, “quando exista denúncia de um crime ou suspeições sobre a prática de um crime, o que a lei diz é que tem de ser abrir um inquérito, ainda que, se nada de relevante for apurado, esse inquérito seja arquivado (se as evidências forem sólidas produz-se um despacho de arquivamento). O que a lei proíbe é que existam investigações fora de inquéritos, sem qualquer controlo e sem transparência”. Isto é, “não se pode concluir nada antes de realizar o inquérito”.

    Portanto, a abertura de um inquérito, em si, não nos diz nada sobre a culpabilidade de uma pessoa, sublinha o advogado Rogério Alves. “Tudo depende da solidez aparente dos indícios. Muitas vezes as coisas têm um determinado aspeto no início, que, depois uma investigação mais cuidada, se demonstra que não havia razão de ser.” Isto acontece frequentemente, observa. Mas é precisamente por isso que se inicia a investigação, ou seja, que se abre um inquérito. Claro que, noutros casos, as consequências não são tão gravosas. Num caso como este, “toda a gente fez o que lhe competia”, mas, “pelo caminho, caiu um Governo, é uma consequência política brutal. Mas é um dano colateral – não porque não seja grave, mas porque é uma consequência indireta”.

    Se se vier a concluir que, neste caso, não há motivos para acusar o primeiro-ministro, Rogério Alves considera que se devem tirar duas lições: “Porventura, tem de se ser um pouco mais meticuloso a averiguar os indícios antes de se avançar para conclusões precipitadas e é preciso também que a opinião pública se passe a posicionar de forma mais adequada perante estes factos, ou seja, analisar primeiro e concluir depois, cumprindo assim a presunção de inocência de todos os que são alvo de inquirições.”

    O problema, diz, é que “este sistema jurídico-mediático produz conclusões antes de investigar”. “Neste mundo fortemente mediatizado em que vivemos, a existência de suspeita, que devia ser o estado inicial do processo passou a ser o estado final. A que acresce a demora do inquérito, que torna esta situação de suspeita insustentável, por exemplo, quando se trata de detentores de cargos públicos.”

    Um comunicado dúbio na origem do problema

    Portanto, para Rogério Alves, conclui-se que talvez, neste caso, o problema não tenha sido a abertura de um inquérito a António Costa mas a sua divulgação, o que nos remete de volta ao fatídico último parágrafo do comunicado emitido na terça-feira pela Procuradoria-Geral da República.

    “O Presidente da República devia exigir ao Supremo Tribunal de Justiça que até 10 de março clarifique a situação judicial do primeiro-ministro”, defendeu Miguel Sousa Tavares na TVI, do mesmo grupo da CNN Portuga,, que já antes tinha pedido explicações ao MP. “Isto é importantíssimo. O Governo cai por causa daquele parágrafo onde o primeiro-ministro é indiciado de coisas que não especificadas. É muito fácil resolver: só há um arguido, só há escutas telefónicas como prova, é muito fácil para o Supremo Tribunal de Justiça resolver este caso até ao dia 10 de março, o país exige-o e o Presidente devia tê-lo exigido.”

    Trata-se, como afirmou o jurista que prefere manter o anonimato, de um “parágrafo assassino”. Se é verdade que o MP pode emitir comunicados sobre os processos em curso, também é verdade que só deve fazê-lo “a pedido do próprio visado por estar em causa o seu nome ou quando está em causa a reposição da ordem pública”. “Ora, neste caso, é o comunicado que vem provocar alarme social, por isso é ilegal”, conclui este especialista.

    O advogado Paulo Saragoça da Motta explicou, num comentário na CNN Portugal, que “o MP tem o dever de fazer comunicados quando realiza determinado tipo de operações em que a falta de informação pode gerar algum clamor público, alguma confusão mediática, ser prejudicial aos visados, a terceiros ou à própria investigação”. Por isso, aquele comunicado pareceu-lhe perfeitamente regular, tendo apenas ficado surpreendido com o parágrafo final: “Se aquele processo é um outro processo, se o processo atenta a matéria seguramente sob segredo de justiça, não percebi a que propósito é que naquele comunicado se referia a sua existência. Por duas razões: primeiro, não era necessário e, segundo, porque claramente iria causar as consequências que se viram. Politicamente, este parágrafo não era indiferente. E na verdade tudo aconselharia que o processo continuasse na mais completa discrição.”

