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    Violações e tortura nas bases da FLEC

    João Baptista Júnior “Vinagre” era a cabeça, os olhos e os ouvidos de Nzita Tiago junto dos combatentes. Esteve nas matas do Maiombe mais de 35 anos. Em 2002, após a grande ofensiva das FAA contra a FLEC, só ficaram dois homens a comandar as operações militares: Vinagre e Soley. Todos os outros “adormeceram” ou procuraram refúgio nos países vizinhos. Aos poucos ganhou protagonismo ao ponto de ser o “chefe supremo” da segurança. Sobre os activistas dos direitos humanos que vivem na cidade de Cabinda recorda um episódio violento: “quando discutíamos se parávamos a guerra para iniciar o diálogo, o senhor Capita e o Jalinca entraram numa discussão que só não acabou à pancada porque nós os separámos. Mas ele, em nome dos intelectuais, naquele momento declarou o divórcio com Alexandre Tati. Mas agora já são outra vez amigos”.

    Jornal de Angola – Em que circunstâncias foi capturado?

    João Baptista Júnior – Militei nos serviços de segurança da FLEC onde entrei em 1976. Quando fui capturado desempenhava a função de inspector ao lado de Carlos António Moisés “Rótula”, que desempenha a função de ministro do Interior e da Segurança de Estado. Devido ao intenso sofrimento nas matas decidi refugiar-me na cidade de Ponta Negra, onde vivi um ano e cinco meses. Em Junho do ano passado, precisamente há um ano, depois da queda do comandante “Pirilampo”, fui capturado.

    JA – Onde está a dificuldade para que haja uma solução de diálogo e de entendimento em Cabinda?

    JBJ – O chefe do Estado-Maior General, Estanislau Boma, Carlos António Moisés “Rótula” e eu, éramos permanentemente informados pelo presidente Nzita Tiago sobre o que era feito pelo Executivo a favor da paz em Cabinda. Tudo corria bem e a paz estava muito próxima. Só que no seio da FLEC existem políticos insurrectos que acabaram por boicotar as propostas de paz do Executivo. Por causa disto muitos militares abandonaram as matas e vivem agora nos centros de refugiados na República Democrática do Congo.

    JA – Foram os políticos que provocaram o aparecimento das alas?

    JBJ – Sim, porque os políticos defendiam a conquista de mais posições no terreno para negociarmos em posição de força com o Executivo. Mas os militares sabiam que essa força não existia e muito menos existe agora.

    JA – A que políticos atribui a responsabilidade das divisões na FLEC?

    JBJ – Só há um homem que nesse aspecto está limpo: Nzita Tiago. Todos os outros têm mais ou menos culpas pelo que está a acontecer. O Alexandre Tati é o principal responsável. Depois da rotura, ele realizou uma reunião próximo da fronteira de Massabi e o ponto único na agenda de trabalhos era esta: eliminação do inimigo interno.

    JA – Quem era o inimigo interno?

    JBJ – Os homens leais a Nzita Tiago: eu, o “Pirilampo” e o “Noite e Dia”. Fomos informados de tudo o que aconteceu nessa reunião por dois combatentes que conseguiram fugir. Face a esta situação optámos pela fuga. Cada um foi para seu lado. Mas três dias depois o comandante “Pirilampo” desapareceu. Podem dizer que foi eliminado pelas Forças Armadas Angolanas, mas eu não acredito. Alexandre Tati é o responsável pela sua morte.

    JA – As divergências eram assim tão profundas?

    JBJ – Os militares apostam na paz e apoiam um acordo nesse sentido. Mas Alexandre Tati não teve paciência para esperar a sua vez de presidir à FLEC e por causa da sua ambição desmedida os combatentes que estão nas matas continuam a sofrer.

    JA – O que pensa do Memorando de 2006?

    JBJ – Como sempre, não houve consenso, mas é um acordo cujo mérito total pertence à FLEC Renovada. Louvo a atitude do senhor Bento Bembe, porque não provocou a morte de ninguém: quem quis alinhar com ele, foi. Quem quis ficar não foi tratado como traidor. Alexandre Tati mata quem não pensa como ele.

