Sexta-feira, Maio 3, 2024
15.1 C
Lisboa
More

    A propósito da morte de Kimpa Vita, a 2 de Julho de 1706

    O que é que faz de uma data uma efeméride?

    Acreditamos que existem, pelo menos, quatro pressupostos capazes de configurar um estado de gema sócio-orgânica num determinado espaço político passível de posterior lapidação em efeméride nacional:

    1. O poder simbólico
    2. A abrangência colectiva
    3. O valor histórico-cultural (legado e sua repercussão)
    4. O mérito da causa (acto)

    Como refere o falecido historiador angolano, Simão Souindoula, no seu artigo “Profetiza Kimpa Vita, uma tragédia inacabada”, publicado na edição de 6 de Abril de 2011 do Jornal de Angola, “após a leitura da obra “Messianismo e Modernidade.

    Dona Beatriz Kimpa Vita e o Movimento dos Antonianos”, do congolês da margem direita, Serge Mboukou, uma grande conclusão extraída pelo autor é a inevitável herança histórica entre uma epopeia extraordinária da jovem “apóstata” congolesa (1684 – 1706) e o proselitismo insuperável que ainda prevalece nesta parte do continente.”

    Para Souindoula, a morte de Kimpa Vita foi “uma tragédia da fogueira da Inquisição de Evolulu, nos arredores de Mbanza Congo, traduzida numa das páginas mais emocionantes da História da África.

    Por isso, suscitou vários trabalhos científicos, pedagógicos e obras literárias, como Ibrahima Baba Kaké e Bernard Rouzet, “Dona Béatrice: Jeanne d’Arc Congolaise” e a peça de teatro “Beatrice du Congo”, do escritor da Costa do Marfim, Bernard Dadié.

    Este drama suscitou, igualmente, uma nova vaga de reapropriação, como uma decisão tomada por Angola, há quatro anos, associando o nome de “vítima” da Inquisição, condenado à fogueira pelos padrões italianos Bernardo da Gallo e Lorenzo di Lucca, a uma das universidades do país.

    Para Serge Mboukou, a história da fogueira da Inquisição nos arredores de Mbanza Congo, em 2 de julho de 1706, possui uma ” pertinência actual.”

    A epopeia extraordinária de Kimpa Vita possui o pressuposto do simbolismo. Kimpa Vita (KV) pode ser comparada ao Moisés bíblico.

    Teve correspondência no seio do povo do reino do Kongo, tendo este facto sido visto pelos portugueses como um enorme perigo à sua ocupação colonial.

    A morte de Kimpa Vita foi “traduzida numa das páginas mais emocionantes da História da África”. Protagonizou a maior revolução cultural na região austral da África, com o sacrifício da própria vida. Este o legado e repercussão histórica.

    Quanto ao mérito da causa ou do acto, há que ter em conta a releitura que Kimpa Vita fez da Bíblia, no sentido da sua verdadeira apropriação pelos africanos, readaptação dos símbolos religiosos do Ocidente à idiossincrasia e ao pensamento Bantu.

    Jesus Cristo (JC) e Maria eram originários do Kongo, quer dizer que JC é negro. Santo António, padroeiro da fertilidade conversava com KP. A Bíblia, nesta nova interpretação vitalina, estava dirigida, tal como no tempo de Moisés, à libertação do Reino do Kongo. A manutenção do Kongo tinha como substracto a sua independência religiosa e cultural.

    DIA DA CULTURA NACIONAL

    Qual a origem da criação do dia 8 de Janeiro, como Dia da Cultura Nacional? Esta efeméride tem origem num discurso sobre a Cultura Nacional que o primeiro presidente de Angola, António Agostinho Neto Neto, pronunciou na UEA em 8 de Janeiro de 1976.

    É claro que Agostinho Neto tem o seu mérito e o seu valor como homem de cultura, mas o seu acto (um simples discurso) não tem potência para configurar uma efeméride nacional, no quadro dos pressupostos acima elencados.

    E é preciso ter em conta que Agostinho Neto já deu o seu nome a dezenas de efemérides (Dia da Rádio, Dia da Televisão, Da do Herói Nacional, etc.) e o seu nome já está ligado a instituições, regiões comunitárias, prémios de literatura, etc. Esse endeusamento do primeiro presidente de Angola é prenhe de exageros próprios da era do culto ao estalinismo exportado para a África independentista, no auge da Guerra Fria.

