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    Três desafios africanos

    No início deste ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) previu um crescimento económico entre cinco a seis por cento em 21 países africanos.

    Contudo, e como lembra o economista bissauguineense Carlos Lopes, a narrativa global dominante acerca de África, de matriz ocidental, mas alimentada igualmente pelos próprios africanos, não fala desses “campeões”, mas apenas dos países com problemas e deficiências.

    As economias mais ricas possuem um rácio da dívida pública relativamente ao respectivo Produto Interno Bruto (PIB) superior ao da generalidade das economias africanas, mas as agências de rating focalizam-se unicamente nestas últimas, tendendo a dramatizar irreversivelmente o problema.

    Como consequência, as primeiras continuam a ter acesso facilitado aos créditos concessionais, a juros entre zero e um por cento (por vezes, inclusive, negativos), enquanto os países africanos são forçados a ir aos mercados, onde, para conseguir empréstimos, têm de pagar juros que podem chegar aos sete por cento.

    O curioso, segundo nota igualmente Carlos Lopes, é que emprestar às economias africanas é dois por cento mais rentável do que à região mais próxima, em termos de rentabilidade para os credores internacionais, a Ásia do Sudeste, o que torna ainda mais difícil de entender as dificuldades que tem África de aceder aos referidos empréstimos.

    O que se passa, portanto? E o que fazer para alterar esse cenário?

    Duas razões, quanto a mim, explicam a narrativa dominante sobre a situação em África. A primeira é a persistência da ideologia e da estratégia neocolonial por parte do chamado Ocidente (Europa e EUA) em relação ao continente africano, que continua a ser visto, preferencialmente, como um mero fornecedor de matérias-primas.

    A segunda é a incapacidade das elites africanas, em especial os políticos e os quadros técnicos, de formularem um pensamento próprio e de desenharem um modelo de desenvolvimento que não seja uma mera cópia dos modelos globais hegemónicos.

    Alguns tendem a desvalorizar a importância do neocolonialismo (como se este não existisse) e da política de dois pesos e duas medidas aplicada pelas potências ocidentais em relação aos países periféricos.

    “O problema somos nós”, dizem, esgrimindo, a propósito, o irrefutável argumento da corrupção da maioria das elites africanas. Para mim, a corrupção agrava os efeitos da estratégia de dominação das economias hegemónicas e da tendência interna para o mimetismo, mas o problema principal é este último, ou seja, a incapacidade das elites africanas de adoptarem modelos de desenvolvimento ajustados às necessidades e à realidade cultural dos nossos países.

    Só para dar um exemplo comparativo, a corrupção, entendida em todas as suas matizes, também esteve, historicamente, na origem da formação da burguesia asiática (em que parte do mundo não foi assim?), mas esta tem uma diferença fundamental em relação à burguesia africana: enquanto a última é basicamente comissionista, rentista e esbanjadora, aquela é produtiva, patriótica e inovadora, tendo apostado desde o início no principal factor de desenvolvimento, a formação do capital humano. Por outras palavras, soube adoptar um modelo e uma estratégia adequados aos interesses das respectivas sociedades.

    Quanto à política ocidental de dois pesos e duas medidas, basta fazer uma pergunta, ajustada à actual pandemia da Covid-19: como reagiriam as organizações de BrettonWoods, as agências de rating e as várias entidades de classificação existentes, organizadoras de índices para tudo e mais alguma coisa, se um país africano fizesse o que a União Europeia decidiu há dias, a saber, injectar quantidades massivas de moeda na economia e aumentar o seu endividamento para enfrentar a doença?

    Não se trata apenas de questionar as verdades escolásticas sobre o tema do endividamento. A verdade é que a Covid-19 veio pôr em xeque algumas verdades incontestáveis estabelecidas nas últimas quatro décadas, desde a relação entre crescimento económico e respeito pela natureza até ao papel dos Estados, sobretudo em áreas como a saúde e a pesquisa científica, apontando para a necessidade de mudanças estratégicas globais, como o reforço da digitalização e a redução das energias fósseis. Isso abre certas oportunidades ao continente africano, que poderá queimar algumas etapas.

    Dois exemplos: por um lado, a juventude da população africana é comprovadamente um factor de potenciação do processo de digitalização do continente; por outro lado, África tem recursos – água, sol, vento, minerais estratégicos – que lhe permitem transitar directamente, em muitos casos, para as energias renováveis.

    Temos, para isso, três grandes desafios pela frente. O primeiro é livrarmo-nos da armadilha do pensamento global único, imposto pelo Ocidente, pelo que as nossas elites, formadas em grande parte, precisamente, nas escolas ocidentais, têm de ser capazes, como as asiáticas, de usar os conhecimentos adquiridos para formularem estratégias próprias.

    O segundo é combater efectiva e sistematicamente a corrupção, moralizar as nossas sociedades e melhorar a boa governação interna. O terceiro é agir como um bloco, condição fundamental para negociar com os outros blocos e as principais potências mundiais em condições mais vantajosas do que ainda acontece.

     

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