    JA – Onde é que estava quando a FLEC atacou a caravana da selecção de futebol do Togo?

    JBJ – O ataque aconteceu na altura em que eu acabava de chegar a Ponta Negra. A operação tinha como objectivo pressionar o Executivo para negociar, mas a direcção política reagiu e concluiu que havíamos cometido um crime. Temos que lamentar. Foi um mau plano e um grave erro cometido pelas tropas.

    JA – Teve responsabilidades na operação?

    JBJ – Nenhumas. Os responsáveis, com medo que eu informasse o presidente Nzita Tiago, puseram-me em total isolamento. Fui para o “Quilómetro Quatro” nos arredores de Ponta Negra. Fiquei totalmente isolado em casa de um congolês. Eles alegaram que a minha vida estava em perigo e tinha que ficar escondido. Só mais tarde compreendi que fui afastado para não informar Nzita Tiago da operação contra a selecção do Togo.

    JA – Sabe o que aconteceu exactamente?

    JBJ – Sei tudo, porque após a operação foram buscar-me ao esconderijo e fui informado pela “Rótula” do que se tinha passado. Entregaram-me o relatório que eu tinha de enviar para Nzita Tiago. Quando li aquilo pus as mãos na cabeça. Prepararam o ataque até ao mais ínfimo pormenor. E o objectivo foi sempre disparar contra os carros que transportavam a selecção do Togo. Tudo o que contam fora disto é mentira.

    JA – Recorda os pormenores do relatório?

    JBJ – Tenho tudo na memória como se tivesse acontecido hoje. Mal a selecção do Togo chegou a Ponta Negra puseram três homens da segurança da FLEC a seguir todos os passos dos jogadores e dirigentes. Além destes três, houve altos responsáveis da FLEC que também vigiaram de perto os desportistas. Quem coordenou toda a operação foi o João Baptista Gimbi, adjunto do Rótula, ministro da Segurança. Ele era informado a todo o momento.

    JA – Tem a certeza de que o objectivo era matar desportistas?

    JBJ – Eu sou filho de um pastor. Quando nasci já existia uma Bíblia em minha casa. Quem me conhece sabe que só digo a verdade, nem que isso me prejudique. O objectivo da operação era matar os desportistas. Os relatórios são muito claros e foram feitos por eles. O Gabriel Félix Monzo estava na emboscada e era ele que tinha o telefone para no momento exacto dar ordens para abrir fogo. A caravana aproximou-se da zona de morte, passou o primeiro carro com as tropas das FAA. Passou o segundo carro com militares, sem qualquer problema. Quando o primeiro autocarro entrou na zona de morte ele mandou abrir fogo.

    JA – Na altura do ataque condenou a acção?

    JBJ – Totalmente. Disse ao Gimbi que afinal fui colocado em isolamento para não saber da operação. Ele não desmentiu. À tarde entrei em contacto com o presidente Nzita Tiago e fiz o relato dos acontecimentos. Foi o fim do mundo. Acusou-me de traição e só se acalmou quando lhe disse que eu fui posto em isolamento, até acabar a operação. Ele sabia que eu estava a dizer a verdade. O presidente entrou em conflito com o Alexandre Tati por causa disto. Foi a partir daí que tudo se desmoronou. Por isso os congoleses estão convencidos de que a operação foi montada pelas FAA. Mas é mentira. Foi a FLEC, embora à revelia de Nzita Tiago.

    JA – Os congoleses apoiam Alexandre Tati?

    JBJ – Mais do que isso, protegem-no. Ele joga com tudo e com todos. O Executivo acreditou que ele queria a paz. Deu-lhe dinheiro e um passaporte diplomático angolano para se movimentar à vontade. Viram o que ele fez. Não assinou o cessar-fogo e distribuiu o dinheiro que era para repatriar os combatentes, pelo Boma e pelo Rótula. Em vez de socorrerem os guerrilheiros e as famílias compraram vivendas de luxo. Os mesmos que se colocaram ao lado do Lissouba para derrubar o Presidente Nguesso agora são protegidos pela sua vítima. Foram eles que tomaram o aeroporto de Brazzaville no golpe do Lissouba. O contingente do Missombo entrou todo no golpe.