    Portanto, não chocará os verdadeiros patriotas e pessoas ligadas à Cultura consagrar o movimento messiânico impulsionado por Kimpa Vita – e que a levaria à fogueira da Santa Inquisição, um sacrifício supremo da própria vida – para que a data da sua morte seja considerada o Dia da Cultura Nacional em Angola.

    Há aqui um legado, não só congolês, não só angolano, mas pan-africanista e, quiçá, universal, que nos leva, inclusive, a um debate global sobre a própria Bíblia Sagrada e a essência de Deus, na sua relação com a totalidade da raça humana (aqui incluídos os africanos).

    A Professora Selma Pantoja, da Universidade de Brasília, no seu ensaio “Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII”, analisa as relações estreitas entre os continentes e o universo africano e revela as circunstâncias e especificidades dessas vivências na sua dimensão atlântica.

    Diz ela que “trilhando caminhos reservados aos brancos, os negros ‘cristianizavam-se’ e transformavam as imagens e crenças europeias segundo a sua visão de mundo. Introduziam em suas cosmologias os objetos sagrados para os cristãos.

    Vendidas nas feiras e mercados, as imagens e objectos dos cristãos viraram matéria de cultos africanos. No reino do Congo, desde o século XVI, esse processo acontecia de forma notável. Uma típica representação desses limiares de universo ocorreu no início do século XVIII: o movimento Antoniano de Kimpa Vita. (…)

    No estudo de certos enigmas do pensamento espiritualista africano, Horton analisa a noção de «conversão» que, segundo ele, implicou numerosos empréstimos do cristianismo. Esses empréstimos foram guiados pela organização e substância das cosmologias africanas em vigor.

    Assim, o fenómeno da conversão ilustra a enorme capacidade das cosmologias tradicionais africanas de reagir de maneira criativa ao desafio que representa o acontecimento inédito.”

    Devido ao contexto da oralidade característica da sociedade conguesa do século XVII, não ficou registo por mão própria ou dos seus seguidores das teses de Kimpa Vita, mas o que se deduz das actas de condenação da heroína pela Igreja Católica e dos registos dos historiadores (ver Cadornega), entrando nós no espírito de KV, o que ela pensava é, mais ou menos, em linguagem actual, o seguinte:

    Deus é universal, é um Deus de todos os povos. Deus nunca escolheu um só povo(os Judeus) como povo eleito. Nós, os negros também somos escolhidos de Deus. A palavra de Deus também pode ser revelada a uma negra, como eu vos provei já, com as mensagens que recebo de Santo António. Cristo não é propriedade dos Católicos, nem de nenhuma igreja.”

    Este pensamento representa uma reviravolta, uma revolução cultural, em plenos séculos XVI e XVII. Estas teses são para o nosso tempo uma reviravolta essencial na dogmática religiosa, capazes de reformular o conceito de religião (religare) e os postulados canónicos da religião cristã.

    Quase na mesma época em que Lutero e outros dissidentes deram origem aos diferentes cismas ocorridos na Igreja Católica ao longo dos séculos, Kimpa Vita protagonizava um pensamento muito avançado para a época medieval.

    Como era negra, num sub-continente explorado por escravocratas, a sua voz não podia ter as repercussões que teve a voz de Martinho Lutero, cidadão medieval de uma Europa onde havia, já, uma certa liberdade de pensamento e possibilidades de disseminação desse pensamento.

    É com base nestes pressupostos gemáticos, que propomos a refixação do Dia da Cultura Nacional, lapidando esta efeméride com a maior revolução cultural na história da região austral da África protagonizada por Kimpa Vita que, em 2 de Julho de 1706, preferiu a morte cruel na fogueira, sem abdicar do seu livre pensamento e da liberdade do seu povo.

    Publicidade

    spot_img

    POSTAR COMENTÁRIO

    Por favor digite seu comentário!
    Por favor, digite seu nome aqui

    Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

    - Publicidade -spot_img

    ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Costa identifica problemas de “ponderação” em Marcelo e prefere ter explicações da PGR em tribunal em vez de no Parlamento

    "Não tenciono fazer comentários." Foi desta forma que António Costa, antigo primeiro-ministro, começou por responder às questões sobre a...

    Artigos Relacionados

    Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
    • https://spaudio.servers.pt/8004/stream
    • Radio Calema
    • Radio Calema