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    José Eduardo dos Santos: O viajante e amigo das crianças

    Avelino dos Santos tinha 14 anos quando o irmão, José Eduardo dos Santos, nasceu. Hoje tem 88 e ainda recorda os momentos envolventes do nascimento do irmão, cuja vinda trouxe um novo alento à família, pois a filha do casal Eduardo Avelino dos Santos e Jacinta José Paulino, nascida antes de José Eduardo dos Santos, pereceu nos primeiros anos de vida.

    A simplicidade e a educação de Avelino dos Santos impressiona. Rodeado pelos netos, que o tratam por Papá Avelino, passeava pelo quintal com um rádio de pilhas na mão. “Gosto de me manter informado”, apressou a justificar-se. Baixou o volume do rádio e convidou a equipa de reportagem do Jornal de Angola a sentar-se à mesa para o pequeno almoço.
    Na sala simples, mas espaçosa, da residência salta à vista, presa a um pilar, uma fotografia em homenagem aos seus 83 anos, assinalados em 2011. À sua volta podem contar-se 36 netos. Na estante, atrás da cadeira onde se sentou, estão várias fotografias. Mas apenas uma com o Presidente da República e a Primeira-Dama, Ana Paula dos Santos, numa das festas de aniversário do Chefe de Estado.

     

    (Foto: D.R.)
    (Foto: D.R.)

    Conta que a vida da sua família na altura nos momentos que antecederam o nascimento de José Eduardo dos Santos não era um mar de rosas. “O meu pai na altura trabalhava no Dande e a minha mãe vendia no então mercado do Xamavo, hoje São Paulo. Um comerciante português queria ficar com o nosso terreno e mandou entulhar ao redor da Gajajeira”, relata.

    Caiu sobre a cidade uma chuva torrencial, a área ficou completamente inundada e a nossa casa de adobe não resistiu. A nossa mãe, minha irmã mais velha, a Isabel, e eu, fomos viver para a casa de uma tia até à data do regresso do nosso pai. Quando ele voltou do Dande, construímos uma casa de chapa, próximo ao local onde está agora o mercado de São Paulo. Foi neste ambiente, de extrema pobreza, que nasceu  o José Eduardo dos Santos.
    Estabelecido definitivamente em Luanda, o pedreiro Eduardo Avelino dos Santos foi trabalhar para a Câmara de Luanda, mas o dinheiro auferido não chegava para as despesas da casa e a instrução dos filhos. Por isso a mãe tinha de vender no mercado. “A mim, cabia o papel de acompanhar mais de perto os irmãos mais novos, entre eles o Zé”.
    Segundo Avelino dos Santos, José Eduardo dos Santos começou os seus estudos numa escola do bairro Sambizanga e depois mudou-se para a Missão Evangélica, no local onde hoje está a Universidade Metodista de Angola.
    O seu carácter é fruto da educação religiosa imposta pelo pai que sempre incutiu nos filhos o respeito pelas pessoas e o gosto pelo trabalho.

    “Obrigava-nos a levantar cedo para ajudá-lo nas actividades de pedreiro. O meu pai tinha um feitio. Quando acordasse, às 5h00, ninguém mais podia ficar na cama. Sempre nos incutiu uma educação rígida. No bairro ou na rua tínhamos de obedecer e respeitar às pessoas. Essa rigidez moldou o nosso carácter”.

    Mas ainda assim encontrava tempo para jogar futebol, a sua grande paixão, com os amigos, entre os quais o vizinho Brito Sozinho.
    O homem de cabelos brancos descreve, ao pormenor, as várias vezes em que teve de apelar à inteligência para resolver um problema do irmão mais novo. Conta que após concluir a quarta classe, havia a necessidade de matricular o irmão no Liceu Salvador Correia.

    Era o último dia da matrícula e o certificado ainda não estava disponível, pois a repartição apenas funcionava à tarde. A idade máxima para entrar no liceu era dez anos e se não o fizesse nessa altura não tinha outra oportunidade. Avelino dos Santos teve de apelar à criatividade para encontrar uma solução. Num gesto de desespero, pediu ao irmão para simular lágrimas com a saliva, para que as pessoas vissem que ele estava triste e desesperado. O truque funcionou e conseguiu ser matriculado.
    Outro desafio era o pagamento das propinas. Pediu isenção para os dois irmãos, o Luís e o José Eduardo dos Santos, não foi atendido de primeira. Insatisfeito, teve de procurar outras saídas: uma delas foi fazer duas mesinhas de cabeceira e um beliche para oferecer aos dois chefes da administração central.

    José Eduardo dos Santos com Agostinho Neto (Foto: D.R.)
    José Eduardo dos Santos com Agostinho Neto
    (Foto: D.R.)

    Nisso conseguiu que os irmãos estudassem. José Eduardo dos Santos retribui o esforço do irmão e dos pais aplicando-se nos estudos, chegando mesmo a fazer parte do quadro de honra.
    Como forma de aliviar o fardo do irmão mais velho, José Eduardo dos Santos decidiu procurar emprego.

    Através de um anúncio no jornal, tomou conhecimento da existência de  um concurso público para trabalhar na farmácia do Hospital Maria Pia, hoje Josina Machel. Precisava de dinheiro para tratar os documentos necessários e recorreu mais uma vez a Avelino dos Santos. José Eduardo dos Santos concorreu e ficou aprovado.

    “No fim do mês, veio entregar-me toda a sua remuneração”, revela. Faz uma pausa, como quem pretende sublinhar algo e conclui: “Aquele gesto marcou-me muito, porque ele não foi antes mostrar ao nosso pai ou à nossa mãe. Veio logo ter comigo”.
    O gesto de agradecimento e simpatia do jovem significa também, para Avelino dos Santos, menos um encargo e a consumação do dever cumprido. “Eu disse a ele: assim você já me aliviou. Agora vou só já olhar para a tua sobrinha”. Avelino dos Santos referia-se à filha mais velha, a Jacinta, que na altura contava  dez anos.