    JA – Nessa altura a FLEC alinhou com Lissouba?

    JBJ – Foi uma parte importante da sua tropa. Os nossos homens combateram ao seu lado, com a promessa de que no fim nos davam armas e dinheiro. Mas deram-nos apenas três armas. Foi um fracasso. O Alexandre Tati é que sabe quanto dinheiro recebeu de Lissouba. Eu sei que ele recebeu e logo a seguir fugiu para Kinshasa. Hoje é protegido por quem depôs. Quando caiu o Mobutu aconteceu o mesmo. Um oficial que comandava o paiol do Baixo Congo veio propor-nos a venda de lança-granadas, morteiros, armas ligeiras, explosivos e munições. Podíamos levar tudo por mil dólares. O Alexandre Tati e o Boma fizeram o negócio mas nunca vimos as armas. Foram para o mercado negro onde renderam muito mais. O Alexandre Tati foi sempre muito preguiçoso nas finanças. Desaparecia o dinheiro todo.

    JA – Não foram os comandantes que o elegeram presidente?

    JBJ – É verdade, não conhecem os seus truques. Ele nunca admitiu ser dirigido e agora está como quer. Mas não tem nada. A FLEC está em desintegração. É por isso que eu digo que o cessar-fogo de que ele fala é um truque. A única saída é esta: reconhecer a nossa incompetência. Ninguém deve temer o reconhecimento dos seus erros. Quem cometeu crimes pede perdão e é perdoado. Vamos todos ajudar a reconstruir Angola em paz e no diálogo. Infelizmente, os ambiciosos não querem nada com a paz e a reconciliação. Estão a seguir os passos do Savimbi.

    JA – Ainda há margem de manobra para a guerra?

    JBJ – É sempre possível atacar civis indefesos. Vejam o que aconteceu na morte do primo do senhor Capita. O Alexandre Tati disse aos empresários: a partir de hoje estão proibidos de dar dinheiro a quem não tenha uma credencial assinada por mim. Um dia, um grupo armado foi ter com o encarregado da empresa onde o senhor Olímpio Pongo era motorista. Os homens exigiram dinheiro. Eles responderam que só pagavam se mostrassem uma credencial de Alexandre Tati. Os combatentes foram buscar reforços e mataram um tenente da escolta e o motorista. A responsabilidade é toda do Alexandre Tati. O “Raiz” comandou a operação.

    JA – Acha que Alexandre Tati pode recorrer a actos de terror contra civis?

    JBJ – Tenho a certeza que sim. Aquele homem é capaz de tudo. Criaram os ABCR, que são esquadrões da morte. Ninguém se opôs. Eles chamam-lhes “actividades bandidescas contra revolucionárias”. Andam a matar em Ponta Negra os filhos do Necuto e Miconge porque dizem que são apoiantes de Nzita Tiago. Sabendo disto, os refugiados e os familiares dos combatentes estão aterrorizados. Por isso eu peço ao povo e aos combatentes da FLEC: não aceitem os ABCR! Não permitam que matem inocentes.

    JA – Neste quadro, onde entram os activistas dos direitos humanos que residem em Cabinda?

    JBJ – Eu não conheço essa gente. Estive numa reunião com o Ivo Macaia e com o Capita em Ponta Negra e aquilo correu muito mal. Quando discutíamos se parávamos a guerra para iniciar o diálogo, o senhor Capita e o Jalinca entraram numa discussão que só não acabou à pancada porque nós os separámos. O Rótula também queria andar à pancada. O senhor Capita, em nome dos intelectuais, naquele momento declarou o divórcio com Alexandre Tati. Mas se os activistas dos direitos humanos quiserem trabalhar a sério, têm muito que fazer junto dos combatentes e seus familiares nos Congos.

    JA – Há violações dos direitos humanos?

    JBJ – Não há direitos nenhuns. Eles que vão à base do Cungo. Estão lá os buracos onde os homens que caíam em desgraça eram presos. Ficavam dentro dos buracos, sem ver a luz do sol, fazendo ali as suas necessidades. Quando saíam de lá tinha mudado de cor e não se aguentavam em pé. Falem com Vítor Jorge Gomes, Tomás Leba II ou José Mabiala. O Alfredo Simões Sunda sofreu essa tortura também, mas não pode falar porque morreu.