    “Não quero acreditar que tenha havido precipitação” por parte do Ministério Público, afirmou Saragoça da Matta numa outra intervenção na CNN Portugal. “É verdade que somos todos iguais perante a lei e, portanto, os formalismos que existem têm de ser cumpridos, quer seja para os cidadãos comuns quer seja para o titular de um alto cargo público, mas não há órgão judiciário que não entenda, com bom senso, qual é o impacto que as suas decisões pode ter. Portanto, não quero acreditar que tenha havido precipitação ou ligeireza [no comunicado divulgado] porque é uma situação extremamente grave”, explica. O advogado recorda que “já tivemos uma situação de processo criminal em curso e detenção com um ex-primeiro-ministro: mas, neste caso é um primeiro-ministro em exercício de funções. A situação causou uma crise política, com prejuízos para o país e para as pessoas concretas.” Por isso, “temos de acreditar que a PGR e os procuradores, que são instituições que fazem parte do equilíbrio do estado democrático, não agiram com ligeireza. As instituições às vezes erram, mas um erro neste caso tem consequências muito maiores do que num caso com um cidadão comum, por isso teria de haver extrema cautela.”

    António Costa teria “todo o direito a reclamar do Estado uma indemnização”

    “Não quero acreditar que isso possa acontecer”, diz também João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. No caso de haver uma situação de arquivamento ou sequer de inexistência de processo-crime (António Costa não ser constituído arguido), essa seria uma situação “muito danosa para a imagem da justiça”. “Seria a descredibilização total do MP e da sua investigação”, diz à CNN Portugal.

    Nessa eventualidade, “a lesão institucional e da imagem do primeiro-ministro seria tremenda”. “Imagine-se o dano que é para alguém que ganhou as eleições com maioria absoluta, que tem grande capacidade política. Alguém que se sente lesado por uma afirmação daquelas [no comunicado da Procuradoria-Geral da República] tem todo o direito a reclamar do Estado português uma indemnização, que não será assim tão baixa”, explica Massano.

    Esta descredibilização não será suficiente para pôr em causa a existência do Ministério Público, uma vez que “a instituição MP é maior do que qualquer situação destas”, acredita. “Mas temos de credibilizar o sistema, porque é essencial ao estado de direito. E isso passa por todos nós e também por repensar e refundar a comunicação da justiça”, defende o advogado João Massano.

    “Deveria haver mais cuidado na comunicação e isso é visível naquele comunicado emitido pela PGR. Todo o comunicado é exemplar, até se chegar àquele parágrafo, que cai ali de paraquedas, colocando suspeitas sobre o primeiro-ministro, sem as fundamentar. É incompreensível.”

    Outro exemplo da necessidade de repensar a comunicação da justiça é toda a hipocrisia em torno do segredo de justiça, diz. “Não consigo compreender como é que toda a matéria que está em segredo de justiça está em todo o lado. A partir do momento em que se tornou pública a situação é como se houvesse uma tentativa de justificar o que se fez, fazendo sair a matéria, divulgando os factos sem qualquer possibilidade de contraditório dos implicados. Não é assim que a justiça deveria funcionar. Isto, todo este circo mediático, prejudica todos – o MP, os arguidos e o magistrado que tenha de tomar uma decisão. As pessoas são enxovalhadas na praça pública e, depois, podem até ser ilibadas mas na opinião pública a sua imagem nunca se recompõe.”

    “A conta será paga por todos nós”, avisa um outro advogado, que não quis ser identificado. A responsabilidade da PGR/MP num situação destas seria antes de mais política, mas depois também institucional e jurídica, dando lugar, claramente, ao pagamento de uma indemnização. Tal como João Massano, também este advogado chama a atenção para a importância da comunicação neste e noutros casos. “Os comunicados da PGR são importantes mas não devem conter interpretações, apenas factos”, defende.

    Neste caso específico, “aquele parágrafo é um equívoco: dele parece retirar-se que temos pessoas que usaram o nome do primeiro-ministro, mas isso não é um ato pessoal do PM e só por si não justifica a abertura do inquérito. Ora, ou aquele parágrafo tem por base mais do que aquela informação, e por isso é incompleto e insuficiente, ou, então, aquele parágrafo diz tudo o que pode ser dito sobre o caso e, logo, não devia sequer ter existido. Porque foi dada aquela informação? A justiça sabe que a publicidade tem consequências danosas nas pessoas e nas instituições, por isso tem de ter cautela – seja com o primeiro-ministro ou com outro cidadão qualquer.”

    “O adversário do PS é a direita. Não é o sistema judicial”

    Percebendo que, neste momento, já são muitas as vozes que criticam o modo como o Ministério Público conduziu este caso e que este caso poderá levar a uma crise institucional ainda mais grave, o secretário-geral do PS pediu quinta-feira à noite aos dirigentes socialistas para que se centrem na resposta aos problemas das pessoas e não na agenda mediática e para não caírem na armadilha de criticarem o MP. Estes recados terão sido transmitidos por António Costa na intervenção final da reunião da Comissão Política do PS, depois de vários membros terem feito críticas à atuação do MP no processo que conduziu à demissão de António Costa das funções de primeiro-ministro.

    “O adversário do PS é a direita. Não é o sistema judicial”, concordou o ex-ministro Eduardo Cabrita – uma ideia que também já tinha sido defendida pelo eurodeputado socialista Pedro Silva Pereira.

    Por Maria João Caetano

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