    A fuga para a clandestinidade

    Nos dias seguintes, é um José Eduardo dos Santos mais retraído do que o habitual. A casa da família Eduardo Avelino dos Santos é agora ponto frequente de encontro entre amigos. Entre estes destacam-se Afonso Van-Dúnem Mbinda, Brito Sozinho, Paiva Nvunda, Pedro de Castro Van-Dúnem Loy e Maria Mambo Café.

    Os jovens amigos preferem os fundos da Marcenaria do irmão mais velho para os encontros que se foram tornando habituais. Mesmo em casa, José Eduardo dos Santos mantinha segredo absoluto sobre os planos e o conteúdo das conversas. Preferia manter a família, principalmente os irmãos, longe de tudo.

    Ninguém desconfiava que aquele grupo de colegas e amigos iniciava ali um vasto plano de fuga para a clandestinidade e que viria a marcar para sempre na História de Angola.
    Dá-se depois o 4 de Fevereiro de 1961. A Polícia portuguesa aperta a vigilância àqueles jovens esclarecidos que podem representar ameaça à colónia.

    O jovem José Eduardo dos Santos deixa de trabalhar e intensifica a organização dos amigos. Até que um dia, quando o irmão Avelino dos Santos se preparava para dar entrada no hospital para ser operado a uma hérnia, eis que José Eduardo dos Santos e o amigo Brito Sozinho aparecem na casa de Avelino dos Santos para se despedirem dele, afinal sempre foi o seu confidente.
    “Vi que eles estavam decididos e não contrariei. Não valia a pena. Ofereci-lhes algumas roupas e calçado e desejei-lhes boa sorte”. Avelino dos Santos interrompe bruscamente aquele sorriso largo. Faz nova pausa na conversa, desvia o olhar e conclui: “Nesse dia, a minha mãe foi ter comigo muito preocupada por ele não ter dormido em casa, pois não era seu hábito.”

    O difícil, depois, foi explicar à velha que o jovem tinha emigrado para a clandestinidade, que era preciso ter esperança e que tudo daria certo.
    A família apenas voltaria a ter informações do grupo através de uma tia, que era enfermeira na República Democrática do Congo, antigo Zaire, que os acolhe.

    Para ludibriar a vigilância colonial, José Eduardo dos Santos passa a comunicar com a família através de postais de boas festas, que enviava para a sobrinha, Jacinta. “Não precisava de palavras. Ele mandava o postal de boas festas com desenhos de casas para a sobrinha e nós percebíamos logo que ele estava vivo”, revela.

    Pedro de Castro Van-Dúnem Loy, que ficou e seria o último do grupo a sair do país, era o encarregado de entregar os postais à família. “Certa vez, o Loy chegou a levar chapadas. O senhor desconfiou e perguntou por quê ele estava sempre a receber postais”, recorda. Temendo o pior até para a família, Avelino dos Santos pediu ao Loy para avisar os amigos para terem mais cuidado, uma vez que já circulava um mandato de captura em seu nome.

    “Eu disse ao Loy: avisa o teu amigo para não assinar José Eduardo no postal, senão não nos vai encontrar vivos”, lembra.
    No entanto, a família viria a perder-lhe novamente o rasto quando parte para a Rússia, para fazer a sua formação. Avelino dos Santos recorda ainda o regresso a Luanda. “Ele chegou de madrugada e foi dormir para o jardim.

    Não bateu à porta. Quando acordámos e o vimos no jardim a dormir, foi uma alegria enorme”, conta. Mas como uma família humilde receberia o filho que acaba de chegar com uma mulher branca? “Era normal, era a escolha dele e não podíamos contrariar. Conhecendo-o bem não duvidamos da escolha. Para mostrarmos à nossa cunhada e nora que era bem aceite entre nós, dei o nome dela à minha filha Tânia”, explica.

    O nome de Isabel, que José Eduardo dos Santos deu à filha primogénita, era também o agradecimento à irmã mais velha que o ajudou na infância, nas ausências frequentes da mãe quitandeira.

    A indicação a Presidente

    Avelino dos Santos fala também da reacção da família à indicação do “Zé” para Presidente da República, com apenas 37 anos. “Não foi surpresa, porque ele tratava Agostinho Neto como um pai. Havia vezes que estávamos reunidos em família e de repente ele  levantava-se a dizer que o mais velho mandou chamar”, afirma e sublinha orgulhoso:

    “Nós conhecíamos as suas capacidades. Ele foi sempre um grande cabeça, muito inteligente e organizado. Por isso, não nos surpreendeu”. Avelino dos Santos revela igualmente o amor do irmão às crianças e a preocupação com a formação académica. “Ele não mudou. Gosta de conviver com as crianças.

    É capaz de ficar várias horas sentado a conversar com as crianças e a aconselhá-las para os estudos”, revela, para acrescentar: “Ele não mudou. Foi sempre muito educado, obediente e organizado. São estes valores que procura passar”.

    Desporto e música

    José Eduardo dos Santos sempre foi aficionado do desporto. O futebol era a sua paixão e chegou a jogar no Futebol Clube de Luanda. Praticou ainda o basquetebol e o voleibol, que aprendeu no liceu.
    Mas também tinha grande inclinação pela música, por influência do irmão mais velho e de um vizinho que já compunha canções. “Ofereci-lhe a primeira viola, feita por mim. Mas revelou-se como cantor e compositor nos Kimbandas do Ritmo e, depois, no conjunto Nzaji, uma forma também de prosseguir com os objectivos da luta de libertação nacional. (jornaldeangola)

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