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    Pedro Góis: Ninguém pode dizer ‘eu sou um português puro’. Se integrarmos essa ideia talvez consigamos estar mais perto de acabar com o Racismo e a Xenofobia

    Pedro Góis não é mágico mas tem uma espécie de bola de cristal, como gosta de dizer a brincar. Porque é demógrafo e, como ele próprio diz, “a previsibilidade é muito fácil na demografia – talvez seja mesmo das ciências sociais aquela em que trabalhando com números que já existem, prever o futuro não é assim tão difícil”. Fomos ouvir as suas previsões, e acabámos a falar de história, biologia, política, porque, na realidade, isto anda tudo ligado.

    “O racismo cura-se viajando e a xenofobia cura-se lendo”. É Pedro Góis que o diz, citando Miguel de Unamuno, poeta e romancista espanhol, entre outros atributos. A frase espelha a forma como olha para um conjunto de temas como demógrafo e especialista em migrações mas, sobretudo e não será arriscado dizê-lo, como ser humano.

    E por isso decidimos começar por aqui.

    Vamos então às apresentações formais. Pedro Góis é demógrafo, professor na Faculdade de Economia de Coimbra, e é também consultor convidado das conferências da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

    A  demografia, para muitos a mais exata das ciências humanas, foi o pretexto para uma conversa da série 20/30 em que a ideia era saber como é que nós, portugueses, vamos evoluir enquanto sociedade que está a viver mais anos, a ter menos filhos e a precisar mais das migrações – apesar dessa ser uma discussão poucas vezes encarada pela ótica demográfica.

    E, já agora, como é que no mundo inteiro estes temas estão a ser encarados.

    Acabou por ser isso – e mais uma série de coisas que não estavam no cardápio, como o entrevistado bem nos tentou lembrar. Mas, também por isso, esta conversa realizada poucas semanas antes da declaração da pandemia e posterior estado de emergência em Portugal ganhou uma outra atualidade, sendo publicada três meses depois de o mundo ter mudado, em muita coisa, mas ficado com os mesmos problemas, em grande medida.

    Vamos ligar então a nossa bola de cristal e fazer a primeira pergunta: a demografia permite-nos antecipar com segurança o que vamos ser daqui a 10 anos?

    Sim, excepto nos que ainda não nasceram ou nos que vão nascer ao longo destes 10 anos, mas há tendências que nos indicam qual será o sentido desse número de nascimentos e tipos de nascimento um pouco por todos os países do mundo.

    De resto sim, porque na verdade os que vão ter 50 anos daqui a 10 anos agora têm 40, e os que vão ter 20 daqui a 10 anos, têm agora 10, e, portanto, a previsibilidade é muito fácil na demografia – talvez seja mesmo das ciências sociais aquela em que trabalhando com números que já existem, prever o futuro não é assim tão difícil.

    Costumo brincar e dizer que é um pouco como a meteorologia para amanhã: já se adivinha no horizonte e, portanto, é relativamente fácil de o fazermos.

    Portanto a demografia não é suscetível àquelas críticas que se fazem, por exemplo, à economia?

    É, claro que sim, temos todos os mesmos defeitos. Pensar no futuro é algo para o qual não estamos preparados. Podemos sempre projetar o futuro, mas há dinâmicas que não controlamos.

    Repare, uma boa causa para o futuro ser alterado pode ser uma doença como o coronavírus que causa uma epidemia global e, de repente, as pessoas não só deixam de poder ter a certeza que vão sobreviver à exposição deste vírus, como, eventualmente, há muitos casais hoje em Wuhan que não estão a ter os filhos que querem, porque estão sujeitos a uma variável diferente e que alterou tudo.

    Alterou todo o sistema e, obviamente, que este se vai readaptar, mas há aqui um intervalo em que essas dinâmicas ficam em causa.

    Mas do ponto de vista das ciências sociais, e na demografia em concreto, também se antecipam que variáveis podem influenciar, não é?

    Também se antecipam. Por exemplo, sabemos que na ausência de guerras, normalmente uma população vai envelhecer em conjunto; com guerras a população masculina tende a ser mais sacrificada, porque são os soldados no campo de batalha.

    Hoje em dia sabemos, por exemplo, que uma guerra vai gerar movimentos de expulsão do território, os refugiados tal como nós os conhecemos, esses refugiados vão viver noutro sítio e, portanto, vão alterar a demografia dos países de destino, ao mesmo tempo que a demografia da origem se altera porque eles já lá não estão.