    JA – Os dirigentes da FLEC sabem disso?

    JBJ – Sabem todos. Mas há coisas mais terríveis. As mulheres dos que caíam em desgraça eram despidas e metidas nas casernas dos recrutas. Os jovens violavam-nas toda a noite. Maria, Sabina Shibinda, Germaine são vítimas deste tratamento desumano. Eu estava na base do Cungo, no Necuto, quando isto aconteceu. Mal soube, exigi que lhes devolvessem os panos e que parassem as violações. Disse que se continuassem a violar as mulheres, matava-vos ou tinham que me matar a mim. Nesse dia Maria veio ter comigo e disse: senhor Vinagre, estou morta! Aqueles miúdos a abusarem de mim à frente da minha tia Maria Sabina, mataram-me. Não consigo viver com esta vergonha.

    JA – Os comandantes dizem que Nzita Tiago é que quer a guerra, confirma?

    JBJ – É falso. Os que estão com Alexandre Tati deviam pedir desculpas aos angolanos e a Nzita Tiago. O presidente escreveu ao Presidente da República a propor a paz. E recebeu uma resposta positiva. Foi tão aberto que nos deixou três hipóteses à escolha para negociarmos: a autonomia, a federação ou a independência. Nzita Tiago disse à direcção que tínhamos o dever de responder ao Presidente da República com a mesma abertura e elevação. Por isso, na resposta devíamos propor as negociações apenas sobre a autonomia e a federação. Sabemos que o governo não aceita a independência.

    JA – Então o que falhou?

    JBJ – Os homens de Alexandre Tati recusaram a proposta de Nzita Tiago, dizendo que só negociavam a independência. Nzita Tiago disse que não podíamos pôr o Executivo entre a espada e a parede. O melhor era partirmos para as negociações sobre a autonomia ou a federação. E recordou a todos que a guerra está a agredir a juventude e o país. É altura de calar as armas. Fomos a votos e a maioria votou na federação. O Tati e a sua gente foram derrotados e em vez de se submeterem à vontade da maioria, saíram da sala. Estava consumada a divisão da FLEC. Depois Alexandre Tati fingiu que queria um cessar-fogo. Mas no momento de assinar, faltou.

    JA – Qual é a saída para este impasse?

    JBJ – Só há uma solução: acabar imediatamente a guerra e reconhecer os nossos erros. Criar condições para uma saída honrosa. Já todos sabemos que o Presidente José Eduardo dos Santos não quer a guerra e está de braços abertos para nos receber. O que eles estão a fazer é uma vergonha e desonra a FLEC. Agora querem pôr uma senhora inglesa a negociar com o Executivo!

    JA – Então qual é o motivo que impede um acordo?

    JBJ – O problema é o dinheiro. Alexandre Tati ficou com a elevada verba que o Executivo mandou para cuidar dos combatentes e dos seus familiares até ao repatriamento. Nzita Tiago mandou um barco de pesca para Kinshasa. A ideia era ajudar a alimentar os combatentes. O peixe que sobrasse era vendido e assim ficávamos com fundos para comprar bens de primeira necessidade. Alexandre Tati vendeu o barco. Vendeu carros e casas. O problema dele é que faz desaparecer o dinheiro. Agora está a preparar a retaguarda para fazer a guerra. Mas isso é impossível.

    JA – Impossível porquê?

    JBJ – Porque o Presidente Kabila deu ordem de expulsão a todos os combatentes da FLEC. Só o Rótula, o Boma e mais dois ou três dirigentes estão em Kinshasa. Aqueles combatentes que foram capturados em Agosto do ano passado foram vítimas dessas ordens de expulsão. Saíram precipitadamente e foram capturados. Mas foi o melhor que lhes aconteceu. Tiraram um curso de formação profissional e para estes o sofrimento acabou. No Congo Brazzaville também têm os movimentos restritos a uma área muito pequena. Não é possível criar a retaguarda e sem ela é impossível fazer a guerra.

    FONTE: JA

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