    SE SOUBERMOS ESTAS TRÊS VARIÁVEIS, NASCIMENTOS, MORTES E MIGRAÇÕES, CONSEGUIMOS DETERMINAR O FUTURO DE UMA POPULAÇÃO

    Que tipo de variáveis é que, neste momento, à luz do que se sabe, são mais facilmente projetáveis para os próximos 10 anos?

    Bem, o número de nascimentos, as mortes, o número de mortes e o tipo de mortes que vamos ter, estas são as duas principais, e o terceiro grupo tem a ver com as migrações de entrada e saída de um território.

    Que é a sua área de especialização …

    É a minha área de especialização. Se soubermos estas três variáveis, nascimentos, mortes e migrações, conseguimos determinar o futuro de uma população.

    NUM DETERMINADO MOMENTO NO TEMPO, TODA A NOSSA PREVISIBILIDADE DAS MIGRAÇÕES SE ALTEROU COM O 25 DE ABRIL

    Dessas três variáveis, diria que, nestes últimos anos, as migrações são a mais surpreendente, a mais nova?

    São a mais dinâmica. Ou seja, o número de nascimentos não sofre saltos no tempo e não há grandes alterações de comportamentos rápidas; não há revoluções no número de nascimentos. As mortes, com o avanço da ciência e da medicina, também estão mais ou menos controladas. conseguimos prever as causas de morte de uma população no seu todo, e até de populações específicas dentro dessa população. Por exemplo, conseguimos perfeitamente prever a mortalidade infantil, ou a mortalidade jovem.

    As migrações têm dinâmicas mais inesperadas, não digo que são mais novas, porque sempre houve migrações, mas hoje respondem a constrangimentos vários. Por exemplo, se um país fechar as suas fronteiras, os países vizinhos podem sofrer processos migratórios mais dinâmicos, um maior número de entradas. Se mais países tiverem as suas fronteiras abertas, há provavelmente uma diluição das migrações para esses países, portanto, esta dinâmica das migrações pode alterar o conjunto de uma população.

    Imagine quando tivemos a crise dos refugiados, a Europa recebeu 1,5 milhões de refugiados vindos da Síria e de países vizinhos. Sem essa população, eventualmente países como a Alemanha estariam hoje mais envelhecidos, porque essa população veio rejuvenescer a população alemã.

    Claro que um milhão e meio num país como a Alemanha, que tem mais de 80 milhões, não é muito significativo, mas imagine que eles vinham todos para Portugal, seria um salto gigantesco naquilo que somos como população. Ora, nós tivemos um caso desses a seguir ao 25 de Abril com o retorno das colónias.

    O nosso único grande caso, no fundo.

    Sim, num determinado momento no tempo, toda a nossa previsibilidade das migrações se alterou com o 25 de Abril e as suas consequências e isso é hoje integrável na nossa demografia do passado – e a partir desse momento conseguimos integrar na demografia futura de Portugal.

    TRADICIONALMENTE DIZÍAMOS QUE UMA INTEGRAÇÃO COMPLETA ACONTECERIA AO FIM DE TRÊS GERAÇÕES, PORTANTO, ESTAMOS A FALAR DE 50 ANOS. HOJE QUEREMOS QUE ISSO ACONTEÇA AMANHÃ, E OBVIAMENTE QUE NEM SEMPRE É POSSÍVEL

    Do ponto de vista do planeamento de uma sociedade, quanto tempo é que demora uma migração com o volume, por exemplo, da que teve a do pós 25 de Abril, a ser absorvida pela sociedade?

    Depende das características dos migrantes. No caso destes migrantes que vieram das ex-colónias, eram portugueses, de nacionalidade, e, portanto, não tiveram esse constrangimento de serem estrangeiros. Tinham obviamente muitas afinidades culturais, muitos deles tinham família cá, e portanto, foi muito fácil reintegrarem-se, ou melhor, foi relativamente fácil.

    Foi duro para cada um deles, seguramente, mas foi relativamente fácil para a sociedade fazer essa integração que coincidiu com um momento pós-revolucionário e com todo um conjunto de mudanças na nossa sociedade, até de hábitos e cultura.

    No caso de uma cultura muito diferente, como é o caso da cultura islâmica, os migrantes que gera, ou os refugiados que gera em direção à Europa, pode demorar algum tempo. Tradicionalmente dizíamos que uma integração completa aconteceria ao fim de três gerações, portanto, estamos a falar de 50 anos. Hoje em dia queremos que isso aconteça amanhã, e obviamente que isso nem sempre é possível.

    Hoje em dia é mais difícil ou mais fácil essa integração? Atendendo a que estamos todos mais ligados uns aos outros no sentido em que há uma democratização em termos de comunicação que facilita em algumas coisas (e se calhar prejudica-nos noutras)? 

    É difícil de dizer. Ou seja, aí a bola de cristal não funciona, porque, por exemplo, nós temos uma tradicional emigração chinesa para Portugal: temos muitos chineses que estão em Portugal há duas décadas e não estão de todo integrados, e temos outros chineses que chegaram ontem e que já estão integrados.

    Por exemplo, os filhos da primeira geração, que vão para a escola, aprendem português, começam a integrar-se com os seus amigos, aprendem a gostar de futebol e de repente são iguais a nós, apenas têm um nome diferente com origem asiática. Os seus pais, por vezes, não conseguem.

    Por isso é difícil dizer se é mais rápido nuns ou noutros casos, depende. Não há segredos aqui, nem há algo que possamos ativar e dizer “se fizeres isto, vai-te integrar”.

    Mas uma sociedade pode ser educada para essa diversidade?

    Pode, desde logo integrando a diversidade. Aprendendo a perceber que a diversidade é positiva e não negativa, que acrescenta e não substituí.

    O RACISMO CURA-SE VIAJANDO E A XENOFOBIA CURA-SE LENDO

    Mas como é que se faz isso? Com coisas concretas?

    A ciência pode-nos ajudar nesse sentido. Por um lado, quebrando os mitos de que somos seres singulares e, de alguma forma, únicos. Não existe uma coisa como os portugueses, ou como os espanhóis, somos uma mistura de várias coisas e vamos continuar a misturar-nos no futuro. Ou seja, não parámos de nos misturar e não somos agora um segredo que se vai manter para a vida, como aqueles segredos das receitas de família.

    Não, não somos nada disso. Somos um povo em mistura e no futuro continuaremos a misturar-nos. Desde logo, se integrarmos essa ideia, percebemos que se fizéssemos uma análise genética ao nosso sangue, tínhamos sangue de muitos sítios e o nosso genoma era seguramente muito diverso.

    Não existe ninguém que possa dizer “eu sou um português puro”, porque não há portugueses puros. Se integrarmos essa ideia, talvez consigamos estar mais perto de acabar com o racismo e com a xenofobia, que é o primeiro passo para a integração e compreensão do outro.

    Como é que se ajuda a que essa ideia seja disseminada, explicada e integrada como está a dizer?

    O Miguel de Unamuno tem uma expressão que eu acho muito feliz, que é “o racismo cura-se viajando e a xenofobia cura-se lendo”, e eu acho que é mesmo isso. Porque, de repente, aqui somos homogéneos, temos todos uma mesma cor da pele, e atravessamos ali Gibraltar e do lado de lá já somos o estrangeiro, o estranho, e, portanto, percebemos que podemos ser maioria e minoria com um intervalo de poucas horas.

    Se viajarmos percebemos que as culturas que visitamos são muitas vezes tão ricas que ficamos empobrecidos a olhar para elas, não é? Como é que nós considerávamos bárbaros aqueles que têm culturas tão ricas? E é um pouco por todo o mundo que isto vai acontecendo, e, portanto, esse é o primeiro passo.

    O outro passo é pensarmos em nós  como fazendo parte deste mundo global e que é um pouco indiferente termos nascido em Portugal ou no Burundi, fazemos parte do mesmo grupo social e vivemos no mesmo planeta, no mesmo momento, e esta contemporaneidade de estarmos todos aqui ajuda-nos muito a perceber o nosso lugar no mundo.

    Aproveitando, porque está a falar nisso. Acha que a discussão que temos tido sobre a forma como algumas imagens são utilizadas seja em obras de ficção, seja na publicidade, por exemplo, ajudam ou prejudicam a passar essa mensagem de percebermos que não há homogeneidade, que bastam um quilómetros e encontramos o outro?

    A comunicação é aqui a peça essencial. Hoje em ciência já sabemos muito sobre todas estas características, mas talvez nem todos tenhamos ainda a consciência dos avanços que foram feitos nesta procura do que é o nosso mundo.

    E se me permite voltar outra vez ao coronavírus, o facto de ser um vírus que nasceu na China, já criou fenómenos de racismo e xenofobia em relação a indivíduos que têm características físicas que nos fazem pensar que vêm da Ásia. Há que encontrar mecanismos de comunicação, como disse e bem, que nos permitam comunicar a diversidade com naturalidade.

    Quando deixarmos de festejar o facto de as mulheres poderem ganhar prémios ou termos o primeiro negro  no parlamento, chegámos a um ponto em que estamos mais perto de poder pensar que atingimos o nosso objetivo de tornar a integração real e não apenas ficcionada, como em alguns casos ainda é.

    DURANTE SÉCULOS ANTAGONIZÁMOS ESPANHA E HOJE JÁ PERDEMOS TOTALMENTE ESSA SENSAÇÃO DE QUE OS ESPANHÓIS SÃO NOSSOS INIMIGOS

    Todos os povos são racistas, ou os portugueses, em particular, são mais racistas que a média?

    É muito difícil responder a essa pergunta, “os portugueses”, como eu disse, é uma formulação excessivamente genérica que talvez não exista. Mas eu acho que todos os povos para sobreviverem, enquanto esta singularidade de que chamamos nação, tiveram tendência de antagonizar outros povos.

    No nosso caso, os espanhóis, depois os povos das colónias que fomos colonizando, tivemos a necessidade de criar esse mito do fundador, de criarmos até heróis nesta história que defrontavam o outro e aniquilavam o outro – e os nossos heróis históricos são muito os heróis que matavam o outro.

    Hoje em dia isso deixou de fazer sentido. Repare como o caso de Espanha mostra como é possível: durante séculos antagonizámos Espanha e hoje já perdemos totalmente essa sensação de que os espanhóis são nossos inimigos.

    ESTAMOS AINDA DEMASIADO PERTO DESSE MOMENTO DA HISTÓRIA PARA QUE O POSSAMOS DISCUTIR ABERTAMENTE E ATÉ ULTRAPASSAR ESTA SENSAÇÃO DE CULPA QUE PASSA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO: OS QUE FORAM À GUERRA, OS FILHOS DOS QUE FORAM À GUERRA, E OS QUE NÃO FORAM À GUERRA

    Ainda sobra qualquer coisita …

    Ainda sobra, mas não há racismo nem xenofobia em relação aos espanhóis. No caso da África negra e, sobretudo dos países onde estivemos e onde houve uma guerra colonial, acrescenta aqui uma camada que é ainda muito recente e que é o facto de não ser muito fácil matar os próprios irmãos.

    Daí ter havido uma certa ideologização dos nossos militares, inferiorizando o outro, tornando-os algo que podia ser morto numa batalha sem causar remorso, porque de outra forma, enquanto seres humanos não seria possível fazer os atos bárbaros que foram feitos.

    Isto não desculpa o que foi feito, nem desculpa o futuro, mas estamos ainda demasiado perto desse momento da história para que o possamos discutir abertamente e até ultrapassar esta sensação de culpa que passa de geração em geração: os que foram à guerra, os filhos dos que foram à guerra, e os que não foram à guerra também de alguma forma foram socializados com o mesmo tipo de conceitos.

    É possível, à luz do que hoje sabemos e que acabou de explicar, repensar esse passado?

    Repensar sim. Rescrever não, mas repensar sim. Repensar é essencial, é discuti-lo, reintroduzi-lo na forma como estamos hoje a socializar as gerações futuras, parece-me essencial. Não podemos continuar a ensinar o Portugal que somos hoje, esquecendo os 900 anos de presença muçulmana na Península Ibérica.

    QUANDO OLHAMOS PARA A HISTÓRIA DO SRI LANKA E PERCEBEMOS QUE OS PORTUGUESES NÃO ERAM PROPRIAMENTE BEM VISTOS ENQUANTO POVO COLONIZADOR, OU  QUE A COLONIZAÇÃO DE GOA, DAMÃO E DIU FOI FEITA À CUSTA DE MUITO SANGUE DERRAMADO E DE MUITA BARBARIDADE

    De que mal se fala, não é? 

    Sim, nós saltamos dos romanos para D. Afonso Henriques e portanto há ali um intervalo que obviamente está em nós, nos nossos genes, nas nossas palavras, na nossa cultura, na nossa comida e temos de o voltar a colocar no sítio certo, valorizando. Também não podemos deixar de nos sentir responsáveis pelas partes más do que foram as descobertas portuguesas.

    Não houve só levantamento de padrões, houve atrás desse levantamento de padrões e da presença em várias partes do mundo muitas vezes histórias que não nos contam e que nos surpreendem quando as lemos nas histórias dos outros. Quando olhamos para a história do Sri Lanka e percebemos que os portugueses não eram propriamente bem vistos enquanto povo colonizador, ou que a colonização de Goa, Damão e Diu foi feita à custa de muito sangue derramado e de muita barbaridade.

    Ou quando olhamos para a escravatura, e por muito que nos custe, importa perceber que fomos dinamizadores de algo que obviamente nos envergonha que pudesse ter acontecido, e que todos temos a certeza de que não queremos que se repita.

    Mas gostamos, e correndo o risco da generalização, de pensar em nós como os bons colonialistas.

    Mas não fomos.

    Mas de onde é que vem essa narrativa? Ou seja, perguntando de outra maneira, os ingleses pensam neles como os bons colonialistas? Os franceses pensam neles também como os bons colonialistas? Cada povo que colonizou pensa em si próprio como tendo sido apesar de tudo bom na forma como o fez?

    Pensa. A história tem esse lado de muitas vezes vangloriar-se dos feitos que considera bons e relevantes, e esquecer aqueles que foram maus. Na nossa história há muito poucas derrotas, mas para voltarmos aqui à demografia, repare como tudo isso depois teve consequências demográficas. Porque a escravatura levou milhões de pessoas de um continente para o outro, quando os transportou ao longo do mundo, isso alterou a demografia original desses países.

    Quando os portugueses chegaram às Américas, à América do Sul, ou quando os espanhóis chegaram às Canárias, houve uma destruição das demografias locais com o dizimar de povos indígenas que aí existiam, portanto, alterámos as condições do que existia.

    Claro que nesse tempo não tínhamos estatísticas, não fazíamos contagem de pessoas, não sabíamos quem eram e onde é que estavam, mas sabemos as consequências que daí vieram, portanto, podemos também integrá-las hoje naquilo que são as nossas dinâmicas de abordagem do futuro.

    TEMOS DE EDUCAR MELHOR AS GERAÇÕES FUTURAS PARA QUE ELES POSSAM FAZER ESCOLHAS E DEVIDAMENTE INFORMADOS POSSAM DECIDIR

    Do ponto de vista da exigência que temos, e neste caso estou a falar sobretudo da sociedade ocidental, face a como é que estamos a lidar com o nosso passado, uma das criticas que se ouve com frequência é que não existe o mesmo grau de exigência com outros povos. Como é que se gere, quer aos olhos da ciência, quer aos olhos da história, esta dicotomia?

    Eu costumo ter uma resposta para todas as perguntas difíceis como é esta, que é “educação”. É sempre a educação. Temos de educar melhor as gerações futuras para que eles possam fazer escolhas e devidamente informados possam decidir.

    Ao fim de 30 anos, estamos mais perto de uma ideia de fim da história em que iríamos ficar mais iguais do que diferentes segundo Fukuyama, ou do choque de civilizações que Samuel Huntington defendeu, e que previa que íamos ser divididos por diferenças culturais, muito de base religiosa?

    No nosso tempo de vida, o que nós estamos a sentir é que temos ainda muitos choques. Não diria de civilizações, mas muitas vezes de ideias ou estratégias, porque o que me parece é que, em alguns casos, a religião é também uma estratégia para obter outros fins que por vezes nem conseguimos perceber.

    Veja-se o caso do que acontece no Médio Oriente e percebamos como a divisão entre religiões é, na verdade, alimentada por uma estratégia de domínio de outras riquezas que estão no sub-solo e não na moral das pessoas. Eu não creio que estejamos a caminho do fim da história, nem creio que o choque de civilizações seja aquilo que nos vai moldar nas próximas gerações; agora, estes pequenos choques, no local sobretudo, vão acontecer todos os dias.

    Todos os dias vai haver um pouco de fim da história, porque vamos colocá-la em causa, como com a escravatura, como com a colonização. Há um fim da história tal como a conhecemos e, ao mesmo tempo, há um choque, de facto cultural, nas pequenas coisas, sobretudo quando a nossa capacidade de entender o outro desapareceu por qualquer motivo. Ou porque somos ideologicamente demasiado fechados ou porque somos fundamentalistas religiosos e não aceitamos o lugar do outro.

    OS NOSSOS CIENTISTAS, QUE VIVEM EM INGLATERRA, ESTÃO COMPLETAMENTE INTEGRADOS NA COMUNIDADE CIENTÍFICA GLOBAL, E AS NOSSAS EMPREGADAS DE LIMPEZA, QUE FORAM PARA INGLATERRA, ESTÃO AINDA MUITO FECHADAS NA COMUNIDADE PORTUGUESA

    Do ponto de vista da forma como as sociedades integram outras comunidades ou outras populações, os portugueses, quando têm de se integrar noutra sociedade, têm facilidade em ser integrados?

    É muito difícil responder, de facto. Porquê? Porque temos vários exemplos. Os portugueses foram para França e na primeira geração casaram todos uns com os outros. Dizíamos que estavam integrados, mas estavam integrados dentro de uma pequena comunidade no seio da sociedade francesa.

    Na segunda geração, isto desapareceu, à medida que foram frequentando as escolas e tendo empregos fora da comunidade. Agora reconhecemo-los pelo nome e pouco mais.

    Quando foram para o Brasil, já não casaram uns com os outros, já se dispersaram muito mais rapidamente e desapareceram no seio de uma sociedade que era homogeneizadora. Portanto, é difícil dizer qual é o nosso caminho. Quando olhamos hoje, é muito diferente percebermos que os nossos cientistas, que vivem em Inglaterra, estão completamente integrados na comunidade científica global, e que as nossas empregadas de limpeza, que foram para Inglaterra, estão ainda muito fechadas na comunidade portuguesa.

    A classe social e até sobretudo o nível de conhecimento são fatores que podem decidir a integração?

    Sim. Mais uma vez, é a educação, a educação faz aqui o salto. Repare, muitas vezes quando falamos de cientistas, não quer dizer que eles pertençam a classes sociais mais altas, mas estão seguramente mais educados.

    Estão mais educados e a ciência, enquanto comunidade, oferece-lhes também essa possibilidade

    Mas podem ser pobres, precários.

    Não tem a ver com classe social, tem razão. Tem a ver com o terem, à partida, uma classe profissional, se se pode dizer desta maneira, que os agrupa e integra independentemente do seu escalão social. O que facilita, à partida.

    Facilita muito porque, sei lá, falam bem a língua, não têm um dicionário pequeno, têm muitas palavras que podem usar, e isso obviamente integra muito. Porque é possível manter conversas um pouco mais profundas quando temos um maior conhecimento da língua do que quando conhecemos apenas algumas palavras.

    Então agora fazendo mais uma pergunta de generalizações para o professor continuar a desmontar as generalizações …

    Lembro-lhe só que isto era sobre demografia (risos).

    Continuamos na demografia, isto é tudo demografia. Quando nós saímos de Portugal, quer os portugueses que foram para França há 40 ou 50 anos, quer a emigração mais recente, no regresso vimos mais tolerantes? 

    Vimos mais tolerantes, mas é uma perceção minha, não que tenha estudado ou lido sobre o assunto. Acho que essa tolerância tem que ser alimentada, porque se não for alimentada se calhar, inversamente vamos tornar-nos intolerantes muito mais rapidamente, porque o meio que está à nossa volta também nos vai contaminar.

    Quando eu regresso de Nova Iorque e vou cair numa pequena aldeia da envelhecida na Beira, muito rapidamente os valores da pequena aldeia se vão sobrepor aos valores que eu trago de Nova Iorque, sobretudo se eu estiver isolado e sem muito contacto com o mundo exterior.

    Portanto, acho que sim,  que vimos mais adaptados à diversidade e por isso mais tolerantes, mas não é um ganho adquirido, não é algo que fique para sempre, temos de o alimentar depois em camadas sucessivas para que não desapareça.

    Falou num ponto, e agora sim a demografia, que é o envelhecimento, e o envelhecimento é claramente uma preocupação que os demógrafos têm. Portugal é neste caso um dos países em que esses dados são especialmente preocupantes. O que é que deveríamos estar a fazer?

    Ter filhos, essa é uma resposta fácil. Para não envelhecermos tanto enquanto população temos que a rejuvenescer e a forma mais fácil seria termos mais filhos pois acrescentaríamos mais números.

    Não está a acontecer …

    Não está a acontecer em número suficiente já há muito tempo, há quase 40 anos que não estamos a ter os filhos de que necessitaríamos para manter uma população jovem, e com o aumento da esperança de vida. Com o envelhecimento da população graças aos benefícios que a ciência nos trouxe, estamos a ficar mais velhos porque os velhos estão a ficar mais velhos e portanto, somamos todas as idades, e dividimos pelos mais jovens. E os mais velhos são mais, e são mais velhos.

    AS POLÍTICAS PÚBLICAS TÊM DE SER REPENSADAS, É TALVEZ O NOSSO MAIOR DESAFIO; FICARMOS MAIS VELHOS NÃO É UMA PREOCUPAÇÃO

    Além das questões que decorrem de termos uma população envelhecida nomeadamente ao nível da segurança social, a própria sociedade não está a responder  à mudança. Estou a pensar, por exemplo, na vida profissional: independentemente de haver profissões com mais desgaste e as pessoas aos 60 anos podem querer mesmo parar, a verdade é que cada vez mais fará sentido que mais pessoas se mantenham na vida ativa durante mais tempo.

    O que não pode é ser da mesma maneira. Eu costumo usar para exemplificar esse caso o exemplo dos professores. Não podemos esperar que uma pessoa que começou a dar aulas aos 20 e poucos anos, e que tem 40 anos de carreira, continue a ter a mesma paciência com as crianças que tinha com 20 e poucos anos. Nós próprios, que não estamos necessariamente todos os dias em contacto com crianças, percebemos que vamos ficando diferentes no contacto com elas.

    Uma coisa é ter idade para ser mãe e outra é ter idade para ser bisavó quando se está em frente aos estudantes – e isso faz toda a diferença porque há um gap que se vai acrescentando ano após ano. Os meus alunos da universidade têm sempre 18 anos, e eu já estive mais próximo de ter 18 anos do que hoje e, portanto, isso altera-se. Esse é o primeiro ponto que importa aqui assinalar.

    O segundo é que temos de dar opção às pessoas. Vai haver pessoas que querem trabalhar e devemos deixá-las continuar, vai haver outras que querem parar e vai haver o intermédio, pessoas que querem trabalhar mas não todos os dias, não nas mesmas rotinas que tinham, que se calhar necessitam de fazer uns gap years para arejarem um pouco a cabeça.

    A nossa sociedade tem de se organizar para permitir que isto aconteça tanto para homens como para mulheres nos diferentes momentos da vida. Por exemplo se uma mulher que teve um filho ou dois filhos e quiser parar um ano para voltar a estudar, devíamos permitir-lhe que volte a estudar para quando reentrar no mercado de trabalho não esteja desatualizada.

    E obviamente que a sociedade a devia compensar por esse bem comum que é haver mais nascimentos. Não estamos ainda preparados, as políticas públicas têm de ser repensadas, é talvez o nosso maior desafio; ficarmos mais velhos não é uma preocupação.

    Porque com 80 anos a trotinete talvez seja um pouco arriscada para muitos de nós. Há todo um conjunto de situações que devemos repensar com tempo que vai desde a estruturação da mobilidade nas cidades até à forma como os nossos hábitos alimentares vão também necessariamente mudando com o nosso envelhecimento coletivo.

    NÃO TEMOS NECESSARIAMENTE DE TER MAIS FILHOS, TEMOS DE ADAPTAR A NOSSA SOCIEDADE A TER MENOS CRIANÇAS

    Há menos mulheres a serem mães mais jovens, mas também há mais mulheres a terem filhos acima dos 40. Este adiamento não vai responder à necessidade que temos de ter mais filhos.

    Não temos necessariamente de ter mais filhos, temos de adaptar a nossa sociedade a ter menos crianças. O ter mais ou menos não é necessariamente uma inevitabilidade, mais uma vez o que acho que é importante é colocarmos a questão da opção em cima da mesa. O problema para algumas mulheres que gostariam de ter um filho aos 20 anos, e não o podem ter, é o que nos deve preocupar